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A temporada 2006 no Everest de Paulo e Helena Coelho


Paulo Coelho sobe para o Colo Norte (foto de 2003) (foto: Helena Coelho)

A montanhista e colunista do Webventure Helena Coelho, conta, direto de Katmandu, no Nepal, como foi a temporada dela e de Paulo no Monte Everest. O casal tentou novamente fazer a escalada sem oxigênio suplementar, mas dois eventos adiaram o feito.

Helena conta também alguns detalhes de outras expedições que estavam com eles, fala de Vitor Negrete e Rodrigo Raineiri e questiona a ajuda cada vez menor – de montanhistas na montanha.

Desta vez estávamos bem preparados. Fomos aos detalhes na preparação física; não gostaria de chegar lá e não poder acompanhar o Paulo ao cume… também checamos toda a parte da alimentação.

O restante foi meio corrido, não houve muito tempo para checar todo o equipamento, só deu para colocar nas imensas malas e ir para o aeroporto, no meio de finalizar a entrega do Imposto de Renda. Ainda bem que dois amigos queridos nos pegaram em casa e nos deixaram no aeroporto.

Depois de entrar no avião foi um respiro de alívio. Agora daria para descansar um pouco, mesmo que nos bancos apertados da classe econômica. Claro que nem tudo foi somente descanso. Um vôo foi cancelado, nos mandaram para outro país não previsto, tivemos que dormir uma noite lá. Enfim chegamos em Kathmandu.

Pra variar, a cidade estava com toque de recolher, manifestações fortes contra o rei. Novamente corrido. Um dia apenas para o visto da embaixada chinesa e já saímos às 4 horas da manhã para a fronteira. O restante de nosso grupo já havia ido, já estavam no Acampamento Base.

Fomos encontrar o grupo com o qual dividiríamos a permissão de escalada ao Monte Everest e o serviço de cozinheiro e comida no Campo Base (BC) e Campo Base Avançado (ABC) somente no dia 21 de abril no ABC. Era um grupo bem diversificado: nós dois brasileiros, o Rodrigo e o Vitor, seus dois sherpas, dois norte-americanos e um sherpa de um deles, um inglês, um malasiano e seu sherpa, um equatoriano e três austríacos.

Os estilos, os mais variados: o norte-americano iria com sherpa e oxigênio, o outro só com oxigênio, o inglês com oxigênio carregaria toda a sua carga, o malasiano teria oxigênio e um sherpa, os austríacos e nós subiríamos sem oxigênio e sem sherpas, o Rodrigo e o Vitor com sherpas e oxigênio para caso fosse necessário.

Todos com uma característica importante: autonomia para decidir o que fazer. E todos absolutamente independentes uns dos outros após o ABC. Com seus próprios equipamentos, sua própria estratégia.

Nos encontrávamos na “dinner tent” para o café da manhã, o almoço e o jantar quando estávamos no Campo Base Avançado. Conversávamos, trocávamos notícias e só.

Brasileiros no Everest – Tivemos uma convivência agradável entre os brasileiros. O Vitor com seu jeito irreverente, debochado e o Rodrigo sempre mais sério, mas não menos comunicativo.

O Vitor falou muito da Marina, do seu caráter absolutamente humanitário, de quanto ela se preocupava, segundo ele talvez por ter estudado Ciências Sociais, de como as pessoas poderiam viver com um mínimo de condições. De como ele se preocupava com os filhos quando viajava, de deixar meios para a Marina cuidar das crianças. Falou da viagem para a Argentina em que a Marina e ele definitivamente se aproximaram; falou de como o filho mais velho parece um argentino.

Em outro momento, ele pediu emprestado um livro que o Paulo estava terminando de ler – “Clouds from both side” de Julie Tullis, escaladora inglesa que morreu em 1986 apos atingir o cume do K2. No livro falava da infância de Julie Tullis na Inglaterra no período da Segunda Guerra; elas eram mandadas para o interior para viverem em fazendas esperando a guerra terminar. O Vitor falou então de que pareciam as historias da infância de sua mãe e que em Kathmandu iria procurar encontrar o livro em espanhol para que sua mãe pudesse ler.

Assim, eu e o Paulo íamos passando o período de aclimatação e de transporte de material para o Colo Norte 7.000 m de altitude e para o Campo 2. O tempo andava bom; ou melhor, aparentemente bom. Sem ventos, mas muito frio. Tanto é que neste ano, os cumes foram antecipados, mas muitos congelamentos foram registrados.

Vitor e Rodrigo tinham telefone via satélite e sempre que recebia mensagem do Marcelo Romão do INPE (especialista em meteorologia), Vitor passava as informações para todos do grupo, sem restrições. Valeu, Marcelo Romão. Suas informações foram boas, de modo geral, antecipavam a realidade.

