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Nos caminhos de Guimarães Rosa

Redação Webventure/ Aventura brasil

Vereda  que está no título de um dos 100 livros mais importantes da História. (foto: Jurandir Lima)
Vereda que está no título de um dos 100 livros mais importantes da História. (foto: Jurandir Lima)

Recentemente, o jornal inglês The Guardian elegeu as cem maiores obras literárias da humanidade. A única representante brasileira eleita foi “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.

Este livro foi baseado numa viagem que o escritor fez, há exatos 50 anos, acompanhando uma boiada, tocando 600 cabeças de gado. Guimarães Rosa, juntamente com oito vaqueiros, percorreu 240 quilômetros durante 10 dias indo da Fazenda Sirga, em Três Marias, à fazenda São Francisco, sediada no município de Araçaí (MG).

Para comemorar este cinqüentenário histórico, realizei, juntamente com um grupo de amigos o projeto “Nos Caminhos de Guimarães Rosa”, com um jipe Troller. A expedição foi dividida em duas etapas. Na primeira, passamos pelas 10 fazendas onde o escritor pernoitou e, na segunda, percorremos o cenário descrito pelo personagem Riobaldo Tatarana do romance “Grande Sertão: Veredas”.

Das palmeiras aos buritis – Durante 15 dias percorremos 3.800 quilômetros, saindo de São Paulo, para retratar o Sertão mineiro. Num roteiro entrecortando o Cerrado visitamos várias cidades, povoados e vilarejos, alguns ribeirinhos ao rio São Francisco. O percurso off-road iniciou em Araçaí rumo à Chapada Gaúcha (MG), onde está localizado o Parque Nacional Grande Sertão Veredas.

Registramos tudo em fotografias e relatos, desde as palmeiras dos buritis contrastando com os belos pores-do-sol aos cantos dos pássaros e, como não podia faltar, a prosa com os sertanejos. Tudo compondo um cenário místico e pouco conhecido de milhões de brasileiros, mas que está presente no cotidiano dos vaqueiros, elemento fundamental nos escritos de Guimarães.

Nascido na pequena cidade de Cordisburgo (MG), Guimarães Rosa mudou-se para estudar em Belo Horizonte, onde se formou em medicina; e de lá seguiu a carreira de diplomata antes de dedicar-se à literatura.

Mas Guimarães era, antes de tudo, um grande botânico e naturista; como ninguém, observava detalhadamente os sons da natureza. Na viagem de 1952, Rosa mantinha, pendurada no pescoço, uma cadernetinha onde anotava tudo o que via e ouvia, mesclando a realidade geográfica do sertão mineiro e a interação homem-natureza.

Registrou o trabalho do vaqueiro, as crenças e expressões populares, as músicas, brincadeiras, jogos e danças, os remédios caseiros; enfim, o corpo a corpo do vaqueiro com o sertão.

Sensações experimentadas – A cor, o som e o cheiro dos Gerais exalam dos seus textos. Rosa via o mundo animadamente e fazia uso da audição, do olfato, do tato e do paladar para captar a intensidade do momento vivido. A natureza se revela em múltiplas sensações experimentadas. As descrições detalhadas de belas auroras e crepúsculos, do canto e da plumagem dos pássaros, da cor e do cheiro das flores, do Morro da Garça; são todos registros sertanejos que se apresentam com graça ao leitor redimensionando o universo em constante processo de transformação.

O tempo é registrado de duas maneiras: através dos fenômenos naturais e por meio do relógio de pulso de Guimarães, que faz questão de anotar a hora e os minutos. A natureza descrita nas notas está em movimento constante. Rosa não assiste a um espetáculo da natureza que tem como cenário o sertão mineiro; ele convive, está integrado com o cosmo.

A vida no sertão pulsa no diálogo sobre cercas e porteiras, nas conversas sobre nomes e descrições de flores e passarinhos, nas artimanhas para negociar o gado, na observação atenta do comportamento dos bezerros, vacas e bois, nas cantorias de quadras recitadas pelos vaqueiros, nas brincadeiras de adivinhação, na forma e no jeito do pessoal se expressar, os estouros de boiada, os bichos da noite, na classificação de chifres, berros, cores e bois de carro. O vivido documentado.

