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Entrevista exclusiva com Carlo de Gavardo

Redação Webventure/ Offroad

Exclusivo, do Rally Por Las Pampas – Campeão do mundo. Esse é o piloto chileno Carlo de Gavardo, que no final de 2004 foi nomeado campeão do mundo pelo Campeonato Mundial FIM na categoria 450cc, na Superproduction.

Esse chileno de 35 anos, que já participou três vezes do Rally Internacional dos Sertões e corre há 14 anos, completou 10 anos de participação no Rali Dakar, o maior evento off-road do mundo.

Piloto oficial da KTM, Carlo de Gavardo concedeu uma entrevista na final do Mundial de Cross-country da FIM, que aconteceu na Argentina em novembro último, no Rally Por Las Pampas. Ele explica a inserção da categoria 450cc, como isso vai redimensionar o campeonato mundial, a disputa entre as três maiores marcas, e outros fatores que cercam as etapas do Mundial. Fala também de sua trajetória, seus treinos, da participação no Dakar, da morte do amigo Richard Sainct e da paixão pelo Rally dos Sertões.

Webventure – O que explica a força que a equipe KTM tem hoje?
Gavardo – É um trabalho de 10 anos, a longo prazo, cujo os resultados se vê nestes últimos anos. Eu lembro que no Dakar 2000, quando andei 100 quilômetros com a moto e o motor explodiu. Na época eu era um piloto independente, mas alguns quilômetros adiante, o Fabrizio Meoni que era da equipe teve o mesmo problema. Então a KTM de 2000 para 2001 foi uma mudança muito forte de mecânicos, técnicos, todo mundo. Esta moto de hoje é um tanque. Eu tenho confiança total nela. É uma moto maravilhosa.

Webventure – Este ano você correu de 450cc e foi o campeão do mundo na categoria. O limite de até 450cc para o Dakar de 2006 é o futuro competição?
Gavardo – É uma questão de segurança também. A história é a seguinte: em março do ano passado, a FIM anunciou para todos os organizadores e fabricantes que no Rali Dakar 2006 vai ser permitido apenas motos com no máximo 450cc. E avisou que o Rali dos Faraós seria a última data em que correriam as motos bicilíndricas de 660cc. Nas etapas do Mundial de 2006, só seriam aceitas motos de até 450cc.

Webventure – Por que você foi o escolhido da equipe para pilotar uma 450cc?
Gavardo – Eu vinha de dois acidentes grandes em menos de seis meses: o primeiro no Por Las Pampas, em 2002 no Chile, e o segundo em abril de 2003 num erro da planilha durante o Rali da Tunísia. Isso psicologicamente me afetou muito. Em termos físicos eu me recuperei muito bem, mas mentalmente eu só me recuperei este ano. Assim, o Hanz Trunkempotz (diretor da equipe KTM) me ofereceu a 450cc para eu pegar mais leve. Sabendo que não estava ainda 100%, aceitei.

Era uma oportunidade de correr todo o Campeonato Mundial, estar competindo e o principal, batendo de frente com Loris (Volpato), o piloto italiano da Yamaha francesa. Claro que a pressão sobre mim era muito maior, afinal na geral a briga era entre a Gauloises e a Repsol que no fim são do mesmo time KTM. Eu corri não só por mim este ano, mas também defendendo a marca diante da situação futura. Eu corri o campeonato em uma disputa marca contra marca.

Webventure -E como foi voltar esse ano a corre depois de dois acidentes?
Gavardo – Foi duro mais pela parte psicológica. Era uma no em que eu estava começando a gostar mesmo de correr com motos grandes e pesadas. No Rally da Turquia, por exemplo, eu estava ganhando e no último dia tive um problema com a moto e perdi a liderança na geral que estava nas minhas mãos. A cabeça é o que me permitiu voltar a gostar de andar de moto e voltar a correr de rali depois de tudo. E o ano foi muito difícil. Nunca havia morrido um piloto tão próximo a mim como foi com o Richard Sainct…

