O cume do Aconcágua visto de Plaza de Mulas (foto: Helena Coelho)
Em sua estréia como colunista do Webventure, a alpinista Helena Coelho fala da mais recente estada no Aconcágua, na virada do ano.
Foi escalando o Monte Aconcágua (teto das Américas, com 6.962m), pela Via do Glaciar dos Polacos (mais difícil que a normal), há 14 anos, que eu e meu marido Paulo Coelho chegamos ao nosso primeiro cume de Alta Montanha, feito com grande esforço e aprendizado por nós, juntamente com um grande amigo, o fotógrafo Milton Shirata.
Esta montanha nos marcou em muitas coisas. Uma delas foi caminhar 70 km carregando duas mochilas, uma de cada vez, a cada duas ou três horas, retornando para pegar a outra, pois não tínhamos dinheiro para pagar as mulas e também porque queríamos fazer tudo inteiramente por nós mesmos. Foi nesta montanha que vimos pela primeira vez alguém com os dedos dos pés completamente congelados, era um alpinista espanhol que, soubemos depois, teve de amputar as extremidades dos dedos dos pés; no Aconcágua sentimos os males de altura, desde dor de cabeça, e baratos, a fadiga acima do normal.
Dia-dia no gelo – Foi lá que tivemos de aprender a ter paciência, a descer quando um não se sentia bem. Onde aprendemos a montar a barraca após um dia de subida, mesmo sem ter forças para tal, a buscar gelo e derreter para ter água para beber, a sair à noite para um xixi e escorregar porque tudo estava congelado de madrugada, a subir com determinação, avaliando cada momento.
Ali aprendemos a observar o tempo, o caminho, um ao outro. Descobrimos o quanto é mágico aquele pouco tempo que você passa lá no cume, observando o horizonte a 360 graus e sabendo que naquele lugar, apesar do topo, é apenas a metade de sua escalada. Metade daquilo que começou lá atrás com um sonho, com uma conversa, com várias reuniões para discutir, planejar. E você ainda terá a outra metade, que é voltar, sentindo a felicidade de ter chegado lá.
No Aconcágua fomos mordidos definitivamente pela mosca da Alta Montanha. E é para lá que voltamos quando queremos sentir na pele, no âmago de nós mesmos a alta montanha, que não é somente aquele ponto geográfico maravilhoso, mas também, pelo qual se conhecem culturas, povos, pessoas.
“No Aconcágua aprendemos a buscar gelo e derreter para ter água para beber, a sair à noite para um xixi e escorregar porque tudo estava congelado.”
Versão 2001 – Neste começo de ano, estávamos, eu e o Paulo, logo na primeira subida após Plaza de Mulas, acampamento-base do Aconcágua (4300 m), quando escutamos um grupo de quatro pessoas conversando em claro e bom “carioquês”. Tentavam demover a única mulher do grupo a desistir de subir, pois, como eram novatos ali, tinham medo de que houvesse alguma grande dificuldade técnica na Canaleta.
Perguntaram para nós o que seria necessário para subir pela Canaleta. Não tivemos dúvida em dizer que, se eles estivessem bem aclimatados, seria necessária muita, muita paciência e era só. A Ivone rapidamente se agarrou nessas palavras e disse que isso era o que não lhe faltava. Eles iam ficar aquela noite em Cambio de Pendiente e nós subimos direto para Nido de Condores, acampamento a 5.380 m.
No dia seguinte, fomos de madrugada para o ataque ao cume. A tentativa foi abortada em Independencia (a 6.400m), pois um grande hongo (nuvem de mau tempo) fechou sobre o cume, trazendo um frio intenso e vento muito forte. Voltamos para Nido. Os quatro brasileiros lá estavam. Dissemos que no dia seguinte íamos sair de manhã cedo, com dia bem claro, pois assim saberíamos do tempo, antes de empreitar quatro horas e meia até Independencia. A Ivone se definiu ali. Não seguiria o seu grupo, mas procuraria ir conosco. E foi. Cume. A emoção com que ela chegou lá foi indescritível. Ela dizia com emoção para a câmera que o Paulo sempre tem na mão: aqui está a primeira mulher baiana a chegar numa altitude dessa. Ela é maratonista e vive atualmente no Rio de Janeiro.
Pessoas como ela que me fazem dizer: escalar o Aconcágua, pela via normal, não é para qualquer um, mas é para todos. Todos, desde que se preparem realmente para isso, que se proponham a escalá-lo, que planejem desde o equipamento até o preparo físico, que se juntem com um grupo legal, que tenham o firme propósito de chegar lá, mesmo que não seja ao cume.
Um reencontro – Após ter chegado ao cume pela Via Normal, estávamos ali em Nido, na espera, para ver se daria também desta vez escalar pela Via dos Polacos. Então, alguém de Plaza de Mulas subiu para Nido e nos disse que havia um português de nome João que havia procurado por nós lá e que havia montado a barraca perto da nossa. Sabíamos, por correspondência, que o nosso amigo João Garcia iria neste verão para o Aconcágua. Só não sabíamos se o encontraríamos por um problema de datas. Então, como estávamos dando um tempo, resolvemos descer e ver se o encontrávamos.
Que emoção grande! Não havíamos mais nos encontrado depois do acontecido no Everest em 99, quando nós o deixamos em Kathmandu, esperando o aval do Seguro de Saúde para ir para o Hospital na Espanha, onde passou 92 dias se recuperando dos congelamentos.
Ele realmente foi forjado como poucos pela montanha. Continua com um alto grau de otimismo, dizendo que não se pode jogar fora 17 anos de prática de alpinismo, de convívio com a montanha. A perda de pontas dos dedos das mãos, de alguma coisa na planta do pé, o enxerto no nariz são alguns limites a mais a superar, a se adaptar, mas não para fazê-lo desistir de tudo aquilo ao qual se dedicou nos últimos anos.
Ele teve de fazer algumas adaptações, desde usar mais objetos para se aquecer, a treinar no uso do que sobrou na mão, inclusive pesquisando materiais para fazer um adaptador para pegar a piqueta. Sem problemas. Tem grandes planos. Volta ao Himalaia este ano para escalar.
Flashback – Relembramos aquele dia em maio de 99 (veja matéria
), quando ele descia após ter chegado ao cume do Everest sem suporte de oxigênio suplementar, guias ou carregadores de altitude, juntamente com o amigo Pascal Debrower. Pascal ficou na montanha. Ele desceu, não sem antes tentar tudo o que pode para buscar o amigo. Mas ele nem se lembra de que disse isso no rádio, em português, conversando com a gente, quando ainda estava a 8.300m de altitude.
João não se lembrava de que lado ele estava quando nos encontramos, mas se recorda perfeitamente de que eu e o Paulo tiramos a bota dele, enxugamos os seus pés, colocamos meias secas e voltamos a calçar-lhe as botas para que ele dormisse com elas. Ele lembra que pensou que seus pés estariam com problemas. Lembra também que, quando descíamos, usando rapel, o Paulo estava na frente, aí vinha ele e, por último, eu. Que a corda estava enroscando quando eu descia e que a cabeça funcionou mais rápido que o corpo, pois ele queria subir para desenroscar a corda e teve de ser brecado pelo Paulo.
Lembramo-nos da forma como foi tratado o assunto aqui, como se fosse um ato de heroísmo, e não uma ajuda a um amigo que precisava naquele momento. Mas que isso não importava. Lembramo-nos, e como foi bom, que a nossa amizade nasceu de termos os mesmos princípios na prática deste esporte que tanto gostamos, da seriedade e respeito com que tratamos essa natureza majestosa que é a montanha e da mesma seriedade com que tratamos a relação entre as pessoas. João continua um grande alpinista. E um grande amigo.
* No Aconcágua, Helena e Paulo Coelho tiveram o patrocínio parcial da Ind. Mec. IRAM Ltda (www.iram.com.br) e apoio da Hi-Tec.
Este texto foi escrito por: Helena Coelho