Local enfrenta longos períodos de seca. (foto: Divulgação)
Que o interior do nordeste é extremamente seco e quente não é mais novidade ao nosso povo, entretanto esta característica climática se agrava ainda mais quando se aproxima do Raso da Catarina, a região mais inóspita do semi-árido brasileiro, localizado no norte da Bahia entre os municípios de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Macururé.
Considerado o terreiro predileto de um dos mais lendários cangaceiros da história brasileira, o Lampião, no Raso da Catarina é comum ouvir relatos e histórias de pessoas e personagens que viveram épocas sangrentas, mas que hoje continua com as mesmas características tendo a seca como seu principal vilão assolando a vida de várias famílias.
Delimitação Geográfica
Considera-se o Raso da Catarina a região entre os rios Vaza Barris no limite meridional e o São Francisco no setentrional. Apesar desses recursos hídricos, o local é pobre em fonte de água. O lençol freático é profundo com característica salobra mostrando assim as dificuldades da região.
Em Canudos, a construção do açude de Cocorobó fez com que o fluxo natural Vaza Barris diminuísse. Já o São Francisco, o mais importante rio que liga o sudeste ao nordeste, conhecido como o Nilo Brasileiro, sofre com as inúmeras hidrelétricas que foram construídas ao longo do seu curso; mostrando que a intervenção do homem sem preocupar-se com a preservação ecológica revertem em grandes impactos ambientais.
Todavia o benefício proveniente do açude é vital para a sobrevivência da comunidade de Canudos (tanto para a irrigação do plantio como para as necessidades básicas) e o potencial hidrelétrico no rio São Francisco é inquestionável para que se mantenha a modernidade nas cidades.
A caatinga é o tipo de ecossistema que caracteriza o Raso da Catarina e que só existe no Brasil. Seu nome é derivado das palavras indígenas Caa (mata) e Tinga (branca), devido à coloração geral que apresenta ao ser observada de longe, predominando tons de cinza e verde claro que lhe dão um aspecto geral esbranquiçado.
Dos grandes tipos de vegetação do Brasil, a Caatinga é o mais heterogêneo, sendo muito variável a altura das árvores e sua densidade. É uma cobertura vegetal que sempre apresenta um aspecto novo, seja de um local para outro, seja numa mesma região, nas diferentes estações do ano.
Apesar da variação, possui características peculiares que a identificam como uma vegetação sui generis, facilmente reconhecível. Sob o ponto de vista botânico, é a formação mais rica em espécies. As mesmas espécies são encontradas em todas as formações. A riqueza botânica diminui à medida em que aumenta o grau de aridez da região.
A Caatinga é constituída, essencialmente, de árvores e arbustos espinhentos (que perdem suas folhas na estação seca), de plantas suculentas e de plantas herbáceas que se desenvolvem com bastante rapidez depois das chuvas. São as xerófilas verdadeiras, não sendo excessivamente afetadas pelo fogo. Neste ecossistema, o fogo pode destruir os recursos forrageiros por toda a estação seca, não podendo estes se renovar após a ocorrência de um incêndio. Além disso, o fogo não permite substituir as espécies que não tenham casca espessa e suberosa.
A quase inexistência de folhas longas, predominando as folhas compostas e móveis, profusa ramificação das árvores e arbustos (troncos e galhos retorcidos), e a existência freqüente de plantas espinhentas conferem à Caatinga um aspecto sombrio e bastante agressivo. A vegetação espinhosa é capaz de suportar longos períodos de seca, graças às reservas de substâncias nutritivas e hídricas que mantêm em sua estrutura. Uma das poucas árvores que se mantêm verde ao longo do ano é o Juazeiro.
A aquisição de água muitas vezes só é conseguida através de alguns vegetais como o acúmulo no centro do Croata (bromeliácea) ou da raiz do Umbuzeiro, onde suas batatas armazenam água. A vegetação cactácea como o Mandacaru, Xique-Xique e Facheiro podem fornecer a água, descascando-se e mastigando seu miolo e outros que são comestíveis por seus frutos ou miolo como a Coroa de Frade e o Quipá.
