Travessia dos Andes – Sampa Bikers (foto: Paulo de Tarso/ Sampa Bikers)
Tudo começou quando, eu, recebi um email de um jornalista, da revista Caminhos da Terra, recém chegado de uma viagem de Bariloche. Este repórter teve a oportunidade de conhecer a equipe da MTB Tours, uma empresa argentina especializada na realização de viagens e expedições de mountain bike, dirigida pelo Mariano DAlessandro.
O e-mail dizia que os caras eram bons, muito profissionais e as pedaladas sempre por lugares de extrema beleza. A partir daí entrei em contato com eles e conversamos muito, trocando informações de pedaladas no Brasil e Argentina, sempre com o objetivo mútuo de fazer um intercâmbio de bikers.
Foi quase um ano de conversas e planejamento entre o Sampa Bikers e o MTB Tours até que ficou definido que faríamos a Travessia dos Andes, um verdadeiro desafio sobre duas rodas. Definida a viagem, fechamos nosso grupo e quase tivemos que cancelá-la, devido ao péssimo momento político econômico que a Argentina atravessava. Mas resolvemos encarar assim mesmo, pois com certeza lá em cima nas montanhas estaríamos livres e seguros da violência que assola o Brasil e nossos “hermanos” argentinos livres de toda essa crise.
A viagem foi maravilhosa, uma das mais bonitas que já fiz em todas essas minhas andanças nas mais diversos locais e trilhas de nosso planeta.
Os Andes, assim como as Montanhas Rochosas, são de formação geológica recente. Como a Cordilheira dos Andes ainda não foi muito desgastada pelos agentes da erosão, existem ali grandes altitudes como, por exemplo, o pico do monte Aconcágua, na Argentina, com 6.959 metros de altura.
A Cordilheira dos Andes se estende da Venezuela até o sul do Chile, tendo aproximadamente 7.500 quilômetros. Em alguns trechos, apresenta 3 mil quilômetros de largura e enormes altitudes.
Altiplanos – Os Andes, em algumas partes, deixam de formar uma única cadeia montanhosa e se ramificam, formando alinhamentos de montanhas, separados uns dos outros. Entre essas ramificações ou alinhamentos, encontram-se os altiplanos, que são planaltos de altitudes elevadas. Nessas ramificações também são encontrados vales, alguns deles ocupados intensamente pelo homem.
A Cordilheira dos Andes é um lugar fascinante e faz o Planeta Terra mais bonito. É a segunda mais alta cadeia de montanhas do mundo. Por isso, alpinistas do mundo inteiro vão para lá em busca de aventura e desafio.
Mas a região não é reservada apenas para escaladores radicais: pode-se fazer ótimas pedaladas, principalmente em cima de uma mountain bike. É uma excelente opção para quem deseja começar a ter contato com as montanhas sobre duas rodas.
Foi assim que durante seis dias de pedal um grupo de oito brasileiros do Sampa Bikers , acompanhados de mais sete franceses, dois belgas e cinco argentinos, mais a equipe de apoio formada por mais cinco argentinos percorreram a “Rota de San Martin”, entre Chile e Argentina.
Este é um caminho não tão conhecido pelos turistas convencionais mas de grande importância histórica e beleza incomum. Neste caminho foi realizada a primeira expedição na região central dos Andes que se tem notícia. Foi organizada pelo general San Martín, quando em 1817, cruzou a cordilheira para auxiliar a libertação do Chile, então dominado pelos espanhóis.
Foram necessários três anos de preparativos. Sua tropa, que consistia em 5.300 soldados, 9.280 mulas e 1.600 cavalos, ultrapassou a barreira dos 4 mil metros e surpreendeu os espanhóis, que esperavam um ataque vindo pelo mar. Um caminho de 350 quilômetros de montanhas que separam Mendoza da fronteira chilena.
Um pouco de geografia e vegetação – Paisagens únicas, deslumbrantes, desertos, geleiras, picos nevados. No verão, a neve só ocupa os picos de algumas das montanhas. Na verdade, as atrações começam pelo tempo: quente e seco com temperaturas altas e céu azul, pois as chuvas, são raras nesta época do ano.
Tudo foi mudando durante a expedição. Aquele calor sufocante, que atingiu os 35°C mais ao centro da Argentina, foi sendo amenizado aos poucos.
Uma dica: três produtos não podem faltar na bagagem – creme hidratante, bloqueador solar e repelente. Por causa da altitude, o sol é forte. O repelente será útil para espantar os mosquitos que você encontrar durante as atividades, uma vez que todas elas são realizadas perto, da mata local.
