A média durante a expedição era de 25 a 30 quilômetros por dia (foto: Arquivo Pessoal)
Acendi a lanterna com todo o cuidado dentro do saco de dormir para não acordar minha mulher. Três horas da manhã! Pelo menos a fina chuva que começara na tarde anterior havia parado e o silêncio na mata era quase absoluto. Nosso grupo estava cansado e o novo dia que se aproximava prometia um pouco mais de esforço.
Pretendíamos restabelecer nosso cronograma de viagem, quebrado logo nos primeiros dias em função de inúmeras paradas para fotografias, aquarelas, pescarias, banhos de rio, observação de aves e várias outras manifestações de lazer que só uma boa expedição em canoas pode proporcionar. Afinal, foi exatamente para isso que nos engajamos nesta viagem de oito dias por um rio remoto a 600 quilômetros de nossos sofás nas salas de TV. Mas o excesso de lazer inicial teria que ser compensado, e por isso resolvemos aumentar em duas horas o tempo de remada diária pelos próximos dois dias. Nada muito sério, afinal, deslocar-se em silêncio por um rio e exclusivamente pela ação dos próprios braços também é importante parte do prazer!
Pelo cronograma da expedição, estabelecido após muitos meses de estudo sobre mapas, fotografias e relatos de outros viajantes, deveríamos chegar ao ponto final ainda no sábado pela manhã, nosso penúltimo dia de férias. A segunda-feira seguinte nos traria de volta ao (bem mais árduo) mundo do trabalho… Sabendo que simplesmente precisava dormir mais um pouco, espantei estes e outros pensamentos que passeavam pela minha cabeça e fui me enterrando no saco de dormir. Sobraram apenas o silêncio da mata e o contínuo murmurar do rio ao fundo.
Eram seis horas da manhã quando acordei com a fumaça proveniente da tentativa de Jorge em acender nosso pequeno fogareiro com gravetos molhados. Jorge, 52 anos, e seu filho Paulo, de 15 anos, estavam pela primeira vez em uma expedição como essa. Participaram avidamente em todos os preparativos e cumpriram com total perfeição a tarefa que lhes designei: estabelecer os cardápios diários.
Sabendo como a questão de alimentação é importante nestas expedições, transferi a responsabilidade para aqueles que me pareceram os mais metódicos de nosso variado grupo. O resultado foi muito, muito acima do esperado! Imagino que o Jorge tenha até se transformado em um verdadeiro expert em alimentação de campo, tamanha a literatura que ele consultou para preparar nossa pequena expedição. Bem, uma coisa é certa: nunca mais vou esquecer a fantástica torta de quatro queijos que ele tirou da manga no jantar do sexto dia. Uma mágica mesmo!
Abri a “porta” de nossa pequena barraca e notei que um belo dia se aproximava. Uma densa neblina pairava sobre o rio e já víamos manchas de um claro azul no céu. Até começarmos a desmontar o acampamento, todos os equipamentos já estariam secos da chuva e do orvalho. Jorge acenou um bom dia com um grande sorriso no rosto. Era evidente o quanto ele estava gostando da experiência. Provavelmente uma mistura de “estar sentindo o melhor da vida aos 52” com a possibilidade de participar de algo tão diferente na companhia de seu filho. O pai estava mais moço, e o filho estava mais responsável, pois ali ele fazia parte de um grupo que realmente contava com as suas ações – uma ótima lição para a adolescência.
As mulheres da expedição – Saí engatinhando da pequena barraca, mas, para variar, quase levo tudo junto. Cylene, minha esposa, acorda assustada com o brusco movimento de nosso fino teto de nylon. Sua presença é uma agradável surpresa, pois ela normalmente limita sua participação a expedições com no máximo três ou quatro pernoites no mato. Além dela, temos a presença de mais uma mulher, Yara, esposa do Roberto. Quando a vi pela primeira vez, há uns oito anos, devo admitir que nunca a imaginaria em uma expedição de canoas.
Cheia de ouros por todos os lados, os corredores de um shopping center lhe emolduravam com muito mais propriedade do que uma sapatilha de neoprene com os pés brancos e enrugados da umidade dentro. Engano total, forte remadora e ávida por novas expedições, é um verdadeiro motor a tocar nossos planos de viagens. Roberto não fica atrás! A canoa do casal tem mais quilômetros navegados do que muitos iates ancorados em finas marinas mundo afora. Cruzamos nossos caminhos pelas rápidas avenidas da Internet e, daí para a frente, sempre damos um jeito de cumprir algum programa juntos.