Portanto, as áreas da Caatinga possuem como principais características a baixa pluviosidade, pouca umidade, altas temperaturas com grande variabilidade entre as temperaturas diurnas e noturnas, além de rápida recuperação das plantas após a ocorrência de chuvas.
Os fatos históricos da região são marcados por revoltas sangrentas com grandes personagens da vida nordestina.
Em Canudos, com Antônio, o Conselheiro, pregador religioso que com sua filosofia reuniu uma população de sertanejos sofridos, gerando no regime republicano da época uma perigosa resistência ao governo, o que resultou no confronto entre soldados e conselheiristas. A conseqüência desse confronto foi uma carnificina que marcou a história do Brasil com a morte de aproximadamente trinta mil pessoas entre os anos de 1893 e 1897. Hoje, o açude de Cocorobó submergiu grande parte das relíquias desta época.
Intercalando momentos de lucidez com vivências do passado tivemos uma rara oportunidade de conviver com parte desta história através do Seu Paulo Monteiro, 101 anos, filho de uma sobrevivente da Guerra de Canudos e neto do Quinquim do Coiqui, personagem do livro Os Sertões de Euclides da Cunha.
Parte da sua vida como vaqueiro na caatinga foi marcada com as agruras do sertão. Sofreu também com outro lendário personagem, o capitão Virgulino Ferreira, Lampião, que com seu bando de cangaceiros enfrentava e desafiava os coronéis reinando no Raso da Catarina onde se embrenhava com uma destreza ímpar. Por mais de uma década as volantes policiais, mesmo após a morte de Lampião, combatiam as pessoas que tivessem acobertado o cangaceiro e o franzino Seu Paulo, confundido na época como uma dessas pessoas, apanhou da polícia deixando marcas na sua integridade até hoje, pois com freqüência relembra este episódio.
Apesar das dificuldades no sertão, o espírito empreendedor destacou Delmiro Gouveia que, em 1913, idealizou e construiu a primeira hidrelétrica do Nordeste em Paulo Afonso com o intuito de produzir energia elétrica para sua fábrica de tecidos trazendo a tecnologia do exterior para a região.
Força da natureza – A luta pela vida em Canudos também está presente no mundo animal com a Arara-azul-de-lear, espécie endêmica que já esteve sob o risco de extinção. Hoje, como resultado de um programa de proteção à ave pela Fundação Biodiversitas, patrocinado por uma médica americana, Judite Hart, a população destas araras aumentou nas serras de Canudos, na Fazenda Toca Velha, saindo do risco de desaparecimento. Outra área de ocorrência da mesma espécie está na Fazenda Serra Branca, no município de Jeremoabo, que é monitorada pelo IBAMA em parceria com a Pró-Aves (organização não governamental).
Um dos fiscais da Biodiversitas, Caboclo, percorreu conosco, por um dia, vários povoados e reservas indígenas (Caimbé e Kiriri). No caminho, encontramos um local repleto de paredões rochosos em arenito, de coloração amarelo-escura, denominado Belo Jardim. Os acessos eram difíceis tornando o percurso longo e cansativo, mas a beleza natural gratificou a nossa aventura. Nosso guia nos fez acreditar que, com simplicidade e carinho pelos animais, a natureza pode continuar viva com a ajuda do homem.
Durante o trajeto, avistamos, com freqüência, pessoas transportando água com as mais variadas formas; desde as barricas em lombos de jegues até os potes na própria cabeça. A miséria e dificuldades são presentes em cada trilha; as mulheres carregando louças, potes ou lenhas na cabeça, e os filhos pela mão, ao longo de quilômentros, fazem parte do cotidiano no sertão. Claro que o senso estético de suas roupas ou as rugas prematuras em suas faces nos leva a pensar valores de direito à cidadania, que não são respeitados ou incentivados, entretanto a força humana e integridade que estes indivíduos nos transmitem, explicam a bravura de uma resistência.
A paisagem quase constante e, por vezes, monótona que vemos pelo Raso da Catarina em função da aridez, se transforma ao chegar na cidade de Paulo Afonso. Verdadeiro oásis do sertão, Paulo Afonso se destaca tanto pelo poder econômico como pela riqueza hídrica do São Francisco, que margeia a cidade e forma um cânion belíssimo incluindo lagos e cachoeiras que já foram inclusive relatados nos poemas de Castro Alves.