A flora e a fauna são limitadas pelo clima árido de altitude. Como a vida vegetal é quase nula – os últimos vestígios se apresentam no máximo aos 4.500 metros – a vida animal é reduzida a lebres, ratos-dos-Andes, poucos guanacos e raríssimos pumas. Ainda existem condores, perdizes, águias-brancas e falcões.
Antes de embarcar um pequeno stress com a companhia aérea que queria cobrar excesso de peso, pois para viagens de países na América do Sul eles alegavam que o peso permitido por passageiro é de 20 quilos. Só que todos tinham pelo menos o dobro. Lá se foram algumas camisetas do Sampa Bikers de brinde e tudo ficou resolvido.
Duas horas e meia de vôo e lá estávamos nós em Buenos Aires ansiosos para começar a pedalar. Só que ainda tínhamos pela frente 1.300 quilômetros até o início de nossa expedição e pelo menos 26 horas de van pela frente.
No ponto de encontro de saída de todo o grupo, a última leva de brasileiros (o grupo foi em vôos separados), que por acaso eu fazia parte, fazia a maior festa ao se juntar com o restante do grupo sob o olhar desconfiado dos franceses.
Tudo pronto para partida, a van abarrotada de bagagens e brasileiros e argentinos já se entrosavam como velhos amigos. E os franceses ? Estes só olhavam, sem muito conversa. E isso foi assim praticamente durante todo o trecho de van.
Um pedal diferente – Ainda distante uns 300 quilômetros de nosso destino, os Andes, desviamos um pouco da estrada e seguimos em direção ao Valle Grande, onde paramos para uma pedalada pelo Canion de Atuel. O local de parada da van não podia ser melhor. Em frente a uma represa de águas azuis que se contrastava intensamente com rochas em tons avermelhados.
Rapidamente montamos nossas bikes e seguimos pedalando por 20 quilômetros por um lugar belíssimo. A surpresa ficou novamente com os franceses. Só um seguiu pedalando. O resto, foi correndo. Descobrimos então, que o grupo deles eram formados por ciclistas e maratonistas. A pedalada terminou na beira de um rio de águas claras onde um mergulho foi irresistível acompanhado de vários tipos de tortas preparadas pela equipe de apoio.
Guardamos novamente as bikes e seguimos por mais quatro horas de van até a primeira cidade que seria nossa porta de entrada para os Andes, a cidade de Malargüe. Quadrados e cansados de tanto andar de carro montamos nosso acampamento no camping da cidade e a noite comemos churrasco. Após o jantar, o chefe da expedição Mariano fez um briefing de como seria a viagem, as tarefas e funções que cada um teria.
Seis horas da manhã. A luz do sol nem tinha saído e os franceses já estavam de pé fazendo o maior barulho, pouco se importando se alguém estava dormindo ou não. Tomamos café, fizemos os ajustes finais na bicicleta, alongamento e desmontamos o acampamento e seguimos para nossa primeira etapa nos Andes até Bardas Blancas.
Este primeiro trecho seria em grande parte pelo asfalto pela estrada que liga o país ao Ushuaia, muito longe dali, bem no extremo sul da Argentina. Os primeiros 35 quilômetros percorridos foram bastante tranqüilos, quase plano, até Cuesta del Chihuido, uma verdadeira muralha natural encravada nas montanhas, com uma vista de extrema beleza que servia para nos dar uma prévia do que ainda viria pela frente.
Antes do início dos 8 quilômetros de subida que estavam por vir, uma parada para reabastecer-se de água em um rio que atravessava a estrada. Nesta região praticamente todos os rios são águas de degelo, próprias para o consumo. Durante a subida, a paisagem ficava ainda mais bonita, um show de cores.
Era difícil manter uma pedalada constante e isso foi durante toda a viagem, pois a cada curva, a cada trecho era parada obrigatória para uma foto, foram mais de mil fotos até o final da viagem. Três quilômetros de subida, bem em uma curva fechada uma capela nos chama a atenção. Ali foi só procurar algumas pedras no chão que encontramos os mais diversos fósseis marinhos, mostrando que num passado distante ali já tinha sido mar.
Pausa para o lanche – Um pouco antes do final da subida, sob um sol muito forte, todo o grupo se reagrupou no carro de apoio que seguia a frente em um gostoso lanche com empanadas de todos os tipos. Pausa de uma hora para descanso e continuamos a pedalada.
A poucos metros dali a estrada que vinha muito boa praticamente acabou, virou terra. A tão esperada descida nada adiantou, quando chegou, pois o vento contra era muito forte e tínhamos que pedalar e muito. E esse vento contra nos acompanhou até final, em Bardas Blancas, após 66 quilômetros, mais com uma sensação de ter pedalado o dobro.
Em Bardas Blancas uma surpresa.
