Roberta Nunes e a espanhola Cecília Buil no cume. (foto: Arquivo pessoal)
Roberta Nunes chegou da Groenlândia para contar nesta coluna os detalhes de uma escalada histórica, feita por mulheres.
Na última coluna escrita aqui (clique para ler), comentei que havia sido convidada para escalar o Thumbnail, na Groenlândia. Logo após que recebi o convite para participar da “Expedição Groelândia”, de Cecília Buil, escaladora e alpinista, comecei a agilizar para ir à Espanha, onde ela mora, o quanto antes, para que pudéssemos treinar juntas.
A proposta do projeto era fazer uma travessia em caiaques individuais por mar, um trecho de 85 km até a base da parede, o acantilado Thumbnail (falésia rochosa que desemboca do mar com mais de mil metros de verticalidade). Ali tínhamos o objetivo de abrir uma nova via de escalada na parede, sendo que isso seria feito integralmente por mulheres, no caso Cecília e eu. A proposta era surreal. Admito que fiquei assustada.
O projeto teve patrocínio do Governo de Aragon, o que me viabilizou a viagem. Cheguei a Barcelona no dia 11 de junho. Ceci me esperava no aeroporto e fomos direto para sua casa, em Huesca, a três horas dali. Logo para os Pirineos, região montanhosa perto da fronteira com a França, onde tivemos um curso intensivo de caiaque com nosso guia, Gorka Ferro. Também tivemos aulas de filmagem, para o vídeo que Jesus Bosque estava proposto a fazer sobre a aventura.
O treinamento foi ótimo, remamos muito, cinco vezes por semana, horas e horas. Alternávamos o treino com escaladas e, claro, algumas festas ao som do flamenco. Estávamos em boa sintonia. Fizemos uma pequena travessia no mar Cantábrico, considerado revolto, para experimentar as correntes marítimas; por sorte passamos no teste.
Tivemos uma cerimônia de despedida e uma baita roda de imprensa, que divulgou a história por toda Europa. Pela primeira vez na vida vi escaladores serem tratados como celebridades…
Clique aqui e veja a galeria de fotos da escalada.
A Groenlândia vista do avião é fantástica, cheia de pontinhos brancos flutuando num mar azul-petróleo e com várias montanhas. Chegamos a Narssassuak no dia 23 de julho. O clima estava ótimo e estável, dezesseis graus, pleno verão para os esquimós.
Fomos recebidos pelo pessoal que alugou os caiaques marinhos, organizamos tudo e logo na manhã seguinte viajamos em barco até ao sul da ilha, Nanorthalik, ponto de partida para a travessia. Foram seis horas cruzando o mar cheio de icebergs. O povoado era bem arrumadinho, cheio de casinhas com telhados coloridos construídos pelo governo dinamarquês, por outro lado foi uma tremenda crueldade com os esquimós, pois sua cultura original foi massacrada. Muitas crianças bochechudas correndo pela única rua do lugar, até altas horas da noite, afinal o pôr-do-sol era às 23h20h!
A travessia foi algo incrível, vivi uma fábula por completo. No primeiro dia, vimos focas e baleias, bem de perto. Estávamos alucinados e imersos naquela paisagem tão exótica e um tanto tensos porque havia partes em que o mar estava mais revolto e sabíamos que não podíamos virar com o caiaque – em nossas condições suportaríamos apenas três minutos com vida dentro da água. Acredito que isso colaborou para que fossemos mais rápidos também, completando a travessia de 85 km em três dias.
Chegamos ao acampamento-base acabados, porém felizes pela experiência vivenciada. O acampamento era perfeito, com água que vinha das cascatas em desgelo, tundra como vegetação predominante e muitas amoras silvestres. A parede do Thumbnail ficava a seis km por mar, justo na frente.
Passamos três dias estudando o acantilado com a luneta. A única informação que tínhamos era dos ingleses que haviam aberto uma via há três anos. Decidimos por uma linha independente que dava acesso ao ponto mais alto de todo o acantilado, a torre Maujit Gorgassiana, cerca de duzentos metros mais alta que o Thumbnail.
Clique aqui e veja a galeria de fotos da escalada.
O começo da escalada foi difícil. Tardamos mais de quatro horas para fazer todo o transporte das coisas dos caiaques até os primeiros sessenta metros acima na parede. Jesus resolveu nos filmar e acompanhar subindo por cordas que fixávamos para ele. Foram oitocentos e vinte metros de escalada até chegar ao grande platô que cortava toda a parede. Três dias de empenho brutal, pois a parede encontrava-se úmida e com parte da rocha decomposta.