Quando chegou a lua cheia, todo mundo se agitou no ABC. Há uma crença de que a lua cheia traz bom tempo. Nem sempre é verdade, mas alguns subiram para aproveitar. O George e Lhakpa subiram para fazer o cume no dia 12. E fizeram. Mas, segundo eles, que estavam usando oxigênio e auxílio de sherpas, estava muito frio. Não teria sido possível sem oxigênio.

Subimos até o Colo Norte, no mesmo período, mas, o casal de austríacos também subiu, foi ate o Campo 2 e voltou dizendo que o frio estava demais para quem fosse sem O2. O recado foi claramente ouvido por nós. Voltamos para o ABC.

Janela de bom tempo – Quando chegou lá para o dia 14, o Vitor disse que o Marcelo avisou: dia 18 será o dia. Sem vento. 24 horas de janela. O pessoal do lado do Nepal também irá fazer cume nesse dia. Então, o negócio foi se preparar para iniciar a subida no dia 15 para o Colo Norte, dia 16 para o Campo 2, dia 17 para o Campo 3 e dia 18 finalmente o cume. Nos outros grupos também jogavam com as datas de 17 ou 18 ou 19. Nós preparamos também. Se é para ser agora, vamos.

Presenciei involuntariamente o último diálogo entre o Rodrigo e o Vitor. Claro que não vou reproduzir aqui. O diálogo era deles. Mas, o Rodrigo com uma infecção na garganta, iria descer para o Campo Base para se recuperar e Vitor iria aproveitar a janela.

Nós subimos no dia 15 para o Colo Norte. O Vitor também. No dia 16, o Paulo foi o primeiro de nós a ir para o Campo 2. Em seguida, o Vitor passou por nossa barraca, eu pedi para ele que checasse com um dos turcos que tinham feito cume no dia anterior sobre uma informação de que o inglês – David Sharp – de nosso grupo de permissão estava muito mal em algum lugar da ridge.

Ele checou, meio que confirmando, mas sem saber como ele estaria. E começou a subir. Eu terminei de me preparar e comecei a subir também para o Campo 2. Não havia subido muito quando recebi a informação pelo rádio que o David Sharp estava morto em algum lugar antes do Primeiro Escalão. Foi um baque.

Eu disse ao Paulo pelo rádio e fiquei um pouco lembrando desse inglês e tentando reunir as poucas informações que sabia atá o momento. David era um rapaz que, em dado momento da vida, decidira pedir as contas num bom emprego, reunir todo o dinheiro que pode e foi viver tipo seis meses na América do Sul, foi escalar o Cho Oyu, o Everest – estava lá pela terceira vez e, segundo ele, o dinheiro acabara e agora, após ter feito um curso para ser professor de Matemática, teria que voltar a trabalhar.

A lembrança de David Sharp – Ele dizia que já tentara sem oxigênio, mas, que desta vez, iria escalar com oxigênio. Tinha forca suficiente para carregar seus cilindros e, portanto, não usaria sherpas. Que ele tinha muito pulmão, mas pouca perna. Ele era bem inglês. Um humor inglês.

Dizia que na América não se sabe falar inglês. Mas, quando estava no ABC, conversava com todos, comia bastante, tinha uma paciência inglesa para comer, com garfo e faca, a pouca carne que vinha nos ossos dos ensopados.

Que triste parece ter sido a sua subida para o cume. Parece que foi ao cume e que na volta, enfiou-se em uma cave, ao lado de um outro corpo que já estava lá, para morrer congelado. Ao lado, passando mais de não sei quantos escaladores e sherpas subindo ao cume e, alguns, clientes de uma grande expedição comercial, não pararam para ver o que ocorria.

Um deles, me disse que o seu sherpa falou “não olha não, segue em frente”. E ele seguiu em frente para o cume. O turco disse ao Vitor que reconheceu o David, que parou e tentou tirá-lo da cave para dar O2, mas que não adiantou muito… Enfim, o que ocorreu não sabemos direito.

Pouco depois de recebermos, por rádio, a notícia da morte do David, um outro montanhista, o George, que estava no ABC comunicou-se com a gente e pediu-nos que ajudássemos a descer o Ravi, um malasiano, que também fazia parte do nosso grupo de permissão de escalada.

Ele contou que Ravi estava descendo com os dedos de ambas as mãos congelados, descia muito lentamente, que somente o sherpa não estava dominando a situação, e se poderíamos descer com ele. É claro que não vacilamos. O Paulo avisou para o Vitor da situação e de que iria descer para ajudar o Ravi.

O Paulo e o Vitor se encontraram com o Ravi quase no Campo 2; o Paulo terminou de chegar ao Campo 2, fez um depósito da nossa carga e começou a descer. Eu voltei de onde estava para o Colo Norte e comecei a preparar água para esperar o Ravi chegar até o local. Fiz sopa para eles, chá.

