Na subida: mudança grande de altitude (foto: Arquivo pessoal)
Maratonistas são muitos, aventureiros por regiões áridas também. Mas pouca gente ousa juntar as duas coisas. Esta é a paixão do carioca Carlos Sposito, de 41 anos, primeiro brasileiro a correr no Saara e no Grand Canyon. Modesto, ele não se sente bem no rótulo de maratonista. “Prefiro aventureiro”, avisa.
O deserto fascina este analista de sistemas (“por profissão”) como nenhuma outra paisagem já visitada no vasto histórico de aventuras, que inclui mergulho em Cuba, bungee jump na Costa Rica, escalada no Corcovado… “Meu sonhos é conhecer todos os desertos do mundo, mas ainda faltam muitos.”
Para quem acha a paisagem desértica monótona demais, Sposito mostra quanta adrenalina e até bom humor podem surgir em meio a dunas, falta de água e cansaço. Por isso, a Aventura Brasil abre o diário deste aventureiro, deixando que ele revele com todos os detalhes – bons e ruins – o segredo de correr pelas regiões mais desafiadores do mundo.
A viagem começa pela Marathon des Sables, no Saara, da qual Sposito participou em abril passado. Dois meses depois, ele partiu para a travessia do Grand Canyon, nos EUA, feita em um único dia, há uma semana. Acompanhe passo a passo o ‘homem do deserto’.
“Quando me inscrevi na Marathon des Sables e aceitei o desafio que eu mesmo estava me impondo, minha criatividade não conseguia sequer chegar perto de imaginar as experiências que eu viria a passar por conta disto. Uma corrida de 225 km em 6 etapas, uma delas com 74 km, com todo o equipamento e comida nas costas, não se faz a toda hora.
Num período de sete meses minha vida resumiu-se a treinar, trabalhar e dormir”, lembra. A preparação de Sposito para o Saara reuniu quatro outros profissionais: os preparadores físicos Lauter Nogueira e Luciana Toscano, a fisioterapeuta Fernanda da Matta e a nutricionista Roberta Ogata. “Quando finalmente chegou o dia do embarque para o Marrocos, meu físico estava perfeito.”
Primeiro estágio (4/4/99)
distância: 30km
tempo de corrida: 4h06min03s
“A largada foi dada às 10h30 da manhã. Com o coração disparado e as mãos suando de tensão comecei a correr com 10,5 kg de carga além de 1,5 kg de água nas costas. Nos primeiros quilômetros, isto não parecia com um problema. Apenas nos primeiros. Quando dei por mim que não seria possível chegar ao último dia desta maneira, comecei a me assustar com a possibilidade de não haver nada que pudesse ser jogada fora para me aliviar desta tortura.
O terreno era muito difícil, com terra batida totalmente irregular com pedrinhas encravadas por toda a parte, incomodando e machucando a cada passo. Além disso, este estágio continha longos trechos de areia fofa e dunas.”
Preparadores avisaram Sposito para se poupar: “É claro que obedeci… até o km 20. Quando iniciaram-se as dunas e todos a minha volta passaram a caminhar, eu não resisti ao desejo de acelerar. O resultado desta pequena desobediência foi um excesso de acidez no estômago.”
Segundo estágio (5/4/99)
Distância: 32,5 km
tempo: 4h32min 49
“Acabei tendo insônia à noite e na manhã seguinte estava um caco. A musculatura das costas doía muito pelo impacto da mochila. Achei bom usar meus conhecimentos de concentração e tentar mentalizar um raro prazer com esta ‘leve’ mochila. Durante a corrida de ontem, eu consegui manter a calma e não parei para jogar fora metade das coisas que estava levando”, lembro.
“O segundo estágio foi marcado pelo terreno muito parecido com o da véspera acrescido de algumas montanhas, muitos trechos divididos entre corridas e caminhadas, que tiravam o ritmo de qualquer mortal.
Eu cheguei ao terceiro acampamento entrando direto na fila da água e, em seguida, na fila da caixa de água. Normalmente, para economizar volume e diminuir peso na mochila, costuma-se não levar isolante térmico para uso debaixo do saco de dormir. Ele é muito bem substituído por uma caixa de papelão aberta.”
Terceiro estágio (6/4/99)
distância: 37km
tempo: 4h32min49
Ao levantar para o terceiro estágio e olhar de mau jeito para as doces granolas decidi jogá-las fora e dividir a comida salgada do almoço e jantar por três. A partir deste dia comeria somente salgado, inclusive de manhã. Este desjejum desceu muito bem. Deu até disposição para jogar mais objetos fora e diminuir o peso da mochila.
Desta vez o já tradicional piso de terra batida com pedrinhas espalhadas era intercalado por muitas dunas e alguns trechos de areia fofa. Também atravessamos um pequeno rio com água e outros rios secos. Desta vez a mochila estava com um peso mais aceitável. O calor deste dia foi maior que os outros até então.