Medo, muito medo. Chegamos esgotados no platô, guardamos todo o equipamento atrás de umas rochas e resolvemos descer pela saída de emergência, uma canaleta de neve que ficava bem a esquerda do acantilado. Avisamos Gorka por rádio e ele foi ao nosso encontro na base da canaleta com os caiaques. Foram seis horas de descida.
Levamos muita sorte porque no dia seguinte começou a chover. Descansamos cinco dias e analisamos bem a segunda parte que tinha cara de ser mais difícil tecnicamente. Estávamos ansiosas para chegar naquela pontinha!
Mais uma vez nos caiques até a base da canaleta. Jesus nos acompanhou até ao grande platô pelas imagens e para ajudar a baixar o peso no etorno. Fomos rápidos desta vez, em cinco horas já estávamos no platô preparando nosso bivaque e organizando os equipamentos para a manhã seguinte.
“Fast climb yosemitero” – Acordo com o grito de Ceci:Vamos Roberta, ya está!. Eram 4h30. Começamos a escalar às 5h15, superleves, na tentativa de chegar ao cume naquele mesmo dia. Era um risco, mas estávamos empolgadas de pôr em prática o bendito “fast climb yosemitero”!
Escalamos muito em simultâneo, a rocha impecável, bonita, boa proteção, seca, alguns trâmites difíceis tecnicamente, jogando a graduação um pouco mais alta. Nossa, foi tão intenso que quando vimos que estávamos no cume, na pontinha que tanto queríamos, depois de 800 metros escalados, constatamos que realmente éramos os primeiros humanos a pisar ali!
Que presente! Não sabíamos se chorávamos ou ríamos vendo todo aquele visual fantástico do mar e montanhas. Eram 18h30. Fizemos um contato breve por rádio com Jesus e Gorka. E fomos para baixo o quanto antes.
Começou a cair a temperatura… primeiro problema. Justo no primeiro rapel, a corda engatou duas vezes, nos obrigando a escalar de novo. Chegamos ao grande platô às 11h30 feito zumbis. Jesus esperava contentíssimo, com água e comida. Tivemos um breve descanso de quatro horas e resolvemos descer para nosso amado acampamento. Avisamos Gorka marcando a base da canaleta como ponto de encontro.
Travessia noturna – Realizamos a pequena travessia nos caiaques à noite. Foi um momento bem tenso e desgastante, depois de mais de trinta horas sem dormir. Chegamos ao acampamento, um copinho de champanhe para comemorar por estarmos todos vivos e um pouco de comida, e rapidamente fomos os quatro para o saco de dormir, sequinho!
A volta foi bem tranqüila, fomos recebidas com festa e homenagens pelo governo espanhol pela novidade para a história do alpinismo mundial: era a maior via de escalada técnica aberta por mulheres. O mais lindo é que não fomos buscar isso, como muitas pessoas podem pensar. Foram 1.620 metros, em 31 cordadas, com dificuldade V, 7C, A2+, com o nome de Hidrofilia, que quer dizer gosto por água, por ser uma de nossas aventuras mais úmidas.
Não batemos nenhuma chapeleta, não fixamos cordas, utilizamos apenas dois pítons. Os rapéis eram feitos na grande maioria laçando grandes blocos de pedra.
Significado – Para mim foi a aventura mais intensa que já participei. Com Cecília, compartimos de igual para igual em tudo, alegrias, medos, inseguranças… foi possível sentir o equilíbrio. Nos tornamos todos muito amigos e aprendemos um com o outro.
Pela primeira vez volto de uma viagem vazia de planos viajantes. Acredito que vai mais um tempo para assimilar tudo que vivi. O vídeo será lançado em dezembro com grandes chances nos festivais europeus. E mais detalhes desta aventura também estarão no próximo número da revista Headwall.
Gostaria de dedicar esta experiência maravilhosa ao meu querido amigo, companheiro e mestre José Pereyra, que já não faz mais parte desta dimensão desde de janeiro de 2003. Ele me ensinou o desapego do ego e a compartir as montanhas, e não conquistá-las!!!
Este texto foi escrito por: Roberta Nunes
Last modified: outubro 21, 2003