Cargueiro pôde ser avistados pelos aventureiros (foto: Arquivo pessoal)
Acompanhe o relato de dois remadores, Luiz Carlos Calvo dos Santos Junior e Régis Mello Nogueira, que em um caiaque turismo de 4,3 metros fizeram o contorno da Ilhabela, no litoral paulista, em três dias.
Nossa aventura começou no dia 25 de dezembro, que foi um dia de preparação, onde fomos até a casa da família da namorada do Régis para prepararmos todo o material, vedarmos os sacos estanques e todo o material necessário para a volta na ilha.
Dia 26 de dezembro foi o grande dia, início da nossa tão esperada volta. Partimos de São José dos Campos pela manhã rumo a São Sebastião. Pela balsa chegamos a Ilhabela, já perto do meio-dia.
Conduzimos o carro até a Praia do Curral, almoçamos uma farta refeição de frutos do mar com lula, camarões e peixes suculentos. Depois da refeição partimos para a água e começamos a remar no sentido horário da ilha, subindo o canal.
Sentimos que o vento estava muito forte e que as condições do vento e maré ainda estavam desfavoráveis para seguir naquele sentido e a decisão acertada de mudarmos de direção deu-se em poucas remadas. Sob uma ponte de madeira no início da Praia do Curral e com o auxílio dos pilares da estrutura, decidimos seguir no sentido anti-horário.
Em segundos sentimos que fizemos o correto e aproveitamos o sentido do vento até o farol da Ponta da Sela, onde saímos do abrigo do canal para começar a remar em mar aberto. O vento estava soprando forte e as ondas não estavam para brincadeira, realmente estavam condizentes com a previsão da internet para esse dia: ondas médias de dois metros e ventos de sudeste.
Caverna – Chegamos à Ponta da Sepituba, local que estávamos anciosos para ver uma caverna onde alguns canoístas já entraram de caiaque com “mar chão” e ventos favoráveis, mas foi impossível chegar perto em virtude do estado do mar, entretanto registramos a caverna com algumas fotos.
Os caiaques estavam pesados com mantimentos e água que entrava pelo buraco do compartimento estanque de proa dos caiaques. A poucas remadas da Praia do Bonete avistamos um barco chamado “Boas Novas”, que nos auxiliou até a areia. Conhecemos o Seu Ditinho, dono de uma pousada e pescador da região, que nos levou até a sua esposa, Dona Rosa, senhora muito simpática que nos ofereceu um canto para dormir e uma bela refeição no jantar.
Durante o jantar conversamos com o casal e o experiente pescador nos dizia a respeito das condições climáticas e dos perigos que poderiam ser enfrentados na Ponta do Boi e na Ponta da Pirabura. Nessa região não teríamos nenhum apoio de praia em caso de alguma eventualidade, ou seja, só costões de pedras e teríamos um afundamento iminente em caso de qualquer sinistro com os caiaques. Remamos nesse dia 13,72 milhas náuticas (25,71 quilômetros) do Curral até o Bonete.
No segundo dia, 27 de dezembro, Acordamos às 4h30 da manhã e preparamos leite em pó com barra de cereais. Entramos na água por volta das 6h. Normalmente durante as primeiras horas do dia o vento sopra mais fraco, mas nesse dia estava diferente e remamos até um lugar chamado Saco do Diogo para cruzar a famosa Ponta do Boi no dia seguinte (atentamos para as observações do Seu Ditinho).
Na aproximação começamos a ver um abrigo coberto com folhas secas de coqueiros, uma rampa com pedaços de madeiras para a subida de pequenas embarcações e um cachorro preto com cara de poucos amigos.
Sabíamos que não poderíamos abusar da sorte e dos ventos em uma região tão perigosa, com histórico de tantos naufrágios, então resolvemos encarar e tentar conquistar a amizade do canino para tentar subir com os caiaques.
Mas como é mais fácil conquistar um cachorro do que um “boi”, usamos barras de cereais e logo conseguimos a fiel amizade a base de Nutri. Assim que deixamos os caiaques em posição segura, tiramos os mantimentos para comer também umas barras de cereais e tomar água.
Vila abandonada – Começamos a andar e observar que estávamos em uma espécie de vila abandonada. Todas as casas encontravam-se fechadas com os chinelos sobre os tapetes. Algo sem explicação, pois, em uma vila de pescadores, normalmente ficam as mulheres e filhos enquanto os homens vão conseguir o sustento para o lar na pesca. Mas nada víamos ali.
