Alta montanha exige preparação não importa a rota. (foto: Arquivo pessoal)
“Bom dia, Vitor!
O título deste email deveria ser 6.959m, mas não aconteceu…
Dois dias atrás, na sexta, 17 de janeiro, às quatro da manhã, eu comecei a subir a partir de Nido de Condores. Eu acho que no mesmo dia que seu (ex-) grupo foi para o cume. Estava muito frio e ventava muito. Por volta da seis, eu acho, cheguei ao Acampamento Berlin. Naquele ponto meus pés já estavam adormecidos pelo frio.
Entrei em um dos refúgios de madeira e me recostei, mas eu estava com medo de tirar meus sapatos, sendo que ainda estava escuro e muito frio. Naquele momento tive medo de perder meus dedos dos pés. Graças a Deus, um argentino chamado Alberto me levou para a sua barraca, onde tirei as minhas botas, coloquei meus pés no saco de dormir dele e massageei-os. Após alguns minutos voltei a sentir os pés. Isto foi muito dolorido e eu chorei.
Após uma hora e meia, por volta das sete e quarenta e cinco, meus pés estavam okay novamente, e eu deixei a barraca do Alberto. Teoricamente, eu ainda teria tempo suficiente para continuar para o cume, mas eu respeitei aquele aviso e desci para Nido de Condores. É só uma montanha e eu quero permanecer saudável.
Jens”
Este é o primeiro trecho do e-mail que recebi do Jens, um alemão que conheci em Santiago do Chile e depois reencontrei no Aconcágua.
Ele tentou escalar o Aconcágua pela rota Normal, que não requer habilidades com piquetas, crampons, cordas, mosquetões, entretanto é extremamente desafiadora. Os obstáculos são a altitude, o frio, o cansaço físico e mental.
O Aconcágua é a montanha mais alta das Américas, um ícone, mas também um lugar onde a pressão parcial do oxigênio é menor, isto é, menos oxigênio por volume de ar respirado ar rarefeito. O ar rarefeito, ambiente da alta montanha, força o corpo a se aclimatar. É um fenômeno fisiológico que, basicamente, aumenta o número de glóbulos vermelhos do corpo. Cada pessoa reage de uma forma.
Existe, é claro um padrão geral para a aclimatação, que consiste em subir, descer, dormir, descansar e subir para ficar. Mas existem pessoas que não conseguem se aclimatar e um fumante pode até ter um desempenho melhor ali do que um triatleta.
A primeira vez – Assim, a primeira vez acima dos 6 mil metros deve ser realizada com cautela e precaução. Percebendo os limites do corpo. O frio e os ventos podem ser muito perigosos, em especial para aqueles que não tem ou não sabem usar os equipamentos de ponta.
Uma barraca VE-25 mal montada em Nido de Condores pode representar a perda do teto, equipamentos e muito sofrimento durante a noite. A falta de comida adequada e água em quantidade suficiente deixa seu corpo mais vulnerável ao congelamento.
Planejar, adquirir os melhores equipamentos, respeitar os seus limites e falar com outras pessoas que escalaram a rota normal é imprescindível. O melhor conselho seria: vá com alguém experiente, que já conheça a montanha. Para isto, contrate uma empresa ou um guia, ambos com referências.
A carta do Jens que segue está linkada no final desta coluna é um testemunho impressionante. Termino meus comentários por aqui. E se tiver alguma dúvida sobre esse assunto, me escreva.
“Bom dia, Vitor!
O título deste email deveria ser 6959m, mas não aconteceu…
Dois dias atrás, na sexta, 17 de janeiro, às quatro da manhã, eu comecei a subir a partir de Nido de Condores. Eu acho que no mesmo dia que seu (ex-) grupo foi para o cume. Estava muito frio e ventava muito. Por volta da seis, eu acho, cheguei ao Acampamento Berlin. Neste ponto meus pés já estavam adormecidos pelo frio.
Entrei em um dos refúgios de madeira, e me recostei, mas eu estava com medo de tirar meus sapatos, sendo que ainda estava escuro e muito frio. Neste momento tive medo de perder meus dedos dos pés. Graças a Deus, um argentino chamado Alberto me levou para a sua barraca, onde tirei as minhas botas, coloquei meus pés no saco de dormir dele e massageei-os, e após alguns minutos voltei a sentir os pés. Isto foi muito dolorido e eu chorei.
Após uma hora e meia, por volta das sete e quarenta e cinco, meus pés estavam okay novamente, e eu deixei a barraca do Alberto. Teoricamente, eu ainda teria tempo suficiente para continuar para o cume, mas eu respeitei este aviso e desci para Nido de Condores. É só uma montanha e eu quero permanecer saudável.
Desmontei minha barraca que havia sido levada pelo vento (muito estressante) e desci para Plaza de Mulas. Somente então percebi que tinha um problema severo com a visão do meu olho direito, que deveria ser devido ao frio e ao vento na subida. Como era noite, eu não usei óculos escuros.