A princípio, pensávamos que fosse uma cidade, um vilarejo ou coisa parecida, mais só tinha um barzinho. Em frente ao bar algumas bicicletas. Por acaso era as dos brasileiros, que comemoravam o primeiro trecho nos Andes com muita cerveja. Aos poucos os argentinos foram chegando e se unindo ao nosso grupo. Os franceses? Continuavam indiferentes.
Montamos nosso acampamento em um terreno ao lado ao bar coberto de árvores onde procuramos ficar bem longe dos barulhentos franceses. E depois seguimos para tomar banho em um rio de águas geladas e transparentes de degelo. Nunca pensei que conseguiria tomar banho em águas tão frias assim, foi ótimo. À noite jantamos uma deliciosa macarronada e dormimos sob um céu dos mais bonitos que já vi…
Novamente os franceses fizeram muito barulho, já deixando alguns com os nervos a flor da pele. O dia amanheceu lindo com céu azul e sem o temido vento do dia anterior. O dia seria dividido em duas etapas. Pela manhã uma pedalada de 22 quilômetros, ida e volta pelo mesmo caminho, até a Caverna de las Brujas (Caverna das Bruxas), sendo que a ida era só subida; subimos quase 500 metros.
Lá do alto, em meio à natureza selvagem e ainda protegida da ação destruidora do homem, avistamos o que Deus criou e contemplamos a linda paisagem do Vale. Visitamos uma caverna e despencamos morro abaixo.
De volta ao nosso acampamento, almoçamos, descansamos um pouco, deixamos o sol dar uma abaixada, arrumamos as coisas e seguimos rumo ao novo acampamento em Las Loicas, distante a 36 quilômetros. Saímos do acampamento e seguimos em direção à ponte, a menos de um quilômetro dali e fomos presenteados com uma vista digna de folhinha de calendário, coisa de cinema.
Cenário de beleza – Era o Rio Grande, o mesmo do banho do dia anterior, que com suas águas claras compunha uma linda paisagem num verdadeiro jogo de cores. Todo o trecho até Las Loicas e por quase toda a viagem ele nos acompanhou. Foi difícil de chegar, pois a cada 100 metros era parada para Renata Falzoni filmar e eu tirar fotos. Durante toda viagem sempre fomos os últimos a chegar.
Ficamos acampado no terreno uma casa bem simples de um morador das montanhas, ao lado do Rio Grande, rodeado por uma paisagem magnífica. No jantar comemos um saboroso Carneiro.
Esses três primeiros dias serviram para fortalecer um grande entrosamento com os argentinos, firmando uma grande união e amizade. Os franceses já estavam dando o ar de sua graça tentando se comunicar, principalmente com as brasileiras de nosso grupo que chamavam bastante atenção. Mas ainda sem tomar banho.
Como de praxe nossos amigos franceses sempre levantavam antes do sol raiar e fazendo muito barulho. Enquanto a equipe de apoio desmontava o acampamento para seguirmos viagem, eu, a fim de tirar uma foto legal e sem muita coragem, fiz a cabeça do único francês que estava pedalando (o restante estava correndo) a descer o morro a nossa frente, um downhill animal.
Na hora ele topou e não fez feio, pois o terreno além de muito inclinado era bastante fofo. Em seguida estava todo o grupo empurrando as magrelas morro acima para despencar morro abaixo. Foi divertido e consegui tirar muitas fotos.
Rumo ao Rio Montañes paramos um quilômetro após nossa saída, na vila de Las Loicas, para declarar nossa saída da Argentina, pois mesmo longe da divisa com Chile era um posto de aduana, onde perdemos muito tempo parado. Na nossa saída encontramos um outro grupo de argentinos que faziam uma outra viagem de bike, motivo para mais fotos com todos juntos.
Em Las Loicas são duas as opções para seguir para o Chile. Seguindo a rua principal da vila em frente, chega-se a cidade de Talca, mas este caminho estava fechado devido a vários desmoronamentos. Seguimos no outro sentido em direção a Termas de Azufre.
Novamente um caminho de beleza deslumbrante, passando entre montanhas cada vez mais altas. Foi talvez o dia mais cansativo, com muitas pedras, trechos de areia fofa e vento contra. O acampamento foi montado ao lado do Rio Montañes, no pé de um morro protegido do forte vento.
Devido à falta de comida de alguns integrantes que estavam muito à frente de todo o grupo e carro de apoio, houve um certo stress por parte deles. Em uma reunião após o jantar ficou definido que a partir do dia seguinte. Brasileiros e argentinos fariam uma parada a cada 20 quilômetros, reagrupando o grupo, evitando o problema das comidas.
Exceto pelos franceses e um belga, que estavam para socar, pedalar forte, acho que em todos esses dias eles nem observaram a linda paisagem do lugar, enquanto que o restante do grupo estava para curtir o visual, fazer turismo ou melhor, cicloturismo.