Se depender deles, escalar montanhas ou ir de bicicleta até a Amazônia são atividades tão comuns quanto jantar em uma cantina italiana no Brás numa sexta-feira à noite. Normalmente os dois são os primeiros a levantar, mas hoje não foi o caso. Talvez o forte cheiro do café que Jorge começou a preparar seja suficiente para tirá-los de dentro do casulo inflável – uma barraca inglesa inflável que eles consideram o máximo de conforto possível. Tenho cá minhas reservas com coisas infláveis em locais remotos, mas devo admitir certa inveja do conforto pneumático do chão daquela barraca…
Cumprindo minhas tarefas matinais, vou distribuindo vasilhas com sucrilhos sobre nossa pequena mesa improvisada. Dois pacotes de leite, três pacotes de bolachas salgadas e um saco de geléia de amoras são abertos e aguardam o ataque voraz. Yara e Roberto dão sinais de vida de dentro do casulo, mas quem surge primeiro em volta da “cozinha” são Rodrigo e seu filho, também Rodrigo (ou Júnior para os íntimos). Estes dois são apaixonados por pesca, e as canoas pelo jeito são apenas mais um meio de transporte para levá-los de encontro aos peixes.
Imagino que na falta de barcos eles saiam a nado com varas e acessórios nas costas, tamanha a paixão pela atividade! Praticam um tal de FlyFishing, ou pesca com moscas. Na minha ignorância sobre o assunto, imaginei que teríamos a desagradável companhia de frascos de vidro cheios de moscas se alimentando de alguma gosma branca no fundo. Qual não foi minha surpresa ao ver pequenos e belos estojos de couro cheios de tipos de iscas artificiais coloridas. Mais surpreso ainda fiquei ao saber que alguns daqueles estojos tinham mais dólares em iscas do que valiam minha canoa e sua inteira carga de acessórios!
A forte amizade entre os dois cresceu com a morte prematura da esposa/ mãe, quando passaram a fazer quase tudo juntos. A pesca era a mania da vez, mas já durava muitos anos pelo que pude perceber. Sempre muito quietos, adoravam mesmo era escutar as histórias descaradamente exageradas de Roberto, que logo tornou-se um grande amigo.
Júnior embolsou uns biscoitos e partiu para sua tradicional tentativa matinal de pesca. Seguia uma prática interessante, onde a captura de peixes era sempre seguida da soltura dos mesmos. Exceto se, por ordem do Jorge, o menu do dia acolhesse tal iguaria! Nosso grupo de oito pessoas estava muito bem entrosado nas lidas com acampamento e cozinha, de modo que se perdíamos tempo pela manhã para colocarmos os barcos na água era por simples e pura vontade, para não dizer saudável preguiça.
São quase sete horas e todos já estão em pé, devorando um café da manhã rico em calorias que serão queimadas com o suave e contínuo exercício de remar rio abaixo. Em algumas das reuniões de organização da viagem, Jorge havia expressado sua preocupação com a possibilidade de atingir um ponto de exaustão física, em função de sua idade e da longa duração do percurso. Tal temor se concretizaria se tivéssemos planejado um cronograma muito apertado ou exigente, mas neste caso pensamos em cumprir apenas de 25 a 30 quilômetros por dia, o que é uma média razoavelmente baixa para percursos em rios.
Nestes dois dias em que estávamos recuperando atrasos, aumentamos a média para 35 km/dia, distribuídos em sete horas de rio – uma tarefa ainda absolutamente fácil. De qualquer modo, logo nos primeiros dias Jorge percebeu que a canoagem de expedição em canoas canadenses tem muito mais ligação com cadência do que com descargas de energia, de modo que a atividade nunca lhe pesou mais do que alguns músculos levemente doloridos ao fim do dia. O consumo diário de uma aspirina indicado pelo cardiologista agora tinha mais utilidade.
A partida – Passamos rapidamente do café ao desmonte das barracas, enquanto Paulo e eu lavávamos a louça e organizávamos a cozinha. Tudo devidamente acondicionado em seus respectivos sacos e mochilas, cargas distribuídas entre os barcos, lixo orgânico devidamente enterrado, um último xixi no mato e vistoria final para ver se não estávamos esquecendo nada. Eram apenas oito horas daquela bela manhã e já estávamos fazendo uma nova curva rio abaixo, deixando para trás o acampamento número quatro.
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Este texto foi escrito por: Antonio Carlos Osse
Last modified: novembro 7, 2007