Todo desafio mexe com muita gente, a vontade de conhecer os próprios limites, de saber até onde se pode ir com as próprias forças e como suportar as dificuldades físicas e psicológicas depois de horas e horas sobre a bike.
A minha vida ciclistica, que começou no inicio da adolescência, sempre incluiu estes desafios e lembro a sensação da primeira vez quando fui com uma bicicleta aro 20 até a casa de um amigo, lá chegando jogamos bola por horas e ao retornar a tarde sob um sol escaldante. Os 18 km que de manhã foram fáceis agora pareciam intermináveis. Acho que ali nasceu o vírus que me contaminou. Alguns anos depois convidei dois amigos para uma “pequena” viagem de 600 km até o sul de minas e este foi o meu primeiro Crazy Trip. Foram dois dias com pernoite embaixo de arvores e trechos noturnos.
Desta aventura só eu continuei, os meus dois amigos ainda conversam comigo, mas não sobre bicicletas. Em março de 96 achei outros dois bikers que se aceitaram meu convite para um Crazy Trip (200 km em um
dia) e divulguei a idéia através de um jornal que editava na época, mas ninguém, além dos meus dois amigos, aceitaou o convite.
Com o advento da Internet comecei a divulgar as minhas idéias sobre o Mountain Bike através do site Tribo do Pedal Selvagem e acabei abrindo convite para um novo Crazy Trip aos bikers que visitam este site. muitos se interessaram, mas poucos se propuseram a ir. Não pela dificuldade de encarar 185 quilômetros em dois dias, mas por precisar de carro de apoio com motorista.
O primeiro dia deste evento era uma sexta feira comum e isso era preciso. A cidade de pernoite, São Francisco Xavier, é um local
turístico e há dificuldades de alojamento nos fins de semana. Mesmo assim, esperava-se umas 10 ou 15 pessoas na reunião que marquei uns dias antes para acertar os detalhes e todos se conhecerem, mas só
apareceram cinco pessoas. Duas eram da TPS, dois eram novatos e o outro era eu, isso somado aos outros dois bikers da TPS daria sete bikers a enfrentar este desafio.
Os cinco mosqueteiros – Quinta-feira a noite a primeira desistência por causa da gripe, Sexta-feira mais um não apareceu, restando então cinco bikers: Eu e o Cesar já tínhamos enfrentado juntos outros Crazy Trips, o Luiz Adlih, também da TPS é experiente mas nunca tinha enfrentado nada desta envergadura; Antônio Gatti que integra o quadro da TPS a poucos meses e já tinha experimentado as “roubadas” da TPS e queria mais e Kalil Khouri que nunca tinha pedalado em terra. Eram os cinco bikers que teriam dois carros de apoio, um dirigido pelo Biu e o outro pelo Henrique.
Velocidade total – A saída de Mairiporã se deu com meia hora de atraso e sob um forte nevoeiro e frio de 8 graus. A estratégia proposta e aceita por todos era de uma parada a cada 15 km, intercalando uma de curta duração (10 minutos) e outra mais longa (30 minutos).
Não pouparíamos forças, se desse aquela vontade de pedalar mais forte não a reprimiríamos. Assim nos primeiros 50 km, que foram de asfalto, obtivemos um média acima dos 20 km/h sem incluir as paradas.
Nos primeiros quilômetros de terra predominaram as descida. Com isso foi possível manter a média de horário planejado. a velocidade, porém, diminuiu no subidão do Bairro do Pião. Ao chegarmos neste bairro, fizemos a segunda parada mais longa e a quarta do dia. Neste ponto já tínhamos percorrido metade da distancia do primeiro dia. Ainda era meio dia e meia e estávamos, de certa forma, tranqüilos, mesmo sabendo que o atraso da saída nos faria chegar em São Francisco Xavier ao anoitecer se mantivéssemos aquele ritimo.
Era de comum acordo que quem se cansasse ou tivesse qualquer problema
teria que seguir no carro de apoio para não atrasar o grupo. A esta altura apenas o Kalil dava sinal de cansaço e a grande surpresa estava sendo o Antônio que vinha imprimindo um ritimo forte e indo na frente de todos.
Depois do Bairro do Pião pegamos uns belos downhills que nos levaram para o vale do Paraíba. Ainda havia umas subidas mas procurávamos manter um ritmo forte. Lá pelo quilômetro 80, o Kalil resolveu seguir no carro de apoio para se poupar e enfrentar o segundo dia.
Poucos quilômetros depois eu e o Cesar seguíamos lado a lado apreciando as encosta da Serra da Mantiqueira ao longe. Nesta distração o Cesar acabou caindo e luxou um pouco o ombro.