Em Plaza de Mulas eu fui ao médico, que me colocou uma bandagem no olho. Também em Plaza de Mulas encontrei um cara que reconheceu o modelo da minha bota de gelo, sem nem mesmo ter olhado a etiqueta, e me disse que com aquela bota eu nunca deveria ter subido a uma altitude de 6 mil ou 7 mil metros.
Eu não sou experiente nessas coisas e não sei se ele está certo ou errado. De qualquer forma, eu tive muita sorte do Fabrício ter me emprestado um par de meias boas. Tudo poderia ter sido muito pior. Mas eu não sou doutor e não sei se é possível congelar os pés em duas horas de exposição ao frio. Talvez meus medos tenham sido exagerados, mas a dor era indiscutivelmente real.
Devido ao problema nos olhos eu queria voltar para a civilização (Mendoza) o mais rápido possível, e fui para Confluência, chegando um pouco antes do anoitecer, por volta das nove da noite. Em outras palavras, eu desci do Acampamento Berlin ao Acampamento Confluência em um dia, com toda minha bagagem, sem uma mula.
No Acampamento de Berlin tive dores de cabeça ou sintomas similares, que poderiam indicar problemas com a altitude. Acho que, excluindo os problemas que te contei, eu posso dizer que ainda estava forte e teria capacidade e força física para chegar ao cume naquele dia… Nas regiões baixas, como Confluência não havia praticamente mais nenhum vento, mesmo durante a tarde.
No dia seguinte, sábado, 18 (ontem), voltei para Puente del Inca e peguei o ônibus para Mendoza. À tarde, quando retirei a bandagem do olho para tomar banho e me barbear, percebi que meu olho estava funcionando direito novamente. Graças a Deus e a Jesus Cristo!
Espero que você tenha tido sucesso na sua rota, e também espero que todos do seu grupo tenham chegado ao cume e voltado a salvo e com saúde.
Especialmente, espero que a Fernanda e o Fabrício tenham ido bem. Eles são um casal muito legal, e me disseram que planejaram esta viagem por dois anos. Para mim, o Aconcágua foi somente um episódio nesta viagem, e não é tão triste que eu não consegui. Tive várias outras coisas legais nesta jornada e espero que várias outras aconteçam. Mas, é claro, eu estaria muito feliz e orgulhoso em ter chegado ao cume.
Minha viagem pode se considerada a mais não profissional na montanha. Apesar disso, eu acho que cheguei bem longe. Foi provavelmente a coisa mais dura que fiz na minha vida até agora, e foi, verdadeiramente, uma grande experiência.
Como você sabe, eu tenho os emails de F+F. Por favor, mande lembranças para o resto do grupo. Por favor, dê um obrigado especial para o Paulo, que levou minha mochila pequena de comida com toda a minha comida de Confluência para Plaza de Mulas, apesar dos meus protestos. Estes protestos eram sérios e reais, considerando que ainda era o começo, e eu ainda me sentia forte o suficiente para carregar todas minhas coisas, todo a trilha.
Eu, também não me senti bem porque todos no grupo, incluindo Paulo, que pagaram caro pelas mulas, e iriam carregar minhas coisas – eu, que não tinha contratado uma mula. Para minha sorte, ele ignorou meus protestos e simplesmente carregou a mochila.
Aquele foi, de longe, o dia mais cansativo para mim mesmo considerando a madrugada do dia 17 de janeiro, quando desci de Berlin para Confluência. Eu não fiquei tão cansado como naquele dia. Eu nem quero imaginar como teria sido se o Paulo não tivesse me ajudado.
Por favor, mande minhas lembranças para o Totó e o resto do grupo. Infelizmente, tenho que admitir, eu não lembro o nome de todos.
Afinal, mas não finalmente, muito obrigado para você. No dia que nos conhecemos em Santiago, eu já tinha comprado minha passagem de ônibus para Mendoza, e achei que teria que caminhar bastante para coletar informação e organizar a coisas especialmente por que estou começando a aprender espanhol. Mas então, alguém me falou aquele cara brasileiro é um guia de montanha brasileiro e tem experiência no Aconcágua. Você me deu as informações mais importantes em tudo, e certamente me poupou muito tempo e problemas.
Que estranha coincidência, eu ter montado minha barraca ao lado da do F+F, naquele momento eu não sabia que iria te encontrar novamente na montanha. Como te falei, quando você for para a Europa, no próximo ano, é bem possível que eu esteja no Brasil ou em algum lugar da América do Sul, ao invés da Alemanha. Mesmo assim, por favor, escreva para mim, quando estiver lá. Existe a possibilidade, é claro, de que eu tenha voltado para casa (entretanto se isto acontecer provavelmente seria devido a uma má razão para mim, algo como uma doença séria ou algo parecido…). Eu ficaria contente em ter você como meu convidado.
Desejo todo o melhor e sucesso para a sua carreira de escalada futura fique saudável e a salvo!
Ciao,
Jens
Original
Bom Dia, Vitor !