O dia seguinte seria o tão temido e esperado quarto estágio. Teríamos que percorrer 74 km com um longo trecho à noite, incluindo alguns quilômetros de dunas de 15 metros.
Quarto estágio (7 e 8/4/99)
distância: 74km
tempo de caminhada: 15h20min32
Sposito ensaia uma aula sobre como lidar com as moscas no deserto. “De manhã, após um gostoso arroz com frango, engoli uma desesperada mosca que foi mais rápida que eu. Espantá-las é uma das mais inócuas atitudes que você pode tomar no Saara. E isto se aprende em poucos dias. Deixar de afugentá-las de suas pernas e braços leva em média quatro dias. Para dar desprezo às que pousam em seu rosto bastam seis dias. Eu não cheguei à fase dos olhos. Creio que em uma corrida mais longa….”
Tudo pronto para o estágio de dois dias. “Caso eu corresse e caminhasse a intervalos previamente planejados, eu completaria o percurso entre 13 e 16 horas e ainda estaria bastante sacrificado para o estágio seguinte de 42 quilômetros. Se eu apenas caminhasse em um ritmo bastante puxado, de 7 km/h, durante todo o percurso, levaria praticamente o mesmo tempo e chegaria mais inteiro. Optei pela segunda possibilidade.”
Chega a noite. “No Posto de Controle 4, aos 44 km, ganhamos um bastão luminoso que deveria ser colocado atrás da mochila para permitir que os competidores que viessem atrás seguissem os da frente. Por volta de 19h30 a escuridão já obrigava o uso da lanterna de cabeça. Minutos antes eu já estava, pela primeira vez, sozinho. Onde a vista alcançava, à frente e atrás, eu não enxergava vivalma.
Algum tempo depois cheguei ao Posto 5, no km 52, aos pés das dunas do Erg Znaigui. Segui em direção a um marco no alto da primeira duna, que possuía um bastão luminoso igual ao que levávamos. Do alto desta duna, com muito esforço, vi um bastão luminoso parado ao longe. É claro que era o próximo marco. Fui em sua direção. Uma duna depois fui interceptado por uma japonesa e um americano que diziam estarmos na direção errada. Apontei-lhes o bastão luminoso e segui em diante. Conformados mas não convencidos, eles me seguiram.
Minutos depois encontramos mais um grupo com a mesma impressão dos dois. Quando apontei para o marco, vi dois bastões luminosos. Enquanto discutíamos, algo curioso aconteceu. O marco saiu andando junto com os outros dois competidores. Será que o marco, na verdade, era um Marco?
Este lapso custou-nos quase uma hora a mais no tempo total, havíamos desviado 180 graus. Menos pior que um grande nadador italiano que ficou perdido nas dunas por sete horas, até o amanhecer.”
Quinto estágio (9/4/99)
distância 42km
tempo: 6h25min03
“Acordei com muita disposição para correr. Lembrei-me então do que um veterano havia me dito antes do primeiro estágio: ‘a cada dia você se sentirá mais forte’. Eu me sentia muito forte. Eu jamais olharia com esta naturalidade que agora eu via alguém correr 42 km logo após ter caminhado 74.
“O quinto estágio se iniciava aos pés do Erg Chebbi, as dunas mais altas de toda a região. Elas atingem facilmente os 30m e estão em uma interminável seqüência de 14 km que nem veículos 4×4 têm possibilidade de cruzar. Durante exatamente 2h52, eu subi cada duna tendo certeza que seria a última. Isto aconteceu dezenas de vezes. Por um erro de cálculo, minha água acabou pelo menos três quilômetros antes das dunas terminarem. Não desejo esta experiência para quase ninguém…
No fim das dunas, diferentemente de muitos competidores, eu comecei a correr e só parei após atravessar a linha de chegada, sem caminhar um só metro em todos os 28 km que se seguiram após as cruéis dunas.”
Sexto estágio (10/4/99)
tempo: 59min37
O último dia da maratona começou com festa. “De manhã todos dançavam e tiravam fotos dos grupos que se formaram. O acampamento era uma alegria total, diferentemente dos outros dias, quando a tensão e a dor
reinavam. Após o tiro de largada, corremos na mesma direção das luzes que vimos na noite anterior indicando a proximidade da cidade.
Após alguns quilômetros de terra batida, cruzamos um rio por cima de algumas pedras e chegamos à periferia da cidade. Daí até a praça principal, local da chegada, cada vez havia mais gente. Empolgado pelos aplausos e gritos dos erfouldenses, abri a bandeira brasileira que levava. A partir deste momento, não parei mais de ouvir gritos de ‘Brasil! Brasil!’, acompanhados de ‘Ronaldo! Ronaldo!’.
Cruzei a linha já com saudades de todo este sofrimento e prazer que senti nestes dias. Meu tempo acumulado foi de 38h21min13 s, que me colocou em 338º lugar entre 580 competidores do mundo inteiro.”