Webventure – Como foi o impacto do acidente para você?
Gavardo – Olha, em 10 anos nunca havia morrido um piloto da equipe, e logo alguém tão significativo para a equipe. Acontecem contratempos com todos da equipe, alguns ficam perdidos, muitos capotaram, até caminhões de apoio. Mas nunca havia morrido ninguém. Foi muito forte. As pessoas não compreendem muito isso. A morte do Richard foi para a gente como a morte do Ayrton Senna, é como se o Michael Schumacher morresse de um acidente. Não foi um piloto qualquer, foi o piloto mais completo. Se você compara o Fabrizio Meoni comigo, na parte técnica eu sou melhor, mas na parte física, ainda que eu tenha melhorado muito, ele ainda é bem mais forte e resistente. Sainct era completo em tudo: físico, técnico, psicológico. Ele fazia tudo com perfeição. No final a gente chegou a uma só conclusão, que era seu momento, era sua hora.

Webventure -Qual sua versão para o episódio no Rali do Egito?
Gavardo – Ele sofreu um primeiro acidente que ele teve no quilômetro 185 da mesma etapa, uma queda forte. Foi socorrido pelo Fabrizio Meoni (piloto da KTM Gauloises) que o ajudou a se levantar e logo chegou um apoio que o levou ao quilômetro 205 onde havia um ponto de apoio. Ele chegou lá bem, caminhando. Perguntaram se ele queria descansar um pouco. Ele disse que não, que queria seguir. Logo depois aconteceu o acidente fatal, em um ponto que nem era tão perigoso, tinha só uma cureca marcada na planilha, não é nada. Mas ele deve ter acelerado um pouco mais forte a moto, e deve ter batido na lateral da trilha. O estranho é que ao contrário do que sempre acontece que o piloto sai voando e a moto fica no lugar da queda. Com ele a moto foi encontrada muito adiante e ele ficou para trás.

Webventure – Não foi um problema com a moto?
Gavardo – Não, não, a moto foi revisada depois. Mas certamente após o primeiro acidente sua reação na pista não estava funcionando.

Webventure – E ali no acidente se decidiu o título mundial. Porque a equipe se retirou e não participou mais do Mundial nos Emirados.
Gavardo – Sim, quem ganhou foi o Esteve Pujol (KTM Repsol), porque a equipe Gauloises não foi mesmo. No fim a KTM venceu três das seis etapas do ano, na Tunísia, no Marrocos e nos Emirados, com o Esteve. Nas outras a equipe não participou, e no Egito nos retiramos da prova. E nestas, onde a KTM não participou, ganhou o piloto que acabou sendo campeão do mundo, o Ullevalseter.

Webventure – Qual é o investimento da sua equipe KTM YPF durante o ano para todo o Mundial?
Gavardo – Eu já não compro a moto, ela é da KTM, isso é um bom valor que não saberia quantificar facilmente. Mas meu investimento anual nas etapas do Mundial e rali Dakar não sai por menos de 100 mil euros. Isso sem contar a parte que faz a KTM, que é a moto, material de reposição e todo apoio nas provas. Tenho apoios aqui no Chile. La Tercera, que é um grupo de comunicação, também ajuda muito cobrindo vários custos na produção de material de divulgação.

Webventure – E este patrocínio da KTM o que significa exatamente?
Gavardo – A KTM me dá três motos: a que uso nas provas e duas de enduro para treinar. Nas provas lá fora eu tenho o apoio técnico deles. Mas sempre levo o meu mecânico que é pago aqui pela minha equipe, que é Roberto Boasso. Ele vai até a fábrica quando minha moto fica pronta para colocar minhas coisas e finalizar a preparação. Mas sou eu quem pago seu salário por corrida ou se vamos ao norte do Chile para treinar.

Webventure -Como é sua relação com seu pai?
Gavardo – Meu pai é um agricultor, uma pessoa muito importante para mim. Ele é como um amigo, uma mão direita muito próxima. Ele cuida de toda a logística, cuidar de empregados, de tudo para mim. Tenho uma sorte muito grande de ter meu pai ao meu lado. Claro que há brigas e tudo mais. Mas eu tenho muita sorte de ter ele perto.