Como chegamos ainda pela manhã, fomos procurar andar pelo vilarejo e pelas trilhas. Encontramos coqueiros e um facão que serviu para abriu os cocos e tomar muita água, armazenamos um pouco dessa água em uma garrafa plástica e usamos um riacho com água corrente para gelá-la.
Para todo lado que andávamos o nosso novo amigo nos acompanhava e até parecia que queria nos mostrar algo. Resolvemos seguir os passos do animal e chegamos a uma visão do outro lado da enseada, onde iríamos começar a remar no dia seguinte.
Preparamos um macarrão com o fogareiro e fizemos a refeição acompanhado de batata palha. Se o espaguete que preparamos estava no ponto eu não sei, mas que estava delicioso e que nós estávamos famintos era uma certeza. Á água da região era linda e bem propícia para mergulhos, pois lá havia bancos de corais e uma diversidade enorme de peixes. Dormimos na companhia inseparável dos terríveis borrachudos que nem incensos de citronela e repelentes davam conta do recado. Remamos 4,65 milhas náuticas (8,61 quilômetros) do Bonete até o Saco do Diogo.
No terceiro dia, 28 de dezembro, acordamos na madrugada para preparar as coisas e seguir rumo. Logicamente nada poderia ficar para trás por dois motivos: o primeiro é porque depois de algumas remadas sentiríamos falta desse equipamento e ele poderia ser essencial para a continuidade do contorno e o segundo motivo seria para manter o meio ambiente não poluído, tentando mantê-lo da maneira que o encontramos.
Levamos também uma cuia que serviu para tirar o excesso de água do interior dos caiaques, aprendizado com os caiçaras da região. Ao tomarmos uns goles de água de coco gelada iniciamos a descida dos caiaques na água e o nosso amigo canino parecia que pressentia a nossa partida. Deitado, apoiava o focinho junto às patas. Como resultado ganhou mais uma barra de cereais.
Iniciamos nossas primeiras remadas receosos com o que viríamos pela frente. Depois de avistarmos quatro pontas pela proa, atingimos finalmente a Ponta do Boi com seu farol ao alto e um tempo muito estável: ventos calmos e mar sereno.
Um barco se aproximou e vimos a figura de Seu Ditinho, que acenava sobre seu “Boas Novas”. Depois que passamos pela Ponta do Boi e pela Ponta do Pirabura sentimos um grande alívio, pois ali entrávamos em uma enseada chamada Saco do Sombrio. Durante a aproximação à costa visualizamos o Iate Clube e um restaurante acima, que era restrito ao uso de sócios, o que nos excluiu de realizar um almoço merecido.
Mergulho – Mas encostamos o caiaque em um trapiche de madeira semelhante ao Saco do Diogo e sacamos mais uns biscoitos e barra de cereais. Mergulhamos um pouco e vimos maravilhas naquela região, muitos peixes e tartarugas em uma visão inigualável. Continuamos a remar e aproamos na praia de Castelhanos. Entrando em sua enseada, avistamos ao longe uma lindíssima cachoeira.
A Cachoeira do Gato ajudava a adornar aquele belo panorama que nos remetia a uma sensação de paz tremenda. Finalmente com caiaques na areia, um grupo de três jovens impressiou-se ao saber o que fazíamos e de onde chegávamos. Perguntamos sobre a cachoeira e recebemos as informações necessárias para caminhar sobre a trilha com trinta a quarenta minutos de duração até chegar a queda d´agua.
Armamos a barraca no terreno do Seu Arlindo – morador local indicado pelo Seu Ditinho – e almoçamos um belo “PF”, com arroz, feijão, frango e farofa. Seguimos até a cachoeira, que possui três quedas e cada uma forma pequenos tanques para ali sentir a força das águas massagear e refrescar o corpo.
Voltamos ao acampamento e conseguimos uma porção de calabresa. Porção essa que ficou para os cachorros da praia, pois estava esfarelando e apresentava uma aparência muito estranha. Observamos que o acesso à praia era feito somente por veículos com tração nas quatro rodas e por algumas motocicletas especiais para trânsito em terrenos acidentados. Remamos 15,65 milhas náuticas (25,41 quilômetros) do Saco do Diogo até Castelhanos.
No último dia, 29 de dezembro, acordamos antes do galo cantar e, com lanternas de cabeça, nos preparávamos para o próximo objetivo: chegar a Praia do Poço e lá por pernoitar.
