Partida de Sorocaba para 100 dias de volta ao mundo (foto: Arquivo Asas do Vento)
Hoje em dia o termo volta ao mundo nem causa mais espanto. Muita gente, agora mesmo, está tentando este feito. No último dia 28 de setembro, Gerárd Moss, inglês naturalizado brasileiro, completou seu segundo (!) giro pelo mundo, desta vez a bordo do motoplanador Ximango. A façanha não soou como algo de outro planeta, como se estivéssemos na época de Vasco da Gama. Isso porque, durante todos os cem dias em que sobrevoou o mundo, Moss pode ser acompanhado pela Internet e a TV, muitas vezes ao vivo.
Mas é possível encarar esta realização apenas como uma viagem dos nossos tempos modernos? Me fiz esta pergunta ao começar esta reportagem, cuja idéia era reunir os melhores momentos do Asas do Vento. Confesso: fiquei meio perdida. E sem GPS! É que a conquista de Gerárd é singular e admirável pelos mais diversos ângulos. E alguns têm passado quase despercebidos.
A escolher… – É fácil destacar a interceptação por caças japoneses ou a noite sob custódia no Vietnã. Mas o que dizer das inúmeras situações de mau tempo enfrentadas? Tem mais: havia o caráter científico de coletar amostras do ar em diversas partes do planeta. E como alguém consegue estar atento a tudo isso e ainda passar meses levantando cedíssimo, pilotando, escrevendo um diário de bordo e até almoçando sopas e barrinhas de cereais pelo céu afora?
Por isso é que peço licença para publicar esta reportagem em duas partes. E acredito que você vá achar pouco, pois não faltam histórias para serem contadas. Então, vamos logo levantar vôo. Esprema-se com a gente no Ximango, esqueça o medo de altura ou do fracasso. Da América à Sibéria, pela Ásia e Oceania, começa a volta pelo mundo de Moss neste Aventura Brasil, parte 1.
Largar tudo para viajar pelo mundo inteiro parece algo para quem tem muita sorte na vida… Certamente é um privilégio, mas está longe de ser brincadeira. Não havia espaço para a inexperiência num desafio desses. Gerárd Moss, engenheiro mecânico e empresário, possui 2.500 horas de vôo de monomotor. Já havia pousado em 80 países, a maioria durante a volta ao mundo num Sertanejo, batizado de Romeu, realizada entre 1989-92 ao lado da esposa, Margi, queniana que também adotou o Brasil como pátria.
Na nova volta que Moss realizaria neste ano, a bordo de um motoplanador Ximango, só haveria espaço para ele no cockpit da aeronave. Isto não quer dizer que a expedição tenha sido em solitário. Margi fez parte dela tanto quanto na viagem anterior. Do Rio de Janeiro, onde o casal mora, ela correu o mundo atrás de permissões para pouso em países muito complicados, como o Vietnã, a Arábia e o Paquistão. Junto dela, outros membros da equipe trabalharam intensamente pelo projeto.
A bordo – Como pretendia sobrevoar e aterrisar na Sibéria, durante alguns dias o piloto dividiu o pequeno avião com o amigo russo Yakov Sabodin, fundamental não só nesta rota como em outros momentos da viagem, quando ajudou em terra. Fora isso, estavam a bordo milhares de internautas.
O fato de a aeronave ser um motoplanador permitia que Moss pudesse, se as condições de vento fossem ideais, desligar o motor e planar, com as longas asas do Ximango, o que foi considerado por ele o maior prazer em toda a viagem.
O avião é brasileiro, fabricado pela Aeromot. Leve, exige que o equipamento a ser levado seja o mínimo possível. Ainda assim, foi carregado com câmeras, inclusive na asa, uma pequena ilha de edição de imagens e equipamentos especiais para coletar as amostras de ar que serão analisadas no Brasil e na Inglaterra.
Tudo pronto – Um ano de planos, o projeto no papel, a reunião de patrocinadores que acreditaram na idéia, preparação da aeronave, acertos dos trâmites para poder voar pelo mundo e, no dia 23 de junho, em Sorocaba (SP), o Ximango PT-ZAM e Gerárd Moss partiram oficialmente para a façanha.
Pela frente, muita espectativa e, para o piloto, uma lista nada enxuta de tarefas extras: descarregar os dados da pesquisa ambiental, escolher e editar as imagens de vídeo, selecionar as fotos digitais, responder e-mails urgentes e escrever o diário. E ainda assim, todo dia, eu escuto as pessoas dizerem: Como você é sortudo de sair por aí, dando volta ao mundo…
Ainda em casa, Moss enfrentou a primeira turbulência, a caminho de Sorocaba. Estava voando a 6.500 pés de altitude mas, ao atravessar a Serra do Mar perto de Ubatuba, a turbulência aumentou assustadoramente. Parecia que acabávamos de sair da máquina de lavar”, comparou. “Na minha primeira perna da volta ao mundo, já fui obrigado a pousar em outro aeroporto devido ao mau tempo. O que me esperaria lá fora?