The title of this email should have meant to be “6959 m !!”, but it did not happen …
Two days ago, on Friday, 17 Jan., 04:00 o4clock in the night, I started to ascend from Nido de Condores – I assume on the same day that your (“ex”-) group went for the summit. It was very windy and cold. I think, at about 06:00 a.m., I reached Camp Berlin. At that time my feet were already numb. I went into one of the wooden refuges, lied down, but was too afraid to take my shoes off, since it was still pretty dark and very cold. At that time I was seriously afraid that I might lose my toes. Thank God, an Argentinian named Alberto waved me into his tent, where I put my boots off, put my feet into his sleeping bag and massaged them, and after a while, the feeling came back. This was very painful, and I cried. After one and a half hours, at around 07:45, my feet were okay again, and I left Albertos tent. Theoretically, I would have still had enough time to continue for the summit, but I respected this warning shot and went down to Nido de Condores. It is just a mountain, and I want to stay healthy.
I took off my tent (which was, given the wind, a very nerve-wrecking task) and descended to Plaza de Mulas. Only then I realized that I had a severe problem with the vision of my right eye, which must have come from the coldness and the wind on the way up; because it was night, I had not worn sunglasses. In Plaza de Mulas, I went to the doctor, who gave me a bandage on that eye. Also at P.d.M. was a guy who recognized the brand of my boots before even looking at the label, and told me, in those boots I should never have tried to go to an altitude of 6000 or 7000 m. I am not an expert in those things and don4t know whether he is right or not. Anyway, I might have been very lucky that Fabricio lent me a good pair of socks; otherwise it might have been even worse. But I am not a doctor, and I don4t know if two hours exposure to cold temperatures can really cause the toes to freeze off. Maybe my fears were exaggerated, but the pain was definitely for real.
Because of my eye problem I wanted to get back to civilisation (i.e. Mendoza) as soon as possible, and therefore went further to Confluencia, which I reached just before darkness, at about 09:00 p.m. In other words, I climbed down from Camp Berlin to Confluencia in one day, with my full baggage, without a mule. I also had no headache or similar symptoms at Camp Berlin that would have indicated problems with the altitude. So, I think, that apart from the mentioned problems, I might say that I was still quite fit and think that I would have had enough physical strength and capability to reach the summit on that day … In the lower regions, like Confluencia, there was almost no wind to be felt at all anymore in the afternoon.
The next day, Sat. 18 (i.e. yesterday), I went back to Puente del Inca and took the bus to Mendoza. In the evening, when I took my eye bandage off to shave and shower, I realized that my eye was working well again. Thank God and Jesus Christ !
I hope that you were successful on your route, and I also hope that everyone of the group reached the summit and returned safely and healthily.
I especially hope that Fernanda and Fabricio made it well. They are a really nice couple, and they told me that they had planned and prepared this trip for two years. For me, the Aconcagua has just been one episode on this trip, and it is not too sad that I didn4t make it – there had been lots of other nice things on this journey and will hopefully be many others on the same journey. But, of course, I would have been very happy and proud to reach the summit, as well.
My trip might well have been the most “unprofessional” at that time on the mountain, but nevertheless, I think I made it quite far, though. It was probably the toughest thing that I have ever tried in my life so far, and it was a truly great experience.
As you know, I have F + F4s email address. Please give my regards to the rest of the group. Please give a very special “Thank You” to Paolo, who took my small backpack with all my food on the way from Confluencia to Plaza de Mulas, even though I protested. Those protests were serious and for real, since that was still quite at the beginning of the way, and I still felt strong enough to take all my stuff all the way; also, I did not feel particularly good that everybody in the group, including Paolo, paid a lot of money for the mules, and then would take part of the baggage of me, who did not hire a mule. Luckily for me, he just ignored my protests and simply took the backpack. That was by far the most exhausting day for me – even on the evening of the 17 Jan., when I went down all the way from Berlin to Confluencia, I was not nearly as exhausted as on that day. I don4t even want to imagine, how bad it would have been, had Paolo not helped me.
But, please, also give my regards to Toto and the rest of the group. Unfortunately, I have to admit, I don4t even know most of their names.
Last, but not least, “Munto Obrigado” to you (probably spelled horribly wrong, but I hope you forgive me). On the day we met in Santiago, I had already bought my bus ticket for Mendoza, and I thought, I would have to walk around a lot to collect information and organize things – especially since I am still just beginning to learn Spanish. But then someone told me that “that Brazilian guy” is a mountain guide and has experience with the Aconcagua. You gave me the lowdown on the whole thing, and it certainly saved me a lot of time and trouble. What a strange coincidence that I pitched my tent next to F + F4s tent; at that time I did not even know that I would meet you again on the mountain.
As I said, when you go to Europe next year, it is actually more likely that I will be in Brazil myself, or somewehere else in South America, instead of Alemania. But nevertheless, please write me when you are there – there is a possibility, of course, that I will be back home (even though it is more likely that the reason would be a bad one for me, like a serious illness, or so …). I would be happy to have you as my guest, then.
I wish you all the best and much success for your future climbing carreer – stay haelthy and safe !
Ciao,
Jens
P.S.: I definitely want to spend carnival in Brazil