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Jornalista que teve acidente no monte Aconcágua esclarece o episódio

Redação Webventure/ Montanhismo

A jornalista de Sorocaba (SP) Rita Bragatto, que sofreu a perda do marido Eduardo Alvarenga da Silva, após terem realizado a subida ao monte Aconcágua, na Argentina, relata aqui sua versão deste triste episódio que aconteceu no dia 6 de janeiro de 2005 na alta montanha e que comoveu todo o país.

Estar na montanha é estar mais perto de Deus

Não tenho qualquer intenção de causar polêmica. Nada trará meu marido de volta. A morte do Eduardo foi uma fatalidade e minha intenção é contar um pouco do desfecho desta viagem, que foi uma das mais bonitas que fizemos juntos, e também alertar futuros montanhistas e sugerir melhorias para contribuir para o profissionalismo no esporte.

Eduardo e eu nunca fomos aventureiros, no sentido ruim da palavra. Temos uma história séria de montanhismo, marcada por experiências importantes, e que não podem ser reduzidas a uma visão errônea dos fatos.

Se não fôssemos competentes, não teríamos atingido o cume do Aconcágua, principalmente, em nossa primeira tentativa. Para se ter uma idéia, apenas 30% das pessoas que tentam o ataque ao cume conseguem fazê-lo com sucesso.

Durante todo o nosso processo de preparativos para esta expedição, assim como durante nossa viagem, a responsabilidade e o rigor estiveram presentes em nossas ações. Não poupamos esforços físicos ou financeiros para realizar nosso sonho.

Pesquisamos intensamente o cenário que queríamos desbravar e conquistar com outros profissionais da área, através de literatura impressa e de sites especializados.

Realizamos até o último dia antes do embarque para a Argentina treinamento físico especializado para a expedição e acompanhamento médico rigoroso. Nosso planejamento logístico foi igualmente criterioso, do preparo no Brasil à aclimatação e alimentação, entre outros fatores.

Uma expedição desse nível requer investimento e não poupamos sequer um centavo. Adquirimos o melhor equipamento do mercado e fomos comprar parte dele nos Estados Unidos. Também fomos à Bolívia para nos preparar para escalada na neve.

Eduardo teve formação escoteira e a prudência sempre foi uma de suas características. E outra: tínhamos muito a perder, éramos um casal que servia de exemplo para muita gente não só na parte de relacionamento, como também profissionalmente.

Por isso, quero esclarecer que nossa opção por não contratar guia para o Aconcágua não era uma questão de dinheiro. Isso é um absurdo.
Decidimos fazer a escalada sozinhos porque tínhamos a certeza do que estávamos fazendo. Somos experientes e cautelosos.

E a maior prova disso é que cumprimos toda as etapas da expedição “a cada dia”, como ele mesmo falou durante toda a viagem. Levamos dez dias para chegar ao cume, ou seja, o mesmo tempo que as agências demoram para subir com seus clientes. Não houve loucura. Não houve imprudência. Não houve negligência.

A idéia de subir o Aconcágua surgiu depois de concluirmos com sucesso nossa viagem à Patagônia e começou a tomar forma em maio do ano passado. Fizeram parte de nossos preparativos:

  • Viagem exclusiva para os Estados Unidos, a fim de adquirirmos parte do equipamento de escalada necessário.

  • Viagem para a Bolívia, com o objetivo de realizar um treinamento específico de escalada em gelo na Cordilheira Real (nome local da Cordilheira dos Andes), aclimatação e teste não apenas de nossos equipamentos como também a reação de nosso corpo num cenário parecido com o que iríamos encontrar no Aconcágua.

  • Preparação física realizada de forma assistida por profissionais especializados da academia Ápice Medicina Esportiva, de Sorocaba (SP), diariamente, sob a supervisão de profissionais especializados.

  • quatro dias de aclimatação na Cordilheira Cordon Del Plata, após o dia 19 de dezembro, quando deixamos o Brasil rumo a Mendoza.

    Partimos de São Paulo rumo a Mendoza no dia 19 de dezembro. Passamos quatro dias de aclimatação na Cordilheira Cordon Del Plata, justamente para nos prepararmos melhor para o Aconcágua. Subimos a cerca de 5 mil metros.