Os elementos se misturam – A visão que Guimarães tem dos elementos naturais – ora imparcial e precisa (nomes, datas, horas, etc), ora impregnada por peculiaridades resultantes de experiências pessoais (como por exemplo, a descrição do vôo do pica-pau) abre a possibilidade de se olhar o ser humano integrado.

O olhar roseano não distingue a natureza enquanto sujeito ou enquanto objeto; os elementos se misturam numa comunhão religiosa todos os seres vivos comungam o mesmo chão, ar e água do sertão; envolvem-se através de uma religiosidade traduzida pela irmandade com o universo, que possibilita encontrar os fios que tecem a mesma teia da vida.

Rosa consegue mesclar o real e o imaginário de maneira reflexiva. Inspira, instiga e impulsiona o leitor a conhecer in loco o sertão místico. Conhecer os Gerais, seus encantos e veredas.

O roteiro da viagem de 1952, ou seja, da Boiada corresponde a cada dia da travessia e indica os lugares para pouso da comitiva. Manuelzão, que mais tarde se transformara em personagem de Rosa, era o chefe da boiada e traçou a rota usando como referência os nomes dos povoados e fazendas (ou de seus proprietários) na seguinte seqüência: Sirga, Tolda, Andrequice, Santa Catarina, Catatau, Riacho das Vacas, Meleiro, Etelvina, Juvenal, Taboquinhas e São Francisco.

A Fazenda da Sirga servia como recria e a São Francisco como engorda do gado; ambas de propriedade do Chico Moreira, primo do escritor. Andrequice não foi local de pouso, apenas ponto de parada.

Por uma questão de logística, a nossa expedição foi realizada no caminho inverso ao da Boiada. Partimos de São Paulo no dia 6 de outubro de 2002 e pernoitamos em Belo Horizonte. De lá, fomos direto à cidade de Araçaí, onde começamos a empreitada.

O local da célebre foto – De inicio, a primeira dificuldade encontrada foi conseguir localizar a Fazenda São Francisco. Ocorridos 50 anos alguns moradores locais sabem da viagem de Guimarães, mas pouco conhecem sobre o roteiro. A nossa tática era o “pára e pergunta”.

Após algumas horas perdidos finalmente encontramos a tal fazenda de onde partimos para a trilha da Boiada. A nossa grande intenção naquele dia era subir o morro conhecido como “Capão do Defunto”. Foi deste local que o fotógrafo Eugenio Silva, correspondente em Minas Gerais, na época, da Revista O Cruzeiro, realizou a antológica fotografia do escritor montado na mula Balalaica e olhando para trás.

Paramos para contemplar o cenário e seguindo em frente nos deparamos com outra dificuldade. Desta vez era a trilha que, destruída pela ação do tempo, permitia a passagem apenas a cavalo. A solução foi um trecho alternativo. No caminho, detectamos as árvores do Cerrado recompondo suas folhagens após as poucas chuvas que haviam caído – sinais da primavera.

Cagaitas e o “conquistador” – Um companheiro da expedição avistou várias cagaitas – frutas típicas da região. Sem medo de estar contaminada, apanhou uma caída no chão e degustou-a dizendo: “Esta já foi bicada por passarinho, por isso estava saborosa”. Ao final da tarde, antes de chegar à Fazenda Taboquinhas, contemplamos os primeiros raios do luar surgindo no horizonte sem fim.

Estando em Araçaí, não deixamos de conhecer “Seu Amerquinho”, um dos fazendeiros mais tradicionais do município e que conversou pessoalmente com Guimarães Rosa. Aos 88 anos de idade, Amerquinho mantém a postura de homem vaidoso, porém muito educado e receptivo.

