Às 15h08 do dia 21 de Junho de 1998, o membro da Equipe Neblina Edmilson Montenegro Fonseca tornou-se o primeiro alpinista paraibano a conquistar o cume da montanha mais alta dos Alpes e da Europa Ocidental, o Mont Blanc (Monte Branco), com 4.807 de metros de altura. Um fato inédito para o alpinismo paraibano.
O começo de tudo*
Durante muito tempo, o Mont Blanc foi visto como um lugar amaldiçoado, habitado por demônio e outras entidades do mal. Somente no século 18, quando o naturalista suíço Horace-Bénédict Saussure chegou aos pés da montanha para coletar plantas surgiu a idéia de desbravar o local.
Os únicos que se atreviam a escalar a montanha naquela época eram os caçadores e os cristalliers, camponeses que subiam em busca de cristais de quartzo para comercializar, mas ninguém havia chegado ao cume.
O Mont Blanc acabou sendo conquistado por “acaso”. Em jungo de 1786, um cristallier chamado Jacques Balmat separou-se dos seus companheiros e se distanciou, sem perceber, da trilha que seguia, perdendo-se. Ele passou a noite na montanha e no dia seguinte voltou a Chamonix, sua aldeia no sopé do Mont Blanc. A partir desse acidente, o caminho para a ascensão do monte estava aberto.
No mesmo ano, Saussure chegou ao mesmo cume e apelidou a montanha de “Mont Blanc” (monte branco). Hoje Chamonix, uma charmosa cidade de 10 mil habitantes, chega a receber mais de 110 mil visitantes por dia nos meses de verão. Muitos deles querem repetir o feito de Balmat e Paccard, chegar ao topo do Mont Blanc.
É impossível atingílo de uma tacada só. Escalar pela rota mais comum costuma levar dois dias. Do pico até aproximadamente os 2.440 metros, a montanha está coberta por uma camada de neve que tem mais de 23 metros de espessura. E nas partes mais baixas há uma série de glaciares (“rios de gelo” que se movimentam lentamente). A cada duas pessoas que tentam a escalada, porém, uma não consegue.
(* trecho de José Luiz Pauletto, extraído da Revista Terra)
Sonho paraibano
A idéia da expedição surgiu em julho de 1997 mas, em setembro do mesmo ano, Edmilson conseguiu uma bolsa para estudar tradução na Inglaterra. Estando já na Europa, ficaria mais fácil para escalar o Mont Blanc. A partir daí deu-se início ao planejamento da escalada em si, sempre apoiado pelos demais membros da Equipe Neblina (Eduardo Souto, Marcos Prado, Francisco Fonseca e Henri Carlo) que freqüentemente enviavam informações sobre a rota, condições climáticas e logísticas durante todo o período de preparação a partir do Brasil.
A preparação física era constituída por 3 horas diárias de musculação e alongamentos, 2 horas de escaladas no muro para escalada indoor da própria Universidade inglesa e mais 1 hora de corrida ou caminhada todos os dias. Com estudo por conta própria, Edmilson conseguiu uma boa base de informações técnicas com os clubes de Orientação (Bússola), de Montanhismo e de Trekking da mesma Universidade, chegando a escalar na Escócia e a participar de várias competições de Orientação em muitas cidades inglesas.
Via Internet ele manteve o contato com alpinistas franceses, ingleses e italianos em busca de maiores informações sobre a forma mais segura para levar o nome da Paraíba ao cume do Mont Blanc. Assim ele adquiriu conhecimentos que durante a escalada foram cruciais para o sucesso da expedição.
A escalada
Antes de qualquer escalada de alta montanha (acima de 3.000 metros) é necessário que o alpinista faça uma adaptação a altitude da montanha, essa adaptação é chamada de aclimatação. Para isso, Edmilson escalou em solo (sozinho) a montanha La Brevent (2.525m), subiu a Agulha du Midi (3.800 m), fez um trekking a 2.300m no Plano da Agulha e ainda uma leve caminhada pela geleira Mer de Glace, tudo próximo da vila de Chamonix, local base da expedição.
Era hora de partir para o cume. Todo equipamento foi conferido pela última vez antes da expedição deixar Chamonix: 10 minutos checando alimentação, equipamento técnico para escalada em gelo, mapas, bússola e equipamento de segurança (ao todo cerca de 12kg, fora o equipamento individual), combustível e comida para três dias de aventura na montanha.