“A idéia de ser o primeiro brasileiro a cruzar o Grand Canyon correndo surgiu durante uma conversa com a ultramaratonista americana Cathy Tibbetts, em fins de julho deste ano. Participante da Marathon des Sables no deserto do Sahara, também possuía no currículo participações na Maratona do Everest e na ultramaratona do Vale da Morte, além de adventure races como The Beast of the East.
Eu tinha menos de dois meses para me preparar para mais esta. Caras feias à parte, começamos o treinamento em busca do tempo perdido… Depois de 48 horas totalmente gastas entre aeroportos, vôos e estradas, cheguei quarta-feira passada (6/10) em Grand Canyon Village, base de onde partiria para a travessia, com o apoio da Wöllner Outdoor e da Hi-Tec.”
Sposito passou dois dias conhecendo o local. “A visão do canyon é aterradora para qualquer visitante, imagine para quem pretende cruzá-lo correndo”, descreve. Como no Saara, a diferença de temperatura era gritante no Grand Canyon. Durante o dia, beirava os 14 graus, caindo para 4 graus à noite, período escolhido pelo aventureiro para começar o treinamento in loco e se acostumar à altitude.
Driblando mulas
O início da travessia aconteceu às 8h do sábado (9/10) em South Rim, a uma altitude de 2.212m. “A trilha Kaibab é bem demarcada, pois além de ser usada por caminhantes, existe um trânsito considerável de mulas que transportam os mais preguiçosos (além de fazer salvamentos de caminhantes não preparados).
A descida foi muito agradável, pois a inclinação da trilha não chegava a comprometer demasiadamente o joelho. O fim da descida, após 10,1km e cerca de 2h15, ocorreu no encontro do rio Colorado, a 731m de altitude. Neste ponto havíamos variado 1.481m verticalmente.
Após cruzarmos a ponte Kaibab, corremos cerca de 2km quase horizontalmente até começar uma tenebrosa e inesquecível subida de 21,5km, com uma variação de altitude de 1.784m.
A altitude só começou a fazer efeito em torno de 4.000m. “Correr nesta altitude nem de longe lembrava uma caminhada. A necessidade de oxigênio fez-se presente não na forma de falta de ar, mas no cansaço e dores na musculatura impulsora da perna. Durante algum tempo foi possível conviver com isto. Porém, quando já havia vencido um bom pedaço, os trechos de corrida passaram a ser intercalados com caminhadas e os pontos de parada para descanso ficaram menos distantes.”
“Para piorar o fator psicológico a Cathy levou um altímetro. A cada 100 metros que vencíamos verticalmente ela comemorava, sem olhar o outro lado da moeda: ainda faltavam muitos outros 100 a vencer.
Sposito descobriu que o fim da trilha não significava o fim da tortura. “Quando estávamos a menos de 700m verticais da chegada (o que significavam vários quilômetros a correr!), a trilha deu uma guinada para baixo e não parou mais de descer. Cada metro descido era chorado mais do que quando foi subido. Quando já não entendia mais porque descíamos tanto, chegou a explicação. O ponto final de nossa travessia não era na face que estávamos subindo, mas na face oposta.
O aventureiro tenta explicar o engano: “a trilha havia subido a primeira face apenas para contorná-la, descê-la em seguida e pegar uma ponte suspensa no nada que leva à outra face. Agora sim, deveríamos subir tudo novamente. Tem que haver muita força psicológica para aturar!
Depois deste contratempo a subida realmente parecia uma subida. Nada mais de descidas e nem de horizontais para descanso. A inclinação aumentou muito e isto acentuou bastante a sensação de peso da mochila (lembra das componentes X e Y das aulas de física?).
Começo ou fim?
Finalmente, quando parecia que só terminaríamos a trilha no céu, ouvimos as abençoadas vozes de Odette e Scott, nossa equipe de apoio. ‘Chegamos, eles estão nos esperando no final da trilha…’ Doce ilusão. Eles começaram a descer a trilha para nos encontrar quando acharam que já era tempo de se preocuparem. A agradável sensação de terminar este pesado desafio foi adiada por mais 45 intermináveis minutos, quando finalmente chegamos ao topo da trilha North Kaibab.
O cronômetro marcava 9h52 e o freqüencímetro cardíaco indicava um gasto de 6.800 kcalorias. Estávamos a 2.515m de altitude e havíamos atravessado 33,6 km de trilhas. Agora era descansar de mais esta e pensar na idéia que Cathy e eu tivemos para uma aventura no Alasca…”
Emendando corridas exóticas como quem planeja viagens de fim de semana, Sposito vai colecionando façanhas. Enquanto planeja a próxima, vai trabalha de fiscal na Expedição Mata Atlântica, corrida de aventura que reúne cinco modalidades esportivas. Se não tiver pernas, acompanhe-o no site www.sposito.com.br
Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira
Last modified: outubro 15, 1999