As construções das hidrelétricas mostram outra grandiosidade em Paulo Afonso que, além de possuírem alta tecnologia, levam energia a várias cidades do Nordeste. Saneamento básico totalmente implementado, ruas com calçadas limpas e arborizadas mostram claramente a boa qualidade de vida que Paulo Afonso oferece aos seus moradores.
Longos períodos de seca e o solo árido dificultam o plantio, mesmo que de subsistência. O que se observa é a criação de cabras e ovelhas; animais resistentes e uma adaptação perfeita. O sertanejo consome sua carne que apresenta um alto teor protéico e baixo nível de colesterol. Já a ingesta do leite não é tão consumida em benefício do filhote; o criador prefere deixar o cabrito se alimentar para não ter o risco de perdê-lo por desenvolvimento inadequado.
O gado criado solto na Caatinga apresenta características selvagens. O vaqueiro, personagem do sertão, faz sua incursão pelo Raso muitas vezes solitário em busca do animal. Com sua vestimenta típica em couro, material capaz de resistir aos espinhos da vegetação, são verdadeiros heróis que cavalgam com beleza e espírito de liberdade, rasgando com velocidade toda a região. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas no seu dia-a-dia.
Relatos como do Zé de Onias fazem parte da vida desses homens na caatinga. No seu discurso simples com palavras que apresentam erros gramaticais típicos de alguém que não teve acesso à escola, realidade de muitos no Raso, ele conta que na busca de um garrote (bezerro), correndo com seu cavalo dentro da caatinga bateu de encontro com um mandacaru transpassando no seu dedo um espinho medindo aproximadamente vinte centímetros. Como não bastasse, teve o olho do seu cavalo perfurado por outro espinho ao derrubar o garrote, agruras de um ofício.
Outras personagens comuns do Nordeste são as lavadeiras que lavam suas roupas ao longo dos rios durante todo um dia; vindas quase sempre de locais distantes destas margens. Observamos a presença no Vaza Barris junto aos seus filhos que, muitas vezes, com fome, passam o dia inteiro ao lado de suas mães.
A gente dessa terra – Num ambiente hostil ao homem onde na maior parte do ano apresenta temperaturas acima de 400C, durante o dia, e em torno de 140C, durante a noite; uma vegetação agressiva e um solo praticamente incultivável seja impossível viver. Entretanto, o sertanejo é insistente. Ele consegue viver nesta área em concentrações populacionais muito pequenas, às vezes apenas um grupo familiar.
Com simplicidade, coragem, resignação religiosa e com uma hospitalidade própria, faz com que essas pessoas vivam no Raso da Catarina apesar das dificuldades impostas pela própria natureza.
Na Baixa do Chico, uma tribo de índios Pankararés, 11 famílias totalizando 52 pessoas, sobrevivem com parcos recursos e dificuldade na alimentação. Somente em 2001 foi perfurado um poço artesiano com 235 metros de profundidade, que atende toda a comunidade. Toda a população é analfabeta e os hábitos de vida são totalmente rústicos.
O líder local, Seu Lino, um homem de 65 anos com características miscigenadas, ágil, falante e, por vezes, engraçado, nos acompanhou no percurso da parte baixa do cânion, onde não chove há quatro anos. Em razão disso, Seu Lino chegou a ficar sem tomar banho por mais de um ano. A sobrevivência muitas vezes só é possível com técnicas indígenas, como aquisição de água através do Croata (espécie de bromélia que acumula água da chuva no centro de suas folhas) ou comendo a batata do Umbuzeiro, rica em fibra e água. Utiliza as próprias mãos para extrair a batata da terra.
As crianças rolam pela areia, correm, sobem os paredões do cânion atrás do mel das abelhas depositados nas pequenas grutas com uma destreza própria dos mocos (espécie de roedor da Caatinga), catam os cajus (árvores nativas) como alternativa alimentar e assim passam os dias não se preocupando com a pobreza em que vivem. Isolados no Raso da Catarina não possuem outro referencial de qualidade de vida.
Este texto foi escrito por: Jurandir Lima
Last modified: dezembro 28, 2007