Webventure -E você não fica preocupado com sua idade?
Gavardo – Eu sei que quanto mais passam os anos para ele é mais forte a pressão das provas. O acidente de Richard foi pesado para ele mais do que para mim. Ele vê como um pai que perdeu um filho. Todos o chamam de “papa”. Fabrizio Meoni, todos os pilotos são muito próximos dele. Sainct esteve no Chile, na minha casa e ia voltar agora no fim do ano. Então foi muito duro.

Webventure – Desde quando você corre de moto?
Gavardo – Corro de moto desde os 12 anos. Eu corri 14 anos em enduro. Como semiprofissional e depois como profissional, foi uma escola muito forte. Ganhei nove anos o campeonato chileno de enduro que é no sistema cross-country. Para o Dakar fui pela primeira vez em 1996. Fiz nove vezes o Rali Dakar e esse é o meu 10º ano.

Webventure – E até quando você imagina pilotar?
Gavardo – Eu tenho 35 e a cada ano estou melhor fisicamente, me sinto mais seguro. Acho que até 41 e 42 vou muito bem. Não penso em ser como Fabrizio Meoni que começou a correr em rali aos 35. Agora tem 45 anos e está aí no ponto onde eu estou da carreira, e segue correndo muito bem. Depois disso eu penso na possibilidade de correr de caminhão.

Webventure – De caminhão?
Gavardo – Sim, eu adoraria. Mais do que de carro. E talvez organizar uma etapa da Copa do Mundo no Chile, assim como o Brasil, que é um país com muita beleza e diversidade. O Atacama, os Andes, é tudo muito forte. Temos que aproveitar isso. E também posso aproveitar a proximidade que já tenho com Marcos de Moraes (organizador do Rally dos Sertões). E também uma relação muito boa com o Tiziano Siviero (diretor do Por Las Pampas). E eu penso que temos que fazer uma Copa do Mundo com uma corrida sul-americana. Com o tamanho de um Dakar. Imagine, partindo de Ushuaia e terminando em Fortaleza! É um sonho, mas tenho que sonhar.

Webventure – Como é seu treino?
Gavardo – Este ano não me deixaram fazer sempre como estou acostumado. Mas normalmente na segunda estou aos pés dos Andes correndo na região do Valle Nevado que é a 3.500 metros de altitude, de tarde faço ginástica, musculação umas 2 horas. Na terça não faço ginástica, treino apenas com motocross e de tarde agora eu treino escalada. Na quinta corro na moto de rali, e faço escalada. Na sexta é enduro de novo, ginástica e musculação. Depois vou a um psicólogo brasileiro, ele é ótimo e nunca foi a um rali. Eu sei que 3/4 do trabalho é concentração, exercício mental. Também tenho uma equipe no hospital que trabalha comigo, um traumatólogo que me acompanha sempre.

Webventure – A experiência do enduro, o que significa?
Gavardo – É vital. A experiência do rali você ganha no enduro. Acredito que o piloto que vem do motocross tem sérios problemas e corre muitos riscos. As pessoas pensam que é a mesma coisa. Mas não é. Porque o piloto de motocross se concentra em uma coisa. Enquanto que o piloto de rali em que pensar em várias coisas ao mesmo tempo. E isso não se faz com pilotos jovens. É claro que se alguém começa no motocross não significa que vai ficar ali para sempre. O motocross não é uma porta direta para o rali, mas acontece. Muito poucos fazem essa transição direto e têm sucesso. Você conta nas mãos. O exemplo do Heinz Kinigardner é uma raridade, algo quase único.

Webventure – Quem é seu ídolo na moto? Alguém que seja como um exemplo?
Gavardo – Pode ser Peterhansel, mas não por seguir os passos dele, mas sim como uma pessoa única. Ele tem o mesmo que Richard Sainct. Ele já nasceu com o dom. Em enduro e rali é o melhor que já existiu. O Dakar tem 27 anos e ele já ganhou nove vezes.

