No cume da Pedra da Agulha (foto: Arquivo pessoal)
A Pedra da Agulha, em Pancas (ES), é o maior monólito em forma de agulha do Brasil. Ele foi escalado pela primeira vez em 1959, pela via Brasília, a chaminé mais difícil do Brasil durante décadas. Sua primeira repetição aconteceu 10 anos depois, em 1969. Até hoje, esta é a maior e mais difícil chaminé do Brasil, com quase 500 metros de altura. Considerada um mito para os escaladores antigos, é uma rota que impõe respeito, pois exige todos os tipos de técnicas para este estilo de subida. Mas nós (eu, Claudia Faria, paulista, e o carioca Gustavo Silvano) escolhemos subir a montanha por uma nova via, aberta por nós, na face oposta à Brasília.
A nossa busca por aventura
A cidade de Pancas está no Parque Nacional dos Pontões Capixabas, a 150 quilômetros de Vitória. Uma região farta de fazendas de café, de onde brotam paredes de granito com mais de 500 metros de escalada virgem.
Os vales da região são caracterizados pela presença de cachoeiras, rios, árvores nativas e comunidades locais de pessoas descendentes de pomeranos (região europeia hoje pertencente à Polônia), que se destacam pela hospitalidade. Desde a primeira escalada na região, eles acolhem com muito carinhos os esportistas. Um exemplo disto é a Família Romaz, que até hoje vive do cultivo do café e continua recebendo os escaladores (como nós) em sua fazenda.
Escolhemos fazer a face oposta à Brasília, na Aresta Norte da Agulha, depois de uma conversa com o primeiro escalador desta pedra, Giuseppe Pellegrini, que fez parte do grupo de 1959. Certa vez, de dentro do Bondinho do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, ele disse ao Gustavo que se abrissem uma via na Face Norte da Agulha, esta seria uma das escaladas mais lindas do Brasil. Pellegrini chegou a bater um grampo nesta face, para garantir que nenhum outro clube naquela época tentasse subir a Agulha, chamada de Dedo de Deus do Espírito Santo.
Primeiro dia: expectativa
Viajei 500 quilômetros de São Paulo até o Rio de Janeiro para encontrar Gustavo em sua Toyota Hilux, abarrotada de equipamentos. O que me impressionou foi saber que todas aquelas tralhas seriam levadas apenas por nós dois parede acima.
Segundo dia: viagem
Saímos do Rio ao amanhecer, tomando café na BR-101. Não sabia que ainda enfrentaríamos mais de 700 quilômetros de estrada até chegar a uma cidade pequena, chamada Pancas, que possui apenas três ruas principais. A cidade impressiona os escaladores que ali chegam: o menor pico na paisagem é do tamanho do Pão de Açúcar; o maior são dois Corcovados.
No final da tarde, decidimos ganhar tempo abrindo a trilha até a base da pedra. Abrimos um quilômetro de trilha, até nos encostarmos na majestosa agulha. Voltamos para a pousada à noite, cansados, mas felizes.
Terceiro dia: primeiro contato com a rocha
Como Gustavo sempre diz: a montanha é quem dita as regras do jogo. Cada um levou uma corda, alguns friends pequenos e 20 chapeletas. Após um dia inteiro castigados pelo sol, abrimos 120 metros de via com 10 chapeletas. Fixamos uma parada dupla e sugerimos um 7º grau para a parte mais vertical da via em livre. Ao término da escalada, fomos dar conta do tamanho da agulha que tínhamos escolhido para escalar e de suas dificuldades: a Face Norte, com o sol batendo nela o dia inteiro, era uma megavia, bem maior que a Chaminé Brasília.
Quarto dia: a grande surpresa
Subimos um total de 300 metros, tudo em livre. Estávamos com energia!
Levamos muita água. Porém, como o dia estava nublado, acabou sobrando o líquido, que deixamos na parede como reserva. De onde estávamos, dava para ver todas as fazendas ao redor da agulha. Desde o primeiro dia, ouvíamos um ronco assustador que vinha da mata. Descobrimos serem macacos, que vimos no topo das árvores.
