Após susto e máquina recuperada a viagem continua (foto: Arquivo Pessoal)
A idéia de descer as águas do rio Uruguai num primeiro momento me pareceu meio absurda. Num caiaque, acampando? Foram muitas conversas, dias e mais dias discutindo a respeito da viagem. Confesso que estava hesitante. A decisão de realizar a expedição, mesmo sem apoio terrestre, após sabermos que quem o faria infelizmente não poderia nos acompanhar, foi sem dúvida um dos momentos mais difíceis. Agora era hora. Não podíamos mais adiar. A busca por aventuras e desafios estava fervendo na veia.
Os planos, trajetos e planilhas seriam finalmente realizados. A nossa primeira expedição sairia do papel.
Sacos estanques, GPS, caiaque, equipamento fotográfico, dois remos e muita, mas muita força nos braços para vencer os 530 Km do percurso da primeira etapa da Expedição Fotográfica Deixa o Rio me Levar.
O objetivo principal da Expedição era fotografar a vida no Rio Uruguai. Fauna, flora e população ribeirinha. Eu havia descoberto a fotografia e suas maravilhas há cerca de um ano, época na qual havia decidido não ser mais nutricionista. O Eduardo, meu marido, havia decidido realmente ser arquiteto e urbanista, mas sem dúvida suas maiores criações seriam em meio à natureza. Dupla perfeita. Mais perfeito ainda quando a família dele, os Wagner Rogério, apoiou o projeto e realizou todo o suporte terrestre.
A saída estava planejada para o dia 03 de janeiro, de Campos Novos (SC), onde nasce o Rio Uruguai, no entroncamento do Pelotas com o Rio Canoas.
Chegando ao local da partida senti um nervosismo misturado com ansiedade. Naquele momento, quando vi o imenso Rio Uruguai, pensei: “É isso aí!”
O Carlos e a Jandira, pais do Eduardo, nos deixaram no primeiro ponto e sabiam que seriam 4 dias sem comunicação na mata fechada e sem civilização. Começamos a remar mais descompassados do que adolescentes em marcha de 7 de setembro. Já adiantando, acho que foi por volta do 3º dia que nos acertamos e a remada começou a render.
Adeptos de esportes de aventura como escalada, rafting, trilhas, surf e bike, essa seria uma experiência inédita. Sabíamos da importância do trabalho que registraria imagens que depois nunca mais seriam vistas (a explicação disso vem depois).
Era fantástico estar imerso numa orquestra de sons da natureza. Calma para os olhos, suavidade para os ouvidos. Foram quatro dias remando nos primeiros 70 Km. Quando digo remando, é remando de verdade, pois a barragem de Machadinho havia formado um enorme lago sem correnteza alguma.
Todo dia havia uma rotina rigorosa a cumprir. Montar equipamento, fazer o jantar e dormir. Na manhã do dia seguinte, arrumar acampamento, tomar café e partir. No início levávamos muito tempo para isso. Nos dias que se seguiram estávamos tão craques que já podíamos dar curso de organização e agilidade no meio do mato.
A primeira noite foi pra lá de maluca. Uma tempestade estava se aproximando e não conseguíamos achar um local para acampar. Remamos cerca de 5 km a mais do que havíamos planejado na tentativa de achar um local. Conseguimos uma pedra inclinada a cerca de 6 metros acima do nível da água. O barranco era lodo puro e esta altura toda até a vegetação era, devido às constantes oscilações do rio, controladas pelas barragens.
Chegamos à Machadinho no dia 05/01, exaustos, com os pés encardidos pelo barro vermelho, daquele tipo que gruda e não larga. O nosso maior desejo era comer frutas e verduras. Nossa alimentação havia sido calculada adequadamente, mas devido a natureza da expedição, espaço e o tempo até o suporte, era inviável levar alimentos frescos.
A cada dia, uma paisagem mais bela que a outra. A cada dia, histórias de vida e de pessoas que marcavam, alegravam e alertavam quanto às modificações trazidas pelas hidrelétricas.
Um de nossos objetivos era observar possíveis impactos ambientais causados pelas barragens. Nas conversas de varanda com os colonos descobrimos que eles existiam e não eram poucos.
