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A vida na Terra do Fogo


A viagem de bike proporciona experiências únicas (foto: Arquivo Pessoal)

Nesta coluna, Fabio Zander revela alguns detalhes de sua viagem para a Terra do Fogo e conta que nada disso seria possível se ele não estivesse viajando de bicicleta.

O asfalto continua muito escorregadio, com uma fina camada de gelo, e a temperatura é de 4ºC. Já estou fora de Rio Grande (Terra do Fogo na Argentina) e avisto ao longe altas montanhas com neve em seus picos e, mais alguns quilômetros adiante, surgem as primeiras árvores na estepe.

A região cheia de morros parece ter mais vida com a presença constante de guanacos, ovelhas e zorros colorados (espécie de raposa), além de sons como pios de aves ou o vento nas árvores. Estou numa área de transição, e a estepe, aos poucos, é deixada para trás.

Quando registrei 50 quilômetros pedalados, entrei na região dos bosques, de árvores com aparência retorcida que lembram os bonsais japoneses. No fim de tarde, já anoitecendo, alcancei a Estância Rio Ewan, que era o meu objetivo do dia e, ao pedir local para montar a barraca, o pastor de ovelhas me ofereceu a sua casa. Uma casa simples com um quarto, um banheiro e uma cozinha aconchegante e aquecida pelo fogão à lenha.

Conversamos e bebemos bastante mate à beira do fogão enquanto ele preparava uma espécie de pão frito que chamava de torta. Os ingredientes para a torta são farinha, fermento, sal e água; depois é só misturar tudo até formar uma massa elástica.

Esta massa foi esticada com um rolo sobre a mesa, no caso uma garrafa de vinho, e em seguida foi cortada em quadrados de aproximadamente quinze centímetros de cada lado. O pastor jogava estes quadrados em uma grande panela cheia de gordura de vaca e os fritava, nesta etapa dei minha ajuda.

Para acompanhamento das tortas ele ainda preparou uma sopa com pedaços de carneiro, temperada com ervas, um cubo de caldo de carne e batata. Em determinado momento o pastor saiu da cozinha e voltou com um pedaço congelado de coxa de carneiro na mão esquerda e, na outra, um serrote. Serrou sobre a mesa alguns pedaços de carne e as jogou na água que esquentava em uma panela sobre o fogão.

O jantar foi delicioso, com uma carne de carneiro muito macia e suculenta, comi de gula. Em seguida, tomando mate, conversamos sobre futebol, criação de ovinos e de uma das pragas da região, os castores. A noite se juntou ao nosso papo, um animado pastor evangélico, que mais tarde seguiu seu caminho a Tolhuin, sem antes me abençoar na viagem a Ushuaia.

A água usada para higiene pessoal ou mesmo para lavar pratos e talheres é esquentada no fogão. Apenas este sistema funciona, pois a água do sistema de encanamento está congelada e apenas voltará a funcionar na primavera. Dormi sobre uma cama com apenas um estrado e ouvindo no radinho de pilha do pastor o jogo entre o Boca Juniors e o Vasco da Gama. Lembrando, não existe eletricidade na estância, apenas um gerador que é ligado quando o proprietário das terras está, senão é lampião a querosene ou vela para a iluminação.

De dentro da cozinha aconchegante, tomo mate com o pastor de ovelhas e observamos pela janela a neve caindo e a paisagem branca e fria da manhã. Escutar pelo radinho de pilhas a música de Louis Armstrong, “What a wonderful World”, coroou aquela maravilhosa manhã a beira do fogão a lenha. Da janela vejo alguns cães e me impressiono com a capacidade deles para aguentar tanto frio.

Fui conhecer um galpão da estância, uma espécie de despensa, na qual vi pendurados do teto, pedaços de coxa de guanacos, ovelhas, os enormes castores e outros inúmeros couros esticados pelo galpão. Depois de curtir a estadia e a experiência inesquecível de conhecer o modo de vida de um típico morador da Terra do Fogo, comecei a juntar as coisas e a montá-las em minha bicicleta. O pastor ainda me deu um saco cheio de tortas em troca lhe dei um boné.

Solidariedade é o que mais tive das pessoas que vivem na Terra do Fogo e na Patagônia; gente muito simples, trabalhadora e que, apesar das dificuldades, ajudam uns aos outros. Isso me lembrava bastante das pedaladas no interior do Brasil, o povo receptivo e falante, verdadeiros contadores de “causos”.

O trecho acima foi retirado do livreto que escrevi sobre a “Pedalada del Fuego”, minha viagem com destino a Ushuaia no inverno de 2001, atravessando regiões inóspitas da Patagônia e Terra do Fogo. Se estivesse de carro ou moto, muito provavelmente, eu não teria vivenciado a história descrita acima.

A bicicleta cria empatia com os moradores das regiões percorridas que são ávidas por novidades, informações e histórias da pedalada. Chegam a oferecer alimentos, água e algumas vezes até um teto para passar a noite.

Esta é a oportunidade do cicloturista interagir com o meio, conhecendo uma nova cultura e a forma com que as pessoas vivem e sobrevivem em determinada região. É essa interação, uma das qualidades do cicloturismo, que me faz continuar viajando e utilizando a bicicleta como meio de transporte.

Existe uma frase que resume bem o que o cicloturismo significa: “Só há real leitura de tempo e espaço para quem vai a pé, ou no máximo, de bicicleta.”

Este texto foi escrito por: Fabio Zander