O Paulo desceu e aí junto com o sherpa baixaram o Ravi até o Campo Base Avançado – ABC, chegando mais ou menos 22 horas. Os dedos das mãos dele estavam realmente muito congelados com forte chance de ter partes amputadas. Além do que estavam, o Ravi e o sherpa, bem desgastados.

Com isso, a janela do dia 18 já era. Resolvemos então descer para o campo base para descansar e voltar a subir na ultima semana do mês.

No Campo Base, encontramos então com o Rodrigo e aí, juntos, ficamos sabendo que o Vitor havia ficado na montanha. Que ele havia subido para o cume sem oxigênio, sem o sherpa e que na volta, no segundo escalão, mais ou menos 8.600 m de altitude, havia chamado o sherpa para ajudá-lo, que ele estava muito mal.

Os sherpas subiram, deram oxigênio para ele desde aí, trouxeram-no até o Campo 3 8.300 m de altitude e que aí ele não resistiu.

Foi uma tristeza generalizada. As mortes do David e do Vitor, do mesmo grupo de permissão. O David que usou oxigênio na ida e na volta do cume. O que ocorreu? O Vitor que não usou na subida, mas sim na volta, a partir do encontro com os sherpas.

Por que o O2 não ajudou na recuperação dele? Nesta temporada, muitos sherpas e ocidentais tiveram dedos dos pés e ou das mãos congelados; um número grande de mortes ocorreram. Justo numa temporada onde o tempo parecia tão bom. Realmente bom, mas muito frio em alguns dias.

Apesar de que um inconseqüente de um sherpa de uma expedição comercial pelo lado do Nepal ter chegado ao cume e tirado a roupa numa clara demonstração de desprezo por tudo o que estava acontecendo… Ou por achar que sua expedição era mais poderosa do que tudo.

Até quando essa banalização? Quase 200 chegaram ao cume pelo lado do Nepal, ainda não sei quantos pelo lado do Tibete. Sem oxigênio, pelo que temos informação, três foram ao cume e voltaram sem oxigênio – um tcheco, um austríaco – Cris e o Patricio Tisalema, um equatoriano.

Mas, só para continuar. Após o dia 20 de maio, o tempo pareceu melhorar a cada dia e estavam prevendo nova boa janela para após 24. Resolvemos fazer mais uma tentativa.

Subimos. Colo Norte. Descansei um dia para ganhar mais energia. Subimos para o campo 2 no dia 25. Lá, surpresa: não encontramos a barraca com saco de dormir, colchonete, etc. O Rodrigo e o Vitor já não tinham encontrado seu material no Campo 2 numa outra subida, mas o sherpa conseguiu arranjar um outro lugar para eles. No nosso caso, desolados, não restou muito o que fazer. Voltamos para o Colo Norte, debaixo de nevada e sem muita visibilidade. No dia seguinte, arrumamos nossas coisas e descemos para o ABC.

Numa próxima vez, se houver, teremos que contratar algum sherpa que atue como “guarda” e possa providenciar novo material caso algum engraçadinho resolva usar as nossas coisas.

E Lincoln Hall está vivo – Mas, isso ainda é de menos. Veja o caso do Lincoln Hall que subiu em uma grande expedição, com sherpas, e, nesse mesmo dia, foi deixado no Segundo Escalão, considerado como morto pelos sherpas.

No dia seguinte, outros expedicionários subiram e encontraram o escalador bastante desorientado mas procurando por seus sherpas. Estava com as pontas dos dedos das mãos e dos pés congelados. Os sherpas dele subiram novamente e ele conseguiu ser resgatado com vida.

E claro que outros escaladores passaram por ele e não perceberam nada… Isso é inexperiência em termos de montanhismo? Falta de cultura de montanha? Ou alguma coisa acontece que deixa as pessoas sem sentimento humano acima dos 8.000 m de altitude??? A vida deixa de ter valor? E o cume é a qualquer preço?

Helena Guiro Pacheco Pinto Coelho, 53 anos, colunista do Webventure, é guia de trekking, escala há mais de 30 anos em montanhas do Brasil e na Cordilheira dos Andes. Escalou os mais altos cumes desta cordilheira – na Argentina, cinco vezes o Aconcágua; no Peru, o Huascaran; no Chile, o Vulcão Ojos del Salado; e na Bolívia, o Illimani. Também escalou o Mont Blanc (Europa), Kilimanjaro (África) e Elbrus (Rússia). Foi a primeira mulher brasileira a trabalhar na Antártica como alpinista de apoio ao “Programa Antártico Brasileiro”. Participou de cinco escaladas no Himalaia, chegando a 8.400m de altitude no Everest (8.848m). Helena e Paulo Coelho têm o apoio Iram, Curtlo, Hi-Tec, By, Sportslab.

Este texto foi escrito por: Helena Coelho, de Katmandu (Nepal)