    Nossa entrada no parque ocorreu em 28 de dezembro para que o processo de aclimatação fosse realizado a tempo de atacarmos o cume entre os dias 5 e 6 de janeiro. Nosso retorno ao Brasil estava marcado para 15 de janeiro para que pudéssemos ter muito tempo para não fazer nada com atropelo.

    Durante todo esse tempo, realizamos diariamente, no serviço médico do parque, os exames de oxímetro (que mede a saturação de oxigênio no sangue), a medição de pulsação e da pressão arterial. Estes exames servem para testar o processo de aclimatação de um montanhista e avaliar se está em perfeitas condições de saúde para suportar uma escalada desse nível.

    Em todas as ocasiões, os resultados apresentados tanto por mim como pelo Eduardo foram muito bons. Meu índice no oxímetro era de 92%. O do Eduardo era de 91%.

    No dia 6 de janeiro, deixamos o acampamento Nido de Condores por volta das 1h30. Geralmente, muitos montanhistas deixam o acampamento às 3h, mas como caminhamos devagar, achamos mais prudente sairmos mais cedo para termos tempo de reconhecimento seguro do terreno e de fazer nossa alimentação sem pressa, adequadamente.

    Carregávamos cada um cinco litros de água (sendo dois litros de isotônicos). Vestíamos três camadas de roupas internas (nas pernas), e seis camadas na parte superior (peito).

    Não levamos barracas de dormir para esta etapa do percurso, porque não se leva este tipo de equipamento para o ataque ao cume. O equipamento levado nessa etapa consistia de rádio comunicador (inclusive baterias sobressalentes), lanches de trilha (barras de proteína, gel), um cobertor de emergência para cada um de nós, além de pilhas extras para as lanternas de cabeça.

    Calçávamos botas plásticas (marca Koflack, uma das melhores do mercado) com crampon (uma base de ferro colocada no solado da bota plástica, para melhor aderência ao gelo), e luvas mitones, de pena de ganso, por cima de outras três luvas.

    Sabíamos que o pôr-do-sol no Aconcágua, nesta época do ano se dá às 21h, não apenas pelas pesquisas prévias que realizamos na área de meteorologia, mas também pela constatação feita in loco durante os 10 dias em que ficamos no parque antes de partirmos para o ataque ao cume.

    Atingimos o cume por volta das 17h30, com céu claro. Estão nos acusando de ficarmos 2 horas lá. Isso é um absurdo. Permanecemos lá por apenas 15 minutos, ou seja, o tempo suficiente para fazermos fotos. Éramos os últimos a descer.

    Iniciamos em seguida o procedimento de descida, contando com mais três horas de claridade para a descendência segura. Nosso objetivo era retornar pela Via Gran Carreo até o Nido de Condores, onde estávamos baseados. Esta é considerada a rota mais rápida para a descida.

    Duzentos metros depois de iniciada a descida, veio uma neblina muito forte, acabando completamente com a visibilidade e baixando bruscamente a temperatura. Por essa razão, comecei a tremer muito de frio e tive convulsões e desmaios. Minhas pernas travaram por conta desse frio excessivo, causado pela queda brusca de temperatura, e fiquei impossibilitada de caminhar.

    Primeiramente, Eduardo tentou me reanimar para retomarmos o procedimento de descida. Mas como não conseguia andar, ele decidiu chamar o resgate para nós. Acredito que era por volta das 19h, 19h30.

    Fomos informados pela patrulha de que deveríamos descer mais para que eles pudessem fazer algo. Minhas pernas, no entanto, estavam travadas e eu não conseguia andar. Eduardo insistia no pedido de resgate e os guardas insistiam de que deveríamos descer mais.

    Mas, segundo Eduardo, além de ter as pernas travadas, eu desmaiava e acordava a toda hora. O fato de eu ter 1,78 de altura impedia meu marido de me conduzir sozinho para onde os guardas insistiam para que fôssemos, principalmente sem nada enxergar.

    Os contatos de Eduardo com o posto de resgate foram ouvidos por todos que estavam no acampamento Plaza de Mulas. Entre convulsões e momentos de lucidez, sempre ouvia o chamado agoniado do meu marido pelo resgate.

    Chegamos a nos despedir durante a madrugada. Senti que meu fim estava muito próximo e pedi a ele que procurasse, na escuridão, a nossa máquina digital para ter certeza de que ele teria os nossos últimos momentos registrados.