O Rio estava sendo descaracterizado. Os ribeirinhos estavam perdendo sua cultura. Após a represa de Machadinho, achávamos que navegaríamos pelo verdadeiro Rio Uruguai, mas ele teve vida somente 15 ou 20 km. Depois disso encontraríamos 110 km de lago formado pela barragem de Itá.
Em cada contato com o suporte terrestre nos reabastecíamos de alimento, água e quando possível dormíamos em hotéis (adiantando, isso aconteceu em somente três cidades).
Após Itá, quando o Rio Uruguai voltou a ser rio de verdade, navegamos nas maravilhosas corredeiras que se estenderam até nosso ponto final da etapa, em Derrubadas (RS).
Em Goio En, um ribeirinho muito simpático que havíamos conhecido no dia anterior veio pela manhã nos trazer a merenda que sua mulher havia preparado. Deixamos um pacote de bolacha salgada de lado por um delicioso pão caseiro, com doce caseiro e queijo colonial. Em troca oferecemos aquilo que tínhamos: um copo de chá industrializado para acompanhar o lanche!
Nos momentos de descanso, aproveitava para escrever no diário de bordo. Tentava fazer isso diariamente para não deixar passar nada em branco. Cada conversa, cada acontecimento e sensações vividas eram anotados.
Sempre que avistávamos pessoas às margens do Uruguai perguntávamos o que vinha pela frente. O mais engraçado é que os ribeirinhos tinham muito medo da água. Em todas as corredeiras eles diziam serem perigosas e grandes. Sempre que chegávamos nelas pensávamos: Só isso? Eles tinham muito medo porque navegavam de caico, espécie de barco feito de madeira. Nosso caiaque até então tinha se mostrado muito estável. Feito de plástico ele era resistente e possuía orifícios para escoar a água.
Não imaginávamos que logo à frente, um pouco antes de Itapiranga (última cidade do percurso), essa estabilidade toda seria colocada à prova. Desconhecíamos uma parte do rio que chamavam de ‘caixão’, e de longe só ouvíamos um barulho muito grande, muito mais intenso que de outras corredeiras. O Eduardo ficou de pé no barco para ver se avistava como era. Não conseguíamos ver direito, só umas espumas. Pensamos: Esta deve ser igual às outras, talvez um pouco maior. Então, vamos pelo local mais agitado.
Se por um momento soubéssemos como era de verdade o tal caixão, com certeza escolheríamos a parte mais calma. Quando chegamos a alguns metros levamos um susto. O salto era muito grande. O maior que já tínhamos pegado. Fiquei com um frio na barriga. Passamos por uma descida, outra logo em seguida, e quando encontramos o fluxo do rio normal, ele nos pegou de lado e só consegui ouvir o Eduardo gritar: Ai! Virou. Nesse momento eu já estava debaixo da água. Vestíamos coletes e nossos pertences estavam devidamente amarrados, quer dizer, quase todos.
A queda foi tão forte e a água era tão intensa que meu saco estanque com a máquina fotográfica se desprendeu. Imagine! Nossa máquina com todas as fotos! Quando olhei, lá estava indo ela. Lá longe nas águas do Rio Uruguai. Não pensei duas vezes. Com um remo nas mãos fui de encontro até nosso bem mais precioso. Quando finalmente alcancei, o desafio era ir até a margem. O Eduardo vinha lá atrás com o caiaque remando feito um doido para me resgatar (ele demorou um pouco, pois teve que desvirá-lo).
Passado o susto, rimos bastante. Naquele instante nos demos conta de quanta beleza desapareceria após a construção de mais três barragens ao longo do Rio Uruguai (uma já em construção!).
Foram 23 dias de viagem. Hoje acordo querendo estar novamente nesse mundo. Por mais demorado que seja cozinhar para dois numa panela que cabe na palma da mão, sinto saudades de tomar banho de rio, lavar as roupas no rio e dormir ao som da água e à luz dos vaga-lumes. Agora é só aguardar pela segunda e terceira etapas da Expedição Fotográfica Deixa o Rio me Levar.
Veja mais informações em: www.deixaoriomelevar.org.
Este texto foi escrito por: Juliana Falchetti
Last modified: fevereiro 26, 2008