Quando imaginávamos que estávamos no meio da escalada, já tínhamos gasto todas as nossas 33 chapeletas, um grampo P e todas as sete cordas fixas. Após três horas de descida com rapel, ficamos tristes ao olhar a via de sua base. Teríamos aproximadamente mais 400 metros de parede e só nos restavam 10 grampos P. Parecia que a escalada havia terminado ali. Sentimo-nos derrotados pela imensa muralha de granito lisa que tínhamos a frente e a nossa pouca quantidade de grampos para enfrentá-la. Parecia que apenas no final da parede havia alguma chaminé e fendas até o cume, que poderiam ser feitas de móveis.
Quinto dia: camaradagem
Como diz o Gustavo, quanto maior o problema, mais forte a cabeça dos homens. Meu companheiro fez contato com o Oswaldo Baldin, escalador de Vitória. Este concordou imediatamente em nos enviar 24 chapeletas. E, por milagre, descobrimos que um motorista da Prefeitura de Pancas viria de Vitória naquele mesmo dia, podendo nos trazer a encomenda.
Às 22 horas, o dedicado Secretário de Turismo Elson Augusto do Nascimento nos entregou pessoalmente as chapeletas na Pousada Ninho das Águias, nossa base na cidade. Gustavo agradeceu a todos. Agora, com as chapeletas nas mãos, tínhamos a esperança de terminar a escalada.
Sexto dia: o quase ataque
Demoramos metade do dia para repetir o trecho escalado no dia anterior, de 300 metros. Na outra parte do dia, ganhamos mais apenas 45 metros, debaixo de sol. Para piorar a situação, um gigantesco enxame de abelhas passou zumbindo em nossas orelhas. Ficamos com medo de ali existir uma colméia, perto de onde batíamos o grampo e conversávamos. Fizemos a descida em silêncio, para evitar um ataque.
Sétimo dia: alegria
Dia ensolarado e sacrificante para quem estava guiando, tendo de usar estribos, dar segurança, fazer os furos na mão ou com a furadeira, e ainda caindo pedras. Mesmo assim, chegamos à base da chaminé em formato de S que queríamos alcançar. E nem com binóculos dava para ver se ela era profunda e se precisaríamos bater mais grampo para fazê-la.
Agora, 50% da via já estava concluída. Faltava ainda um sistema de chaminé, fendas, fissuras, pequenas árvores na parede, com aproximadamente 300 metros direto ao cume. Tínhamos acabado de descobrir, como disse o Gustavo, a primeira linha mágica da vida. E então surgiu a ideia de homenagear um amigo, uma pessoa de muita importância para o montanhismo brasileiro.
Oitavo dia: 24 horas de escalada
Saímos às 5 da manhã, sozinhos, em um domingo, indo para a maior das aventuras: tentar chegar ao cume da agulha na companhia de todos os tipos de dificuldades, sem muita água e comida. Levamos equipamento de pernoite para apenas uma pessoa, poucas chapeletas, oito grampos, e furadeira com uma bateria.
Não levamos equipamento para dormir pendurados. Tínhamos de encontrar um platô onde coubessem os dois. Caso não achássemos, teríamos de chegar ao cume, o único local abrigado para passar a noite em segurança. Isso sem contar com o pior de tudo: a chuva. Se isso acontecesse, estaríamos presos na parede.
Retiramos a primeira corda fixa da via e as levamos para cima. A técnica era um guiar e o outro jumariar com tudo nas costas, com uma mochila que pesava uns 40 quilos.
A segunda parte da chaminé tinha uns 30 metros na vertical, de dificuldade 6º grau ou mais, inteiramente em fenda e proteção móvel. Se o guia caísse, parava na cabeça do outro. O lance era muito exposto. Até para o segundo era duro escalar, pois este tinha de entrar com a metade do corpo na chaminé, levando a mochila. Tivemos de abandonar vários friends nesse trecho, para ganhar tempo. No final do dia, com os últimos raios do sol, conseguimos vencer a chaminé. Usamos dois grampos e uma chapeleta.
Gustavo: Já à noite, fixei uma parada dupla no paredão vertical. O vento era gelado e estávamos expostos em uma aresta com mais de 400 metros de altura. Abrir uma via à noite é a coisa mais louca que existe. Toda hora eu tinha de parar na broca e desviar de blocos soltos. A próxima parada foi feita em um platô com formato de arco, onde mal cabiam os nossos pés.