    Mas nós acordamos às 7h30, com muita neve no rosto, fruto da tempestade. Conversamos um pouco sobre as condições em que estávamos e ficamos felizes e gratos a Deus por termos sobrevivido àquela noite de terror.

    Posteriormente, ficamos sabendo que, naquela noite, os ventos chegaram a uma velocidade entre 50 e 60 km por hora e a temperatura ficou em torno dos 30 graus negativos. Quando atingimos o cume, antes da neblina chegar, a temperatura no cume registrada em nosso relógio era de cinco graus negativos.

    Como que por milagre, eu estava melhor. Eduardo estava muito debilitado, não conseguia ficar em pé. Tentei reanimá-lo, dando um pouco de gelo. Tentei um novo contato com o posto de resgate. Infelizmente, ninguém respondeu. Eram já 12 horas sem resgate.

    Devia ser por volta de 7h35, 7h40. Não havia sol ainda e fazia frio. Nesta época do ano, a temperatura lá começa a subir por volta das 9h.
    Ficamos parados, totalmente debilitados, aguardando uma resposta do pessoal do parque, quando surgiram dois montanhistas noruegueses, que atenderam meu pedido de socorro, foram ao nosso encontro, em nosso auxílio.

    Fizeram avaliação de nossa situação e como eram em dois, decidiram que apenas eu deveria ser ajudada por ter mais chances de vida. “É a lei da montanha”, disse-me um deles. “A gente ajuda quem tem mais chances de viver”, explicou.

    Infelizmente, não tive tempo de me despedir do meu amor. Foi tudo muito rápido.

    Os noruegueses me colocaram de pé e juntos começamos a descer. Eu ia amparada pelos dois, bastante inconsciente, pois também já estava com princípio de edema cerebral.

    Fui levada inicialmente para o refúgio Independencia, onde cheguei desacordada. A partir daí, desse acampamento, a patrulha do parque é quem passou a cuidar de mim.

    Recebi uma injeção de dexametasona, indicada para princípio de edema cerebral, e seguimos até o próximo acampamento, que era o Nido de Condores, onde estávamos baseados.

    Lá chegando, a patrulha desarmou nossa barraca e carregaram nossos pertences até o acampamento Plaza de Mulas, onde permaneci dois dias aguardando o Eduardo.

    Não tenho certeza de quando o Eduardo morreu, em qual lugar exatamente, nem em quais condições. Perguntei a muitas pessoas, à exaustão. Ninguém, no parque, teve a coragem de me informar. Disseram-me apenas que sua morte deve ter acontecido às 11h do dia 7, ou seja, quase 4h depois do meu resgate.

    Na Plaza de Mulas, fui encontrada pela montanhista brasileira Helena Coelho, que prontamente me acolheu, com muito carinho e dedicação. Deus a colocou em meu caminho.
    Helena me disse que chegou a ver luzes no local, durante a noite, onde eu e Eduardo estávamos, e que mesmo sem saber que éramos nós que estávamos lá, havia ido informar aos guardas que estava vendo luzes sem movimentação na Canaleta.

    Sinceramente, não sei o motivo que impediu a patrulha de resgate de subir em nosso auxílio. Prefiro pensar que chegou a hora do Eduardo; que ele morreu feliz por ter conquistado um grande sonho, mais, uma vez, ao meu lado.

    Entretanto, gostaria muito que o nosso caso servisse de alerta para o futuro. Alerta no sentido de que o Parque coloque à disposição dos montanhistas mais equipes de resgate na alta temporada. Gente de montanha, alpinistas voluntários que amem o esporte e que estejam aptos a prestar socorro, independente dos obstáculos que a montanha impõe.

    Muita gente me pergunta como passei a ver o montanhismo a partir desse novo momento em minha vida. Estou ferida. Quem me conhece e conhecia o Eduardo sabe que minha alma está machucada. Perdi o grande amor da minha vida e nada absolutamente nada – vai trazê-lo de volta.

    Mas ao mesmo tempo estou em paz e, assim que me recuperar físicamente, pretendo voltar às montanhas. Porque foi o Eduardo quem me ensinou a gostar de montanha. Foi ele quem me ensinou que estar na montanha é estar mais perto de Deus.

    Este texto foi escrito por: Webventure

    Last modified: janeiro 14, 2005

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    Redação Webventure
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