Webventure – No segundo dia, cancelaram os radares da especial do Por Las Pampas. É estranho um piloto, mesmo muito bom, conseguir colocar seis minutos de vantagem sobre o Alfie Cox. O que os pilotos brasileiros comentavam é que nas zonas de radares os argentinos estavam acelerando muito, enquanto que o Alfie e outros, estavam respeitando a planilha.
Gavardo – Não me penalizaram. Mas outros companheiros foram penalizados. Estamos acostumados a diminuir muito a velocidade. Acho até que não foram só dois pilotos que avançaram nos trechos de radares, acho que foram mais. Mas eu, o Alfie Cox e o Lee Palmer sabemos como é a regra. E os brasileiros também sabem como é e respeitam. Mas o fato é que a organização aqui tem muitas falhas.

Webventure – Para uma etapa da FIM não é surpreendente tantas falhas?
Gavardo – Acho que o faltou, foi que na primeira reunião de pilotos deveriam ter avisado que no dia seguinte haveria penalizações para estes trechos. E isso não foi dito. Isso para que no primeiro dia todos já andassem atentos e na regra.

Webventure – Mas isso não está na regra? Não é obrigação ficar lembrando a regra…
Gavardo – Sim, mas olha os pilotos que correm aqui! Para mim, para o Lee Palmer, para os brasileiros está óbvio. Mas para os outros não. Metade dos pilotos aqui tem experiência, a outra metade vem passar as férias no rali. Veja o que passou comigo ontem: em qualquer prova do mundo se você faz o melhor tempo no dia tem o direito largar no lugar que quiser entre os cinco primeiros no dia seguinte. Mas aqui disseram que não, que eu tinha que estar na largada no horário e pronto.

Webventure – Existe alguma corrida no mundo que você ainda não foi e gostaria de ir?
Gavardo – No rali eu já fiz tudo o que queria fazer. Uma corrida que gostaria muito de ir é no Baja Califórnia, mas é outro esporte, não é rali.

Webventure -Você acha possível termos no futuro uma competição semelhante ao Rali Dakar na América do Sul?
Gavardo – Sim, são países tranquilos e estáveis se comparados aos do continente africano. Se alguém tem medo da Bolívia ou do Peru, melhor não ir para a África. Eu espero que o Rally dos Sertões entre logo na Copa do Mundo (essa entrevista foi realizada antes da notícia oficial de que o Rally dos Sertões entrou para o calendário de Cross-country da FIM) e que no futuro se faça uma só etapa aqui. Imagine passar pela Patagônia, pelos Andes! Ou então se não vamos fazer um rali único no continente, poderíamos fazer como fazem na Europa: uma primeira etapa, guarda-se tudo no mesmo continente, e um mês acontece outra etapa. É o momento de voltar a correr por aqui, principalmente no Brasil, onde tudo relacionado com aventura tem muita força agora.

Webventure -Por que você não voltou mais ao Rally dos Sertões? (ele participou em 1998 e 1999)
Gavardo – É um dos ralis que eu mais gosto junto com o Master Rally. É onde eu mais me sinto em casa. Lembro dos amigos Dimas (Mattos), do poeta Tuca Porreta, do Iguana, e muitos outros pilotos que ficaram como amigos. Mas o problema para mim é a segurança. Acredito que há seis anos atrás não havia a organização que eles têm hoje. E além de tudo, meus patrocinadores me disseram que dinheiro não é para correr entre amigos, é para o Mundial.

Webventure – Então o investimento em você é rígido?
Gavardo – Sim! Eu agora não me chamo mais Carlo De Gavardo só. Eu tenho que entender que me chamo Carlo “YPF” De Gavardo (risos). Eu tenho que correr onde meus patrocinadores aprovem e onde eles tenham maior retorno de publicidade. Mas eu adoraria voltar a correr no Sertões. Gosto muito do Marcos Moraes, eu vejo ele como um amigo. Mas não é algo que depende só de mim. Acredito muito na entrada dos Sertões para o calendário FIM e será um sonho correr uma etapa no meu continente.

Este texto foi escrito por: Cristina Degani

Last modified: novembro 9, 2004

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Redação Webventure
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