A escalada começou a ficar perigosa por volta das 21 horas. O Gustavo, cansado, começou a pedir para deixarmos os equipamentos na parede, para ficarmos mais leves e ganharmos tempo. Em uma manobra rotineira, ele deixou cair um cliff, o último que nos restava. Por sorte, a peça ficou presa em uma planta e ele conseguiu recuperá-la. Sem ela seria o fim, pois não conseguiríamos progredir em um trecho liso que acabara de surgir.
Bexiga estourando de vontade de urinar, vento gelado, nenhum platô para ficarmos e muitas rochas soltas pelo caminho. E à noite ainda não dá para enxergar o melhor caminho.
Gustavo: Em uma medida desesperada, abandonei a furadeira, para ficar mais leve, coloquei duas chapeletas e três grampos na cadeirinha, alguns mosquetões friends já não havia mais, pois havíamos abandonado todos na chaminé. Parti leve e solto para o que seria a cordada mais importante da via. Bati (a martelo) uma chapeleta a cada 30 metros. A lua estava cheia, iluminando os enormes blocos e as árvores do platô secundário do cume da agulha. À meia-noite do dia 17 de julho de 2011, estávamos no final da impressionante agulha de Pancas, um big wall de 600 metros.
Meio litro de água, uma lata de sardinha e um pacote de azeitonas para o jantar. À uma hora da manhã dormimos feito ursos no capim, acordando às 5 horas, com a alvorada do sol.
Os vales estavam nevoados e as plantas com orvalho. Passávamos a língua em cada gotinha das pontas de folhas, em busca do precioso líquido.
Queríamos contornar um trecho de mato para alcançar a outra face da montanha, mas nos perdemos dentro da mata. Chegamos arranhados no lugar onde fica o livro do cume da Chaminé Brasília. Tomamos banho de sol, achei um carrapato em mim. Trocamos o livro, pois o antigo já estava todo molhado e estragado.
Às 8 horas em ponto, soltamos um rojão, como combinado com os locais. Passados alguns minutos, trabalhadores do cafezal gritaram para nós, e Genésio e Gerson, da Fazenda Romaz, soltaram outro rojão. Passada a euforia de notar que as pessoas estavam acompanhando a nossa escalada, iniciamos a descida.
O final: seis horas de rapel
Iniciamos o rapel com o sol já quente. Deixamos uma fita no primeiro, em uma árvore. Tive de esperar sem água, embaixo do sol, Gustavo bater um grampo a mão. Para chegar à chaminé, abandonamos uma corda presa por dois mosquetões, que nos serviu de corrimão. A corda ainda está lá para os próximos escaladores.
Passamos pela chaminé e recolhemos os friends que havíamos deixado. A cada cordada a mochila ficava mais pesada.
Já ao meio-dia, percebemos que a corda estava presa ao tentar puxá-la para baixo. Resolvi eu subir os 40 metros, para liberá-la. Gustavo já estava tão fraco, que seu semblante era apático um dia antes ele abrira 200 metros de via! Nada mal para um velhinho escalador, com hérnia de disco e 18 parafusos no braço.
O contratempo nos atrasou e nos expôs por mais tempo ao quente sol de um dia capixaba. O que nos entusiasmava era saber que no fim do próximo rapel havia um litro de água nos esperando. Ótima estratégia esta, de deixar a água na parede.
Terminamos a sequencia de rapeis às 15 horas, exaustos. E ainda tínhamos a trilha para encarar, com cada um levando aproximadamente 50 quilos de equipamento nas costas, mais 200 metros de cordas.
Mas valeu muito o esforço. Conseguimos chegar inteiros na pousada, após realizar o sonho de uma escaladora paulista (abrir um big wall) e o projeto de um alpinista carioca (terminar de escalar os três picos mais altos de Pancas: a Pedra da Gaveta, com 750 metros, feita em 1999 e 2000; a Pedra do Camelo, de 500 metros, subida em 2010; e agora a da Agulha).
O nome da via é Paredão Bernardo Collares, para que ele sempre seja lembrado nas alturas dos mais belos picos.
Este texto foi escrito por: Claudia Faria
Last modified: setembro 28, 2011