Outro dia de beleza deslumbrante até a Termas del Azufre. Novamente a estrada seguia ao lado do rio, aliviando um pouco o desnível de 500 metros até este lugar seria o local de acampamento na maior altitude, 2.400 metros. Mesmo cruzando a Cordilheira dos Andes, nesses primeiros dias as subidas eram leves, sem muitas inclinações, pois a estrada seguia ao lado de um rio de águas claras de degelo, cortando um vale com montanhas de até 4 mil metros.
Termas de Azufre fica no pé de uma montanha que por acaso é um vulcão. Ali encontramos várias outras pessoas acampadas, pois o lugar é conhecido pelos banhos em suas águas quentes e sulfurosas. São vários pequenos poços dágua com águas termais variando de 30 a 45 graus.
Depois de vários dias tomando banhos ultra gelados foi muito bom um banho quente no lugar mais frio de toda viagem. Pois em todos os lugares a noite sempre esfriava, durante o dia fazia muito calor.
A noite foi talvez a mais animada de toda viagem, pois todas pessoas do acampamento se reuniram em um galpão que servia de apoio aos alojados sob a animação do cantor “El Profeta”, anunciado lá como o mais conhecido das montanhas andinas. Muita dança, muito vinho. Teve até brasileiro e argentina fazendo strip-tease. A festa só acabou porque acabou o combustível do gerador e ficamos sem luz.
Depois da festa da noite anterior a novidade foi o novo casal que se formou, um francês com uma brasileira. A festa serviu para aproximar mais os franceses de todo o grupo. Mas ainda continuava com muito barulho antes de todos acordarem…
Nesta etapa, deixamos a Argentina para entrar em território chileno. Os primeiros quilômetros foram difíceis, devido à areia fofa e ao forte vento contra. Era possível notar que estávamos contornando a montanha onde se localizava o vulcão que estava ativo. A fumaça no alto do morro e o cheiro eram provas disso. Passamos em um novo posto de fronteira onde novamente perdemos muito tempo.
Oito quilômetros depois estávamos no Chile. Na fronteira uma placa lembrava a passagem do exército de San Martin rumo à libertação do Chile. E pouco mais de um quilômetro dali iniciaram as fortes descidas, conhecidas como Caracol. Foram 1.200 metros de desnível – imagine só essa descida… Sem contar a paisagem… alucinante !
No final do caracol, o carro de apoio da frente estava a nossa espera com o almoço pronto. Após o almoço enquanto descansávamos, impacientes o Francês e o Belga subiam o caracol para despencar novamente morro abaixo.
No posto de fronteira chileno desinfetaram nossas bicicletas e nossos sapatos, um trabalho de combate à febre aftosa que atinge os gados.
No lado chileno era visível a mudança da paisagem, com mais vegetação e estrada bem cuidadas, dando a impressão até de que brevemente seria asfaltada. Esta seria nossa última noite dormindo em acampamento.
Essa seria nossa última etapa da travessia. Neste trecho a bela paisagem se modificou com a presença da vegetação mais abundante. O trecho, apesar de ser o mais longo de nossa viagem, era também praticamente todo plano. Seguindo também por um vale e ao lado de um belo rio.
Um pouco antes da metade do caminho, depois de vários dias sem ver a cor da civilização, chegamos a um vilarejo, chamado de Los Queñes. Não deu outra: no primeiro bar estavam todos reunidos lá comemorando. Na hora de pagar a conta foi engraçado, pois ninguém tinha pesos chilenos e eles não aceitavam receber nem dólar e muito menos peso argentino. Depois de quase uma hora, sob olhar desconfiado da dona do barzinho, conseguimos trocar com um turista que estava acampado por lá.
Seguindo em frente, a civilização já estava bem presente durante todo o restante do caminho. E depois de 57 quilômetros chegamos ao asfalto.
Daí pra frente o grupo se reuniu e seguiu em um único pelotão até o final de nossa travessia, na praça central da cidade de Curicó, após 75 quilômetros de pedalada e 360 quilômetros no total muito comemorado com champanhe e empanadas. Atrás da gente, estavam os Andes com sua enorme e imponente cadeia de montanhas que já nos deixavam saudades.
Como ninguém é de ferro, ficamos hospedados no melhor hotel da cidade. Finalmente os franceses tomaram banho! À noite, comemoramos todos em um belo jantar e fomos também homenageados com uma medalha. Só não conseguimos dormir direito e porque os franceses… de novo! E uma das integrantes tomou um porre e sumiu a noite, aí é outra história…
Este texto foi escrito por: Paulo de Tarso (Sampa Bikers)
Last modified: fevereiro 25, 2005