Para não perdermos tempo o Kalil voltou a pedalar, agora com a bike do Cesar até chegarmos na próxima parada programada. Então Cesar resolveria se dava ou não para continuar.
Paramos ao lado de uma banheira velha que servia de bebedouro para o gado e o Cesar reclamava da dor no ombro e não seguiria pedalando. Deste ponto em diante apenas três dos cinco bikers estavam na ativa:
o Antônio continuava imprimindo um ritimo forte, parecia até dopado, o Luiz não ficava atrás, mas comentava as suas duvidas sobre até quando iria agüentar aquele ritimo. Eu seguia os dois, mas já sentia as pernas cansadas e um leve dor nas costas quando forçava um pouco a mais.
No quilômetro 106, entramos na estrada do Lavras. A frente, aguardando silenciosa, estava a mais longa subida deste primeiro dia. Ela não seria nenhum problema se não fosse depois de tanto pedalar.
Sossego – As previsões de tempo e velocidade estavam dentro dos conformes. Assim encaramos aquele paredão de 5 quilômetros com naturalidade. Ele foi vencido em uma hora e não poupou ninguém. Em um ou outro trecho todos empurraram a bike.
Eu e o Luiz seguimos praticamente juntos a subida inteira, o Antônio sumiu na frente e, quando chegamos no topo junto aos carros de apoio, ele já havia seguido em frente. Eu me demorei uns minutos a mais que o Luiz para seguir. Como a noite estava chegando, optei em colocar o farol na bike.
Ao começar a pedalar, o pessoal do apoio recomendou cuidado pois adiante era só downhill até São Francisco Xavier. Até que fui precavido nos primeiros quilômetros, mas quando os carros de apoio me
alcançaram e iluminaram melhor o caminho a frente, esqueci as recomendações de mandei ver.
Em um ou outro lugar eu me distanciava dos carros e o que me sobrava era apenas o fraco farol da bike. Assim cheguei em São Francisco Xavier com a adrenalina a mil, onde o Luiz e o Antônio estavam a nossa espera.Fomos para a pousada recuperar as energias gastas nos 120 quilômetros pedalados em quase onze horas para enfrentar o dia seguinte.
Uma baixa e mais desafios – O sábado amanheceu com tempo bom, contrariando as previsões. Cesar decididamente não iria mais pedalar, pois o seu ombro não tinha se recuperado. Os outros estavam prontos para enfrentar duas longas subidas. Pouco antes de começarmos a primeira delas, aconteceu a única quebra de equipamento: a corrente da bike do Antônio quebrou. O problema, porém, foi rapidamente resolvido com uma emenda decorrente.
Os primeiros três quilômetros de subida foram fáceis, de inclinação suave e piso firme, mas depois a coisa pegou. Os quatro quilômetros seguintes até o topo tinham uma inclinação sempre acima dos
12 por cento, ou seja, subimos 500 metros de desnível neste quatro quilômetros onde o piso não colaborava, pois havia muita pedra.
Ali em cima a 1500 metros de altitude e na divisa dos estados de São Paulo e Minas Gerais, fizemos uma parada generosa para depois curtirmos o downhill que viria logo adiante.
Era certo que a poeira estaria presente o tempo todo mas por sorte o movimento de veículos estava fraco e pudemos curtir os 13 quilômetros de descida numa boa.
Pararmos em um barzinho na beira da rodovia pela qual iríamos seguir por uns 4 quilômetros até Sapucaí Mirim.
Perto do topo – Como a distancia deste segundo dia eram bem menor (65 quilômetros) não estávamos preocupados com o ritmo. Seguimos sossegados até o inicio da próxima, última e derradeira subida, que seguia pelas encosta do vale do Rio do Baú e onde se localiza a Pedra do Baú.
Para a sorte de todos, esta subida mesmo sendo longa com 10 quilômetros e uma ascensão de 700 metros, tem uma inclinação moderada. Se estivéssemos escansados daria para enfrentar toda ela com a coroa do meio.
Chegamos todos lá em cima, comemoramos a vitória e seguimos pela avenida que vai em direção ao centro de Campos do Jordão com descidas acentuadas onde o Kalil, na fissura de curtir aquele downhill alucinante, quase despencou por cima de um guard-rail num barranco de mais de 30 metros de altura.
Em Campos do Jordão tiramos a foto de comprovação da nossa chegada e como só tínhamos conseguido reservar hotel na cidade de São Bento do Sapucaí resolvemos esticar a pedalada um pouco mais e aproveitar a descida da serra pela rodovia SP 50, ultrapassando assim a marca dos 200 quilômetros, mas foi só terminar a descida para pararmos e esperarmos os carros de apoio para seguirmos para o hotel em São Bento do Sapucaí.
Este texto foi escrito por: Mazinho Bender
Last modified: junho 20, 2000