Para relaxar, um almoço a bordo, com sopa de legumes e uma bebida láctea sabor baunilha… Moss seguiu de Sorocaba para Goiânia, depois para a região Norte até a Venezuela, onde pretendia filmar o Santo Angel, a maior catarata do mundo, com 980 metros, mas as nuvens lhe roubaram a cena.
Na América Central, em El Salvador, o cenário mudou para vulcões. Cortei o motor para circular acima do vulcão Santa Ana, ao oeste de San Salvador. Está coberto de uma vegetação exuberante e pés de café, mesmo dentro da cratera.
Recorde – O brasileiro seguiu para a Guatemala e chegou ao México. Então a surpresa não foi uma paisagem estonteante, mas a facilidade para passar pela alfândega. o maior desafio de dar a volta ao mundo em um avião não está no ar. Em quatro paradas na Índia, por exemplo, perdi 19 horas em aeroportos preenchendo formulários, respondendo a perguntas oficiais e ouvindo Sente e espere . Na mexicana Turreón, foram gastos apenas 10 minutos.
Também com o motor desligado, ele desfrutou das paisagens do deserto mexicano. O silêncio repentino a 11.000 pés acima do deserto. O lugar parecia totalmente desabitado até que, de repente, vi uma barraca com teto de zinco. O que fazia essa família, nesse lugar tão inóspito? Como se deslocava sem deixar nenhuma marca no chão, nem de trilha? Tirei algumas fotos e fiquei planando cada vez mais baixo.
O mesmo prazer ele teve no Grand Canyon, já nos EUA, apesar de o tempo não estar ideal. Dias depois, passado um mês de viagem, Moss chegou ao Canadá e depois ao Alasca (EUA), onde já podia contar com Yakov e os dois se preparavam para deixar a América rumo à misteriosa Sibéria.
Apesar da previsão de mau tempo que insistia em não mudar, aumentando a ansiedade de Gerárd às vésperas de voar para a Rússia, uma preocupação em escala muito menor aparecia. Os mosquitos. No Alasca, era verão, e o ataque era constante.
Observando mudanças climáticas, Moss comentou a transformação num povoado da região, chamado Gambell. Eu queria muito visitar este vilarejo porque é mais um exemplo de um lugar que está sofrendo diretamente com os efeitos do aquecimento global. As casas estão sendo destruídas pelo aumento do nível do mar e muitas pessoas têm que mudar de casa a cada ano. A temperatura era de 7 graus. Nada mal, considerando que eles são cercados por água gelada.
Uma boa estratégia também deveria ser armada para que Moss conseguisse dividir com Yakov a restrita cabine. Mandei três pacotes de bugigangas pelo correio para abrir espaço”. No momento certo, seguiram para a Rússia. Com a tensão e o estresse provocados pelas condições climáticas dos últimos dias, um detalhe importante escapou da minha atenção. Íamos cruzar a International Date Line (linha de mudança de data)! Com isso, decolamos de Nome no dia 26 de julho e aterrissamos em Anadyr, cinco horas mais tarde, no dia 27 de julho envelhecemos um dia, sem sentir nada!
De novo, não! – Para diminuir um pouquinho o entusiasmo de Moss só mesmo reencontrando os mosquitos em plena Sibéria! Pode ser que faça frio na Sibéria e no Alasca, mas no verão, devido à abundância de água, tem mais mosquitos aqui, e muito maiores, do que no resto do mundo todo junto.
Moss afirma que a presença de Yakov a bordo foi fundamental para que a viagem prosseguisse com sucesso em território russo. A parceria terminaria depois disso, como combinado. Que diabos vou fazer sem Yakov?”, escreveu Gerárd em 4 de agosto, após o último vôo juntos. “Já estou acostumado ao espaço restrito a bordo. E, enquanto estou escrevendo esse diário, Yakov está no escritório, negociando onde o avião irá pernoitar, preparando o plano de vôo para o Japão, etc etc etc. Vou sentir muito a falta dele!
A despedida foi inevitável. Decolar sem Yakov foi bastante triste, depois de tudo que vivemos e passamos juntos nestes últimos 10 dias. Nos abraçamos e Yakov, preocupado sobre a longa jornada que me esperava, disse: Vá, vá, vá!. O Japão esperava Gerárd e o Ximango.
Hoje, Gerárd conta com traqüilidade os episódios que viveu na Ásia. No Japão, foi interceptado por caças. No Vietnã, passou a noite sob custódia no aeroporto. Nem esses imprevistos o tiraram do sério.
Gentis, diz ele, a respeito dos pilotos japoneses que o interceptaram. A história foi a seguinte: no dia 6 de agosto, Moss pretendia voar de Juzhno Sakhalin, na Rússia, até Niigata, no Japão. Mas a costa leste japonesa estava sob a influência de um sistema de baixa pressão, fechado com nuvens grossas. Gerárd soube que o lado oeste supostamente estava claro e rumou para Waakanai, na ponta da ilha de Hokkaido.