Na juventude, foi considerado o maior namorador da região. Possuía as melhores botas de couro e cavalos da melhor raça, elementos fundamentais para os conquistadores da época. Metia-se em brigas e a mãe, fazendeira poderosa, livrava-o das conseqüências.

Amerquinho, totalmente lúcido, afirma que foi caçador de onças e matava os felinos com zagaia espeto em forma de lança com cabo de madeira e ponta de metal. Sua filha, Maria da Conceição, sempre sorridente, fez questão de exibir o “Touro Maranhão”, um boi de carro possuindo um par de chifres exuberante. A envergadura do chifre certamente chega a um metro e meio de comprimento.

A sede da fazenda, construída há mais de duzentos anos, está bem conservada e possui o quarto das filhas moças com o acesso apenas pelo quarto dos pais; uma característica típica daquela época.

Passando por Cordisburgo paramos para encontrar o “Brasinha”, diretor cultural da Associação dos Amigos do Museu Casa Guimarães Rosa. Ele conhece toda a obra do escritor e, com empolgação, interpreta e comenta, em detalhes, várias passagens dos seus livros. Brasinha faz questão em dizer que Guimarães será eterno, pois transmitiu para o mundo, através da literatura, o universo sertanejo.

Seguindo a expedição, chegamos à Fazenda Juvenal nome do falecido proprietário. Dona Antonieta, esposa de Juvenal, ao perceber nossa chegada, veio ao nosso encontro e com sorriso estampado no rosto perguntou: “Ocês é gente de Magalhães Rosa?”. Ela quis dizer se éra,os parentes de Guimarães Rosa.

Aos 81 anos, também totalmente lúcida e com expressão saudosista, elembra com orgulho o dia em que Guimarães pousou na sua azenda. “Fazia sete dias que Magalhães não tomava banho e aqui reparei uma bacia com água pra ele se banhar”, afirmou a anfitriã.

Até hoje, dona Antonieta guarda a cama, a colcha e lençol em que Guimarães dormiu. Os outros boiadeiros dormiram arranchados. “Quando chegaram aqui em casa pensei que ele fosse o chefe da Boiada e nunca imaginei que fosse médico”, ressaltou.

Percalços – Saindo da Fazenda Juvenal, nos deparamos com a maior dificuldade para continuar a rota da Boiada. Pegamos várias trilhas e ninguém sabia nos informar sobre a existência da Fazenda Etelvina. Depois de muitas tentativas chegamos a Curvelo, onde conhecemos Seu Furlaneto, cujo pai estudou com Guimarães.

Furlaneto informou que teríamos de mudar a rota e seguir em direção ao local conhecido como Barreiro do Mato. Diante disso, atravessamos uma vasta planície de Cerrado até chegar à Fazenda Retiro dos Gomes. Ali encontramos uma senhora que, assustada com a nossa presença, se negava em ceder qualquer tipo de informação.

Após muita conversa, conseguimos entender a recusa. Dona Maria, 44 anos, nunca tinha ouvido falar sobre o escritor e com a nossa chegada sentiu-se acuada pensando que fossemos invasores e que iríamos nos apossar das suas terras. Ao final da conversa, sentiu-se segura e disse que a Fazenda Etelvina foi de sua avó e virou plantação de eucaliptos. A antiga sede encontra-se em ruínas.

Somente um pé de manga – O próximo destino foi a Fazenda Meleiro. Sem maiores dificuldades para encontrá-la chegamos lá por volta das 21 horas. A casa original em que Guimarães pousou não existe mais. No local sobreviveu apenas um pé de manga, com sua copa imponente.

O antigo curral era feito com régua e esteio de aroeira madeira dura e resistente. Seu Jose Martins e dona Cleide, proprietários atuais, ficaram felizes com a nossa visita. Disseram que naquela noite teriam com que conversar e, sem medo, dispuseram o quintal para nosso acampamento. A casa do casal possui dois banheiros; o externo é exclusivo para o banho masculino.

