Foto: Pixabay

Acidente no Garrafão: a versão de quem esteve lá

Redação Webventure/ Montanhismo

Muito se disse a respeito do acidente no Garrafão no Parque Nacional da Serra dos Órgãos em julho de 1999. Porém, a única versão verdadeira resume-se ao que vou contar aqui.

Fascinado pela beleza magnificente dos paredões remotos da região da Serra dos Órgãos, em Teresópolis (RJ), resolvi dar uma conferida. Escolhi o paredão da face sudoeste do Garrafão, uma montanha de 2 mil metros, cuja parede vertical chega a medir cerca de 450 metros. Essa parede possui apenas duas vias, a Crazy Muzungu A2+ (conquistada por uma dupla de suíços que estive aqui em 1983) e a via Almas Defumadas A3+ (conquistada em 1991 pelos cariocas Alexandre Portela, Serginho Tartari e Luís Cláudio Pita, que fizeram história em uma ascensão no mais puro estilo alpino.

A via dos suíços foi a que me atraiu mais e ainda no mês de maio de 99 fui para lá com meu amigo Ricardo de Moraes, com intenção de fazer a via em cinco dias. No entanto, vagamos rio acima por três dias sem nem sequer encontrar a base da parede. No final de cinco dias, descemos o rio Soberbo sob chuva, carregando os haul bags lotados em terreno acidentado e mata fechada.

Chegamos à estrada. Decidido a achar a base da escalada, comprei um mapa topográfico da região no centro da cidade e me convenci de que em quatro dias encontraria a tal gruta-abrigo que fica estrategicamente situada próximo à base. Fiz uma outra tentativa mal sucedida com o Júlio Campanella. Depois, sozinho, passei mais quatro dias no Vale do Soberbo e só fui achar a gruta e os vestígios da presença humana no sexto dia. Ao chegar na estrada, apesar da má aparência, não demorei a conseguir carona com uma ambulância que ia para a garagem e por coincidência de itinerário me deixou na porta de casa.

A escalada

Marquei a escalada para a semana seguinte e, mesmo com tudo pronto, o tempo não ajudou. Durante um mês não aconteceram mais de dois dias consecutivos sem chuva ou nuvens densas. Nunca na minha vida esperei tanto para escalar uma montanha e aposto que o Júlio e o Eduardo Barão também.

Finalmente conseguimos partir na manhã do dia 7 de julho, munidos com comida suficiente para 8-9 dias e preparados para uma possível espera. Às 7 horas, começamos a caminhar subindo o Rio Soberbo. Com um pouco de sufoco, chegamos à grutinha antes que escurecesse. Não deu tempo nem de buscar a bolsa que eu havia deixado lá anteriormente e que continha o fogareiro. O jeito foi comer comida fria mesmo.

No dia seguinte o Júlio e o Barão fixaram duas cordas enquanto eu recuperava a tal bolsa e organizava o acampamento. À noite foi de trovoada e vento. Amanheceu chovendo e só nos restava esperar. Fizemos um carrêgo de água até a base para não desperdiçar o dia. No outro dia, guiei a enfiada mais feia da minha vida: túneis de mato e lama com fendas molhadas e elameadas. Resolvi colocar um grampo mais pra direita, onde há uma parede limpa e mais objetiva.

Fixamos cordas por ali, largamos todo o material de escalada que não precisaríamos no ponto mais alto que atingimos – uns 140 metros da base – e descemos sob chuva fina e neblina. Deixamos o material na base dentro da bolsa impermeável e descemos de volta ao conforto da grutinha para mais dois dias de espera. Acordamos na segunda-feira com o dia bonito e resolvemos arriscar, mesmo sabendo que teríamos que escalar à noite. Saímos da grutinha às 8 horas e mal sabíamos o quanto aquele dia marcaria nossas vidas.

O acidente

Eu começava à guindar os dois haul-bags grandes preso ao grampo instalado por mim alguns dias antes já na terceira enfiada. O Júlio, que estava a 10 metros abaixo, subia na corda fixa de 9mm. Enquanto isso o Barão, último a subir, acabara de me liberar os haul-bags e aguardava o ansioso sinal do Júlio de que a corda estava liberada.

De repente, ao sentir que os sacos-de-arrasto haviam prendido olhei para baixo e testemunhei uma cena horrível. Vi o Barão despencar desencordado as duas primeiras enfiadas inteiras. Ele desceu sentado na pedra molhada como se estivesse num enorme tobogã se chocando violentamente contra a base da escalada. Ele freou bruscamente ao resvalar em arbustos e mato no caminho até parar em uma greta, à esquerda da base. O Júlio, que ouviu o estrondo, não queria acreditar. Imaginávamos que ele estivesse morto e o sentimento da perda tomou conta de nós. Por mais que tentássemos, era quase impossível acreditar que ele tivesse sobrevivido a uma queda de mais de 100 metros.

Perplexos com o que acabara de acontecer, iniciamos a descida. O Júlio automaticamente preparou o rapel e começou a descer, prendendo os haul-bags no grampo mais próximo. Em seguida, foi levando a corda da guindagem para chegar até a base. Eu vim logo atrás, rapelando com um dos haul-bags no baudrier junto ao aparelho de descida (um Grigri). Mesmo antes de chegarmos até ele, nos tranqüilizamos ao observar que se movimentava por entre os arbustos.

Quando vi o Barão, me emocionei e fiquei mais calmo ao constatar que, apesar de assustado, ele estava bem. O Júlio prestou os primeiros socorros e juntos o colocamos em um lugar mais plano e agasalhado. Telefonamos então para um amigo no Rio de Janeiro, o Jucá, que cuidou de acionar o resgate e informar aos familiares.

O helicóptero de resgate chegou menos de duas horas depois. Dois homens treinados rapelaram do helicóptero, que partiu para voltar mais tarde. Naquele momento, eu já havia subido para resgatar os mais 100 quilos de equipamentos que haviam ficado na parede e colaborava com a operação de remoção do nosso amigo, que foi içado em uma maca especial pela roldana motorizada do helicóptero.

Antes que eles partissem, por volta das 15 horas, explicamos o nosso quadro ao resgatista e o mesmo deu a entender que provavelmente não viria nos buscar. Ainda esperamos até as 16 horas, até que desistimos e seguimos ,com os mais de 100 quilos de equipamentos, para a grutinha, a 15 minutos dali. Comemos, nos acalmamos e fomos dormir. Nosso plano era fazer três viagens para nossa volta para casa. Ir pesado, subir leve e descer pesado. Calculamos uns três dias para chegarmos ao asfalto.

Enquanto isso, a mídia fazia notícia em meio a calúnias. Por falta de informações, precisas publicavam aquilo que mais desse ibope, creio eu. Chegaram a dizer que já estávamos perdidos há 8 dias nas matas da região.

No sétimo dia, eu e o Júlio fazíamos o transporte da carga até um acampamento de caçador, uma hora e meia abaixo da gruta, quando chegou o helicóptero do CGOA determinado a nos arrancar de lá, mesmo que tivessem que mentir ao nos assegurar que levariam nosso equipamento também. Acenamos e trouxemos tudo para o rio para ser içado.

Ao confirmar que não levariam nosso equipamento, virei as costas e calmamente voltei em direção ao acampamento. Quando larguei as mochilas e olhei pra trás, vi por entre as árvores o Júlio sendo erguido pela roldana motorizada. Voltei imediatamente para verificar com o resgatista se ele havia mudado de idéia com relação ao transporte do equipamento. Ele confirmou – uma mentira vinda de cima.

O helicóptero partiu para o heliporto de Teresópolis e eu, revoltado, me estressava com os resgatistas do CGOA, que pareciam não gostar nem um pouco de estar ali. Ainda tiveram o descaramento de dizer que voltariam para buscar o equipamento em seguida, apenas mais um blefe de uma equipe cujo chefe justificava sua falta de palavra na pressão da mídia, que os fez sair do Rio para tal operação. Antes não tivessem nem ido. Viramos então verdadeiros fantoches da mídia que ali estava para pegar os melhores momentos do episódio e dar um desfecho mais dramático e sensacionalista possível.

Acordamos cedinho e voltamos para pegar o restante do material, desta vez com a devida permissão e apoio do chefe do Parque, o Vicente. No retorno, ele efetuou a autuação de mil Reais (para cada um que não caiu), explicando o transtorno que havíamos causado. Segui meu rumo para Friburgo enquanto os outros foram para Rio.

Só nos restava reencontrar nosso quase ex-amigo, que ainda se encontrava internado em uma clínica de Ipanema, onde se recuperava de uma cirurgia de extração do baço e de pequenas lesões (fissuras no acetábulo e no quinto disco lombar). Apesar das fraturas, Barão passava bem e não precisou ficar mais de uma semana internado. Desde então sua recuperação tem sido surpreendente.

Falha humana ou mecânica?

Algumas semanas após o acidente, conseguimos finalmente entender o que havia acontecido: uma combinação de falha do equipamento e, principalmente, falha do alpinista-vítima, que não fez nenhum tipo de back-up ao utilizar o jummar. Segundo o manual que acompanha o aparelho da Petzl (marca do ascensor usado), o mesmo nunca deve ser o único ponto de conexão do alpinista com o sistema de segurança, pois, apesar de funcionar bem, o mesmo tem falhado e alguns desavisados pagaram com suas próprias vidas por não seguirem a risca essa recomendação técnica fornecida pelo fabricante.

Outros fatores contribuíram substancialmente para que o desastre acontecesse:

  • Grampo caseiro: o grampo da ancoragem de onde ele caiu não é próprio para ser usado no alpinismo e nem tampouco testado. Como se não bastasse, o olhal do grampo era pequeno e o mosquetão mestre estava de cabeça para baixo, ou seja, era uma ancoragem de difícil movimentação;

  • Corda molhada e fina: devido à chuva, as cordas se encontravam molhadas e, por se tratar de uma corda de 9mm, as chances do ascensor falhar são consideravelmente maiores;

  • Corda em V: por estar presa ao grampo da ancoragem, ao ser tensionada pelo jummar, a corda formou um vê. Ambos os lados da trava do jummar foram tensionados e ela se abriu, deixando o alpinista livre. O resto ficou por conta da gravidade que, em segundos, o pôs na base da escalada, mais de 100 metros abaixo.

    Este texto foi escrito por: Webventure

    Last modified: fevereiro 21, 2017

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