Saímos da praia de Castelhanos ainda bem cedo sob os olhares atentos e curiosos de alguns pescadores que ajeitavam suas redes e material de pesca para embarque. Depois de algumas remadas chegamos ao Saco do Eustáquio e lá tiramos algumas fotos de toda a Enseada de Castelhanos.
Depois de uma parada rápida, seguimos até a Praia da Serraria para tomarmos água e conhecermos um pouco mais da região e de seus moradores. Encontramos uma senhora sexagenária dentro de uma casa de pau a pique, que dizia ser a matriarca da pequena vila e contou como chegou ao lugar com seu marido. Região onde antes era inabitada e que construiu uma pequena casa que abrigou sua prole e posteriormente seus netos. Todos os seus descendentes diretos são pescadores e moradores da vila, dessa forma, a vila é toda constituída por integrantes da família da senhora anfitriã.
Após um breve papo voltamos a remar passando pela Ponta Grossa e chegando à Praia do Poço. Pela primeira vez na vida vimos uma cachoeira desaguar nas areias da praia e formar um lago de água doce, ou seja, uma faixa de areia que separa águas com visibilidade de aproximadamente oito metros e uma queda dágua formando um lago de águas transparentes. Vimos uma placa não autorizando o camping naquela região, sendo assim concordamos em ir até o início do canal, a Praia da Armação. Passamos ao longe pela praia da Fome, Jabaquara e atingimos o Farol da Ponta das Canas.
A partir do Farol da Ponta das Canas finalmente conseguimos sinal de celular, uma vez que ao longo de toda a travessia ficamos incomunicáveis, sem sinal de celular e nem telefones públicos na parte leste da ilha. O Régis ligou para a namorada e eu falei com meus pais informando o fim desta nossa empreitada.
A partir daquele ponto teríamos a certeza de mais pessoas navegando, pescando e realizando esportes náuticos. Víamos as praias mais lotadas de banhistas, a movimentação de navios mercantes e lanchas rápidas sem querer anunciavam a nossa chegada. Ao chegarmos à Praia da Armação não cumprimos a nossa promessa e paramos na praia da Vila, próximo a Armação, para um breve lanche.
Enquanto eu tirava o excesso de água dos caiaques, o Régis foi em busca de algo para comermos. Na verdade, queríamos chegar logo e completarmos os 360 graus. Foram comprados quatro salgados e duas garrafas isotônico. Eram os melhores risoles que havíamos comido nas nossas vidas (o esforço em completar tamanha distância em um só dia e a fome nos deu essa certeza).
Entardecer – O sol já estava próximo do seu crepúsculo vespertino e começava a cutucar o horizonte quando tive a grata surpresa de nos aproximarmos da Ilha das Cabras e encontrar não só a namorada do Régis, mas também a minha esposa acenando. Algumas palavras sem sair dos cockpits e a passagem da máquina fotográfica para registrar nossa chegada vista de terra foi o que fizemos, pois ainda faltariam algumas milhas para o fim.
Muitos peixes saltavam próximos aos caiaques, sendo que um deles chegou a atingir meu peito entre uma e outra remada. Para coroar aquele fim de tarde, sob o céu vermelho do crepúsculo vespertino, a arraia salta sobre a água. Maravilhas da natureza…
Pouco a pouco a navegação estava cada vez mais complicada e perigosa em função da escuridão que nos encontrávamos. As pedras já estavam dificílimas de serem avistadas e uma delas chegou a raspar em meu casco. Remávamos mais próximos um do outro, pois tínhamos apenas uma luz estroboscópica para os dois caiaques. Passamos pela Praia Grande e avistamos a ponte de madeira junto ao casarão, próximo a Praia do Curral, mas a ansiedade era tamanha que chegamos a Praia do Veloso (uma após a do Curral), imaginando encontrá-las.
A pouca luminosidade na praia não identificava direito o que era areia e o que era mar, e uma segunda ligação no celular nos fez voltar alguns metros até a Praia do Curral e reencontrá-las. Dessa vez com um abraço apertado e merecido após termos findado o contorno.
Embarcamos os carros e seguimos até Caraguatatuba (SP), onde pernoitamos na casa de Dona Verônica, uma senhora muito bacana que é avó de um amigo nosso. Finalizamos com um até logo, pois teremos mais relatos e experiências vividas em viagens a remo ou por qualquer outro meio não convencional.
Pior do que não terminar uma viagem é nunca partir… (Amyr Klink)
Este texto foi escrito por: Luiz Carlos Calvo dos Santos Junior
Last modified: fevereiro 17, 2007