No dia seguinte, outra dificuldade. Desta vez foi encontrar a Fazenda Riacho das Vacas. Para saber o caminho tivemos de ir ate o município de Felixlândia, onde conhecemos dona Cruzelina, de 87 anos. Ela não se recordava da estrada, mas indicou outro morador que conhecia a fazenda.

Com as informações dele, seguimos para a Serra do Cruzeiro. Depois de percorrer vinte quilômetros estávamos totalmente perdidos e saímos num povoado conhecido como Saco Fechado. Desorientados, encontramos uma pessoa que sugeriu outra estrada até chegarmos noutra fazenda que soubesse explicar a trilha correta.

Após tanto “sobe e desce”, finalmente encontramos a fazenda Riacho das Vacas. Somente conseguimos identificá-la através de uma placa com seu nome. Lá, encontramos apenas os alicerces da casa antiga. Os atuais moradores sequer sabiam quem era Guimarães Rosa. Saindo da fazenda, avistamos o famoso Morro da Garça, local com várias citações em “Grande Sertão: Veredas”.

Para recuperar o tempo perdido, fizemos uma pequena alteração na seqüência do roteiro e resolvemos visitar a Fazenda Santa Catarina antes de conhecer a Catatau. A partir dali entramos nos Gerais, onde começamos a avistar as primeiras veredas pelo caminho. Segundo os moradores locais, os Gerais compreendem a região que vai desde a Serra do Jacaré até a Barra do Rio de Janeiro – na Silga em Três Marias.

A Fazenda Santa Catarina esta bem conservada e a casa, com mais de 80 anos, continua com a estrutura intacta. Conversamos com Wilson Mendes, 65 anos, filho de Pedro Mendes, que acolheu a Boiada. Seu Wilson nos disse que, em 1952, os boiadeiros eram consideradas pessoas importantes, por isso eram bem recepcionados.

O lugar perto do céu – Em “Grande Sertão…”, Guimarães faz referência à Fazenda Santa Catarina como sendo o lugar perto do céu. O lugar onde Riobaldo encontra Otacília, um dos seus amores. Realmente o escritor tinha razão; o local detém uma beleza singular. Quando lá chegamos, tivemos a nítida impressão de estar no cume de uma montanha, no olimpo, o ponto supremo da nossa expedição. Para exemplificar a beleza do cenário, ao entardecer avistamos dois casais de araras azuis sobrevoando na contra-luz do sol e, tendo ao fundo, um céu totalmente azul e sem nenhuma nuvem sequer.

Na Fazenda Catatau, não dispensamos mais de vinte minutos. Uma casa moderna foi construída no local onde existia a antiga sede da fazenda. O curral, embora reformado, permanece com as mesmas características. Para ter acesso à casa, o visitante terá de cruzá-lo e enfrentar o bom humor das vacas e bois.

Memorial Manuelzão – Para encerrar o roteiro da Boiada, visitamos as duas últimas fazendas numa única tarde. Pela manhã fomos a Andrequice, local onde morou e hoje fica o Memorial Manuelzão. Chegando na Tolda encontramos o atual proprietário, Antonio Gabriel Soares, 84 anos, que, embora morando sozinho preserva a antiga casa com a estrutura original.

A casa possui um rego d’água que atravessa todo seu interior. A cozinha mantém o assoalho de madeira e o antigo fogão à lenha defuma pedaços de carne e toucinho com a mesma tranqüilidade mineira. Ao lado do fogão, um guarda-louças armazena potes com mantimentos e os utensílios de alumínio que, apesar de antigos, mantêm o brilho demonstrando o capricho do asseio sertanejo. As paredes guardam saudades com os retratos pintados a mão.

A caminho da Sirga cruzamos pela capela onde está sepultada a mãe de Manuelzão. Conta-se que, em meados da década de 40, depois de ficar doze anos sem ver a mãe, Manuelzão a reencontrou em Três Marias. Passeando pelos arredores da cidade, de onde se avista o rio São Francisco, ela comentou com o filho que aquele seria um lugar ideal para se construir uma capela.