Chamei constantemente na freqüência 127.50 passada pelo controlador russo, sem resposta. Meu vôo estava autorizado pelas autoridades japonesas, mas não me sentia bem em entrar no espaço aéreo japonês sem antes falar com eles, descreve o brasileiro. De repente, o tempo melhorou e vi, logo à frente, a ponta da ilha. Fiz um desvio à direita para me manter afastado da terra, enquanto tentava contato com o controle da cidade de Sapporo.
Enfim, abriu o tempo e pude subir. Já estava a 3.000 pés quando consegui fazer contato com o controle. Expliquei o que houve, dei a posição ao oeste da aerovia e pedi para subir a 6.500 pés, o que foi aprovado. Tudo parecia bem. Acabara de nivelar quando vi um vulto preto passando a alta velocidade pelo meu olho esquerdo. Antes que meu cérebro tivesse tempo de reagir, sumiu, deixando para trás um estrondo assustador. Logo depois, um segundo avião de caça fez a mesma coisa. Frio na barriga!
Diplomacia – Os caças deram uma volta para passar pela segunda vez. O brasileiro sintonizou o rádio para a freqüência de emergência – 121.50 – e escutou a voz de um dos pilotos de caça, abafada pela máscara de oxigênio. Quais são suas coordenadas?, ele perguntou. Achei estranho, mas respondi. Silêncio…
O controlador calmamente me avisou que estava numa zona militar. Expliquei que tentava driblar o mau tempo. Enquanto falávamos, os caças completavam a sétima ou oitava volta, também esperando instruções, não sabiam se me obrigariam a aterrissar na base aérea ou deixariam continuar em paz. Depois de um tempo interminável, com os caças sempre me rodando, o Controle Head Work me instruiu para contatar Sapporo novamente. Neste momento, os jatos fizeram uma curva acentuada para esquerda e desapareceram no horizonte.
Mais um susto – No Vietnã, a gentileza não predominou de início. Também devido ao mau tempo, Moss voou para o aeroporto mais próximo, Nha Trang. Parecia não haver comunicação de rádio em Nha Trang. Depois de dar muitas voltas em cima do aeroporto, pousei. Julgando pela fúria aparente nas caras das pessoas que me receberam quando desci do avião, ficou evidente que apesar de me livrar das encrencas no ar, agora eu estava bastante encrencado no solo.
A ordem foi bem clara: o avião e o piloto estão sob custodia e não podem sair do aeroporto até ordens posteriores. Gerárd foi interrogado. Uma hora depois do pouso, e ainda nenhuma pessoa havia dado um sorriso para mim, escreveu. Se pusesse os pés para fora do terminal seria preso. Passou a noite por lá mesmo… Ótimo, para mim o importante é estar em terra, diz hoje. Mas assustou-se ao acordar e ver os oficiais rodeando o avião. Podiam achar que seus equipamentos fossem de espionagem. Susto também levou ao ver, já em Ho Chi Min, a multa que deveria pagar pelo incidente de pousar em Nha Trang sem permissão.
Os dias de tensão não se esgotaram por aí. Foram seqüencias de vôos com mau tempo e sem poder usar o piloto automático, obrigando Gerárd a colar os olhos no painel do avião sem cessar e se cansar muito mais.
Para driblar os momentos de mau humor e o esgotamento nessa fase da viagem, Moss aproveitava para ler as mensagens deixadas por fãs e amigos no site oficial. Contava ainda com a cobertura da imprensa dos países por onde passava: deu entrevistas na Rússia, no Japão e na Índia, entre outros locais.
O contato com velhos conhecidos, aventureiros como ele, reforçava o estímulo. Entre os que se manifestavam, estavam o norte-americano Don Taylor, de 82 anos, a primeira pessoa a dar volta ao mundo num avião construído em casa, feitio realizado em 1976. Sei que ele está comigo nessa viagem, me dando apoio moral. Ano passado, passamos horas juntos, no chão da sala de sua casa, debruçados sobre o mapa mundi, planejando novos sonhos… e aqui estou, escreveu Gerárd sobre o amigo.
Também em plena volta ao mundo, Michel Gordillo, piloto da Ibéria, manteve contato. Ele buscava realizar o giro a bordo de um veloz MCR também caseiro. A expedição pode ser acompanhada em www.sunriseflight.com.
Vencida a América e a Ásia, Gerárd tinha pela frente a entrada na África, passando pelo Paquistão, Arábia e Egito. Depois, subiria para a Europa, onde também teria a sensação de estar em casa ele pode até desfrutar da comida da mãe, além de outras surpresas, na Suíça. Voltaria para a África, passando por Dakar, para mais tarde encarar a travessia do Atlântico. Mas isso é história para a segunda parte desta reportagem, que vai ao ar daqui a 15 dias, na próxima atualização do Aventura Brasil. Até lá!
Clique aqui e a segunda parte desta reportagem!
O Webventure teve a honra de ser parceiro de Moss e do projeto Asas do Vento viabilizando o site oficial da expedição. Confira o diário de bordo, outras fotos, áudios e vídeos acessando www.asasdovento.com.br. O Asas do Vento teve patrocínio de Embratel, Victorinox, Grupo Aeromot e Banco de Santos.
Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira