Uma Corrida de Aventura sem aventura não é digna do próprio nome, não é mesmo? Pois minha participação na Expedição Mata Atlântica em 98 teve pelo menos uma grande aventura, com “A” maiúsculo. Não me refiro à prova em si, pedalar 140 quilômetros, remar 30, caminhar outros 45, ficar noites sem dormir, orientando-se por uma bússola – tudo isso sem dúvida é aventura de sobra.
Perdidos na represa
Acontece que na época eu não era muito fera em navegação. A primeira vez que havia mexido com um bússola foi dois meses antes da competição, num curso relâmpago com o tenente Admir da Federação Paulista de Orientação e da equipe Lontra Radical da EMA 98 e 99. Minha primeira bússola foi comprada duas semanas antes da corrida. Na etapa de caiaque canadense, quando saímos de Paraibuna, senti que precisaria de muita sorte para encontrar os dois Postos de Controle às margens da represa. O primeiro PC foi relativamente fácil de achar, ficava na margem direita numa linha quase reta. Tranqüilo. O segundo, onde trocaríamos nosso caiaque por mountain bikes, ficava no fim de um labirinto de ramificações, braços secundários e longos corredores sinuosos dentro da represa. Obviamente me perdi.
Num determinado momento vimos meia dúzia de canoas, outras equipes da EMA, estacionadas em conferência no fundo de uma baía. Pensamos em seguí-las, mas quando finalmente decidimos nos aproximar deles, todos desapareceram depois de uma curva. Havia uma bifurcação depois da curva e, claro, tomamos o caminho errado. Em seguida havia outra e mais outra bifurcação e não demorou muito para percebermos que não tínhamos a menor idéia de onde estávamos. Faltava pouco para escurecer e não tínhamos trazido nossas lanternas, afinal ninguém saí de casa predisposto a se perder – grande burrada nossa.
Hospitalidade inesperada
Quando a luz do dia já minguava e a perspectiva era de passar a noite sentado dentro da canoa ou deitado numa margem qualquer da represa, vimos uma luz acesa numa casinha no topo de uma ilha. Nos aproximamos lentamente, soprando um apito e acenando com os remos. Da janela da casa surgiu uma mulher e logo atrás dela um homem. Marido e mulher, calculei acertadamente. Cachorros latiam e podia-se ouvir o mugido de vacas quando desembarcamos na ilhota.
– Estamos perdidos, – expliquei – somos atletas de uma corrida maluca e não temos idéia de onde estamos.
Dona Nazaré e Seu Zé apontaram sem a menor dificuldade o ponto no mapa onde estávamos. Teríamos que remar ainda uns 15 quilômetros até chegar no Posto de Controle. Impossível seguir à noite sem lanternas, não havia lua.
Dona Nazaré, sorridente e desdentada, insistiu que pernoitássemos na casa deles, ela ofereceu também uma jantar quentinho para nós. Mesmo se quiséssemos, não poderíamos recusar a hospitalidade. Desconcertados diante da modéstia da casinha e do excesso de hospitalidade dos nossos anfitriões, nos instalamos na cozinha para assistir a preparação do jantar.
Seu Zé sugeriu que Dona Nazaré fizesse “aquela pizza” – duas rodas de massa envoltas em papel alumínio guardadas no refrigerador para uma ocasião especial. Dona Nazaré concordou com a sugestão e foi até o pomar pegar uns tomates frescos. Seu Zé me levou pelo braço até o curral, onde ele criava três bezerrinhos recém nascidos. Ele mostrava os animais como se fossem filhos, apontava as mães, pastando no cercado ao lado, contava anedotas sobre elas e quanto de leite cada uma dava. A ilha era um sítio e o casal vivia da venda de leite para outras famílias da região.
Fui apresentado a cada árvore frutífera do pomar, ao cachorro pouco amistoso acorrentado nos fundos da casa, ao galinheiro, à espingarda de estimação – que tive que disparar contra uma latinha de Leite Moça – e até às fotos de filhos e netos distantes, trabalhando aqui e ali no estado de São Paulo. Estava claro que a ilha não recebia visitantes com muita freqüência.
O jantar estava pronto e a pizza maravilhosa, não sei se pela minha fome excessiva e se pela hospitalidade sem limites. Depois do café forte e bem açucarado fomos direto para a cama – um colchão de casal no meio do único quarto da casa, provavelmente o colchão onde o casal dormia. Nossos anfitriões dormiram cada um num dos beliches do quarto.
De manhã tomamos mais café, comemos mingau de farinha de milho e pão caseiro com manteiga. Dona Nazaré e Seu Zé nos acompanharam até a canoa, tiraram as tradicionais fotos de despedida e pediram que tomássemos cuidado, “que essa doidice de sair correndo por aí é muito perigoso!”
Sei que é lugar comum dizer isso, mas essa experiência comprovou o que eu já sabia: quanto mais humilde a pessoa, mais generosa ela se mostra. Aventuras de uma corrida de aventura…
Este texto foi escrito por: Guilherme Cavallari