A expedição formada por Edmilson e o norte-americano Brian Taylor deixou Chamonix às 12h10 em direção a vila de Les Houches. Três horas mais tarde, depois de tomarem o teleférico de Belleuve e o trem do Mont Blanc até 2.372 metros no Ninho de Águia, começava a escalada propriamente dita.
O começo foi como os livros e relatos falavam, uma trilha com cerca de 35 graus de inclinação, bem marcada, porém longa. Duas horas e meia depois Edmilson e Brian chegaram ao Refúgio Tete Rousse (3.167 m). Eram quase 18h, os guias locais dizem que a escalada deve ser seguida até o Refúgio Agulha de Gouter (3.817 m), porém já era tarde e decidiram passar a noite no refúgio.
Eles trataram de recompor as energias com um superjantar (macarrão tipo miojo, frutas secas, pães e muito chocolate). Antes de dormir ainda derreteram neve, pois esta é a única forma de se conseguir água nessas montanhas.
O segundo dia e o cume
Trecho do diário da expedição:
“À Uma e dez da manhã fui acordado com o barulho de uma expedição francesa que se preparava para deixar o Refúgio Tete Rousse em direção ao Grand Couloir. Eles eram cinco ao todo. Às 2h30 me levantei e comecei me preparar para a escalada. De repente, vejo a expedição francesa, que havia partido há quase duas horas, voltar ao refúgio. Perguntei o motivo do retorno: ‘Já tem muita pedra descendo pelo Grand Couloir’. Ali é como uma montanha russa: ora desce pedra, ora não. E elas vêm muito rápido.”
“Olhei para o Brian e falei: ‘E aí, vamos encarar essa?!’. Sem pensar duas vezes, ele deu o sinal de positivo, o que me deixou muito animado pois eu não estava disposto a continuar a expedição sozinho. Com tudo isso, deixamos o refúgio quase às 4h. Ainda estava escuro e tivemos que usar as lanternas de cabeça. Vinte minutos após deixarmos o refúgio chegamos ao Grand Couloir, sabendo do risco que estava correndo, trabalhei o mais rápido possível para cruzar a área de avalanches.”
“Por causa do grande número de alpinista que tentam escalar o Mont Blanc e também devido a grande quantidade de acidentes fatais neste local, o Clube Alpino Francês instalou cabos de aço ligando os dois lados do Grand Couloir. Desta forma, a passagem por este local torna-se um pouco mais segura. Mesmo assim, o risco de acidente ainda é muito grande, pois as pedras rolam muito rápido, chegando a atingir 120 km/h. A melhor forma é passar o mais rápido possível no momento em que ninguém mais esteja cruzando o Grand Couloir.”
“Logo que cheguei, como já estava com a cadeirinha, clipei um mosquetão e com uma fita tubular de 2 metros de extensão e me liguei ao cabo de aço. Tomei fôlego e comecei a passagem. Tentei correr mais devido à altitude (cerca de 3.200m). Não conseguia, a neve não estava tão fofa mas estava bem alta. Durante a passagem caminhei com neve na altura do joelho.”
“A visibilidade estava ótima e em nenhum momento eu tirei os olhos do Grand Couloir. Caminhei olhando lateralmente, sempre alerta para a alguma pedra que por ventura estivesse rolando. Três minutos mais tarde eu já tinha passado e logo depois Brian também passou. Não havia por que comemorar, mas eu estava supercontente por ter cruzado aquela perigosa área de avalanches sem maiores problemas.”
Depois de cruzar o Grand Couloir, outro desafio nos aguardava: uma parede rochosa com cerca de 600m de altura. Sempre pratiquei escalada em rocha com a Equipe Neblina. Logo esta parede não seria assim tão difícil, pois era uma escalada de 3º ou 4º grau. Porém tudo isso muda se a parede estiver completamente cheia de gelo e neve. E ainda por cima não havia nenhum tipo de proteção (grampos ou chapeletas) – não tinha como usar as cordas.”
“O jeito foi encarar e subir o paredão rochoso. Estávamos muito longe para desistir, com o gelo deixando tudo mais perigoso. Consegui chegar ao final do paredão depois de três horas e meia de ascensão sem parar. Foi a parte mais difícil da escalada.”
Decisão arriscada
“O final desta parede era exatamente o Refúgio Gouter (3.800m) onde, a princípio, passaríamos a noite para só então fazermos o ataque ao cume. Chegamos ao refúgio às 7h40, muito tarde para se tentar o cume. Nessa hora a neve já estava mais solta e fofa do que nas primeiras horas do dia.”
“Uma hora mais tarde decidimos fazer uma curta caminhada pela rota que levava até o cume. Normalmente os alpinistas levam cerca de seis para chegar ao topo a partir do refúgio Gouter. Caminhamos cerca de uma hora e meia e vimos que as condições da neve e do tempo estavam favoráveis. Neste momento tomamos uma decisão que poderia ter custado nossas vidas e o sucesso da expedição: decidimos seguir até o cume sem parar. Faríamos o Mont Blanc neste dia, sem esperar o próximo.”
“Meu relógio marcava 11h45, tudo estava perfeitamente bem apesar do cansaço e da dificuldade em andar devido a altitude. Cada passo não era maior do que 15 ou 20 centímetros. Durante todo o ataque ao cume encontramos várias outras expedições, só que na direção contrária. Se algo acontecesse não haveria ninguém na montanha para pedir o resgate em caso de acidente.”
“A neve foi ficando menos solta, porém a inclinação da montanha aumentava. A esta altura já tínhamos chegado a 4.362m, exatamente no refúgio Vallot. Usado apenas em caso de emergência, ele é o último antes do cume. Quando cheguei lá, minhas forças se renovaram, meu ânimo dobrou de tamanho e uma forte dose de confiança correu pelas minhas veias, pois, em termos de altitude, cerca de 500 metros me separavam da vitória.”
“Fizemos uma curta parada próximo ao refúgio Vallot e continuamos a ascensão. Já estávamos escalando há cerca de quatro horas e o cume estava muito próximo. Estávamos totalmente expostos ao vento forte e congelante dos Alpes. O cansaço provocado pela altitude fazia com que eu subisse cada vez mais devagar. Eu passava pelo último perigo real que o Mont Blanc “oferece”: estava escalando entre dois grandes abismos, como se fosse o fio de uma navalha, um lugar onde é impossível colocar os dois pés lateralmente ao mesmo tempo por falta de espaço. A direita estava a Itália, com queda de 400 metros; à esquerda estava a França e um abismo com cerca de 300 metros.”
“Quando eu já estava quase no final desta passagem, um forte vento veio do nada. A única solução para não ser jogado abismo abaixo foi cravar a piqueta na neve e abaixar. Cinco segundos a mais e eu hoje seria apenas história. Depois de mais este desafio, eu sabia que nada me impediria de conquistar o Mont Blanc.”
“Exatamente às 15h08 do dia 21 de junho de 1998, eu colocava o pé no cume do Mont Blanc, cinco horas após ter deixado o refúgio Gouter (uma hora a menos que a maioria dos alpinistas que escalam esta maravilhosa montanha). Logo que cheguei ao cume, não tive como conter a emoção e chorei por pelo menos dois minutos. Havia razões suficientes para isso: era o primeiro alpinista paraibano a chegar ao cume do Mont Blanc, fiz toda a ascensão sem o uso de garrafas de oxigênio, em 70% da expedição escalei completamente sozinho, sem fazer o uso de cordas.”
Passamos a noite no refúgio Gouter. Pouco tempo depois eu já estava na mesma parede de 600 metros com gelo, neve e rocha que havia escalado ontem, só que desta vez estava descendo, que é duas vezes mais perigoso do que subir. Não foi nada fácil. Depois de passar por esta área de avalanches, foi só seguir a trilha de volta. Chegamos À estação meia hora antes do trem partir de volta a Chamonix.” A Equipe Neblina já tem mais duas mais expedições prontas para serem executadas, uma para o Cerro Aconcágua na Argentina (a mesma montanha onde houve o acidente com os brasileiros em fevereiro de 98) e outra para o Monte Kilimajaro, na África. Só depende de patrocínio. Este texto foi escrito por: Webventure Last modified: julho 30, 1999