Festas – Morreu dois dias depois e lá, naquele mesmo lugar, Manuelzão fez um cemitério onde a enterrou. Fez uma cova com quatorze palmos de profundidade para que a sepultura nunca fosse violada. Em seguida, construiu uma capela. Durante anos, Manuelzão realizou festas ao redor da capela e uma delas foi presenciada pelo escritor. Este episódio acabou se transformando no conto “Festa de Manuelzão”, do livro “Manuelzão e Miguilim”.

Ao chegarmos à Fazenda Sirga verificamos que a mesma está totalmente abandonada, restando apenas destroços da antiga sede local. Ficamos decepcionados por encontrá-la daquela maneira, entretanto foi um momento de glória para a nossa expedição, pois fomos os primeiros a conseguir percorrer todas as dez fazendas a rota da Boiada.

Concluído o roteiro, permanecemos uma manhã em Três Marias, navegando pelas águas do Velho Chico. Seu Norberto, pescador há 42 anos, pilotava nossa voadeira e mostrava os impactos que o rio vem sofrendo ao longo dos anos. O Velho Chico continua agonizando.

Em Três Marias, deixamos o cenário real para entrarmos no mundo imaginário de Guimarães Rosa. Entretanto o que verificamos logo de inicio foi uma das grandes inquietações do escritor. Nas anotações realizadas em 1952, Rosa já revelava a preocupação com os desmatamentos em ritmo crescente.

Na época, as siderúrgicas mineiras estavam produzindo a pleno vapor, consumindo o carvão vegetal lenha boa do Cerrado. Hoje, após 50 anos, praticamente toda a região encontra-se ocupada por extensas plantações de eucalipto, salpicadas por pouquíssimas veredas em estado adiantado de assoreamento.

No caminho entre Três Marias e Pirapora nos perdemos no eucaliptal e chegamos a uma vila de carvoeiros. As casas eram construções de pau-a-pique. Todos os homens que vimos no vilarejo estavam bêbados, afinal foi dia de pagamento. Já era noite e por sorte encontramos um motociclista que seguia para o mesmo destino e nos guiou.

O vapor Benjamim Guimarães – Em Pirapora, atravessamos a lendária ponte da estrada-de-ferro Marechal Hermes e visitamos o vapor Benjamim Guimarães, o único ainda em condições de navegar pelo Velho Chico. Na seqüência, passamos pela Barra do Guaicuí, onde ocorre o encontro do Rio das Velhas com o São Francisco; lugar onde Riobaldo declara seu amor por Diadorim.

No povoado local há uma igreja em ruínas que, segundo alguns relatos, teve sua construção interrompida quando da disputa de terras entre os jesuítas e os índios que habitavam a região no início do século 18. Atualmente, a igreja está recoberta pelas raízes de uma gameleira mostrando que a natureza supera as ações do homem.

Seguimos margeando o São Francisco até chegar a Ponto Chique. Após passar por Ibiai avistamos um magnífico pôr-do-sol em meio aos arbustos do Cerrado. Em Ponto Chique conhecemos Seu Raulino dos Santos, típico mineiro desconfiado que vive da roça cultivando mandioca, arroz, feijão e milho.

Xerife em Ponto Chique – Na conversa, Raulino passou as mãos calejadas pelo rosto e com expressão de sofrimento disse: “No ano passado deu seca. A chuva chegou, rompeu tudo e rebuçou o arroz”. Quis dizer: depois da estação seca, a chuva veio com intensidade e o excesso das águas encobriu os cachos de arroz, perdendo a safra.

Com apenas 4.400 habitantes, Ponto Chique é uma cidade com características singulares, possui até xerife. Seu Zé de Abílio, 66 anos, o todo poderoso ordena quem deve ir pra cadeia quando ocorre uma briga por embriagues. Coisas do sertão.

Atravessamos o São Francisco para a margem esquerda e chegamos a São Romão, conhecida como a Mesopotâmia brasileira. A cidade é cercada por dois grandes rios, afluentes do São Francisco.

Cruzando um desses afluentes do São Francisco, o Urucuia, verificamos outra passagem de “Grande Sertão: Veredas”: “o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia paz das águas… É vida!…”.

Explicando: a travessia deste rio é feita através de uma balsa. Uma corda fica esticada de uma margem a outra do rio e o condutor da balsa segura esta corda puxando-a. A inércia deste movimento faz com que a balsa se desloque para a margem oposta. Isto ocorre porque as águas do rio são calmas, serenas, quase paradas. Realmente! Guimarães tinha razão: “paz das águas… É vida!…”

No deslocamento entre Urucuia e Serra das Araras cruzamos pelo cenário mais bonito da nossa expedição. Uma vegetação de Cerrado nativo cortada por uma estrada de areia que faz com que os pneus do jipe derrapem como se estivessem num tobogã natural.

Este Cerrado também preserva uma fauna rica em espécies; algumas sob risco de extinção. Conseguimos avistar uma raposa cruzando a nossa frente. As emas e seriemas fazem deste lugar seu habitat preferido. Segundo João Lira, nosso guia local, é comum encontrarmos emas andando em bandos.

O Parque – Já o Parque Nacional Grande Sertão Veredas possui uma importância incomensurável para a preservação do ecossistema local. Denotando um oásis, as veredas acumulam água que se transformam em riachos. Estes riachos são formadores dos rios, sendo o principal deles o Rio Preto, que vai desaguar no Carinhanha.

O rio Carinhanha é um divisor natural entre a Bahia e Minas Gerais. Nas veredas se desenvolvem os buritis, a mais brasileira das palmeiras, que, além de proteger as nascentes, servem como local de pouso e ninhais das várias espécies de aves como araras, tucanos, papagaios, periquitos e garças-branca-pequena.

O Parque habita ainda veados-campeiro, lobos-guara, suçuaranas, tatus-canastra e tamanduás-bandeira. Claro que não podia faltar o elemento fundamental dos escritos de Guimarães. Estou falando dos sertanejos que, apesar de habitarem a área do Parque, sobrevivem aos modos do homem moderno.

Mulheres do Candeal – Retornando em direção ao São Francisco, passamos pela cidade de Cônego Marinho e fomos conhecer as mulheres do Candeal. São caboclas que mantêm a força de trabalho local, sustentando suas famílias. Com a tradição de mãe para filha, um grupo de mulheres fabrica várias peças em cerâmica, de maneira totalmente artesanal. Elas retiram a terra do próprio local, transportam até o galpão da cooperativa, amassam o barro com os pés e depois confeccionam as peças. No final, as peças são pintadas pelas próprias caboclas, com uma tinta preparada por elas demonstrando a influência indígena remanescente no local.

As mulheres do Candeal andam o tempo todo de pés no chão. Faz parte da cultura local. Elas dizem que a peça (artesanato) fica melhor quando a mulher não esta calçada. O máximo que os homens ajudam é na queima das peças. Alguns se prestam a cuidar dos filhos enquanto as mulheres trabalham.

A expedição foi concluída em Januária. O calor foi sufocante durante todo o percurso e, para encerrar, ao final da tarde, fomos às margens do São Francisco tomar uma cerveja, afinal também somos filhos de Deus! O local nos privilegiou com um pôr-do-sol magnífico. Tivemos a oportunidade de observar aquele horizonte e apreciar as várias nuances do vermelho do sol refletindo nas águas azuladas do Velho Chico.

Foi um momento de intensa reflexão, afinal como dizia Guimarães: “O sertão é sem fim; O sertão é do tamanho do mundo; O sertão tá dentro da gente”.

A expedição Nos Caminhos de Guimarães Rosa foi realizada por Trilhas & Trilhas. Teve o apoio de Troller, Trilha SP Máster, Nikon, Camping’s World, Thule, Bags Adventure, Tag Design, Beephoto.com.br, Planetaoffroad.com.Br, Rádio Eldorado e Revista Tribo Off-Road.

Este texto foi escrito por: Jurandir Lima

Last modified: janeiro 9, 2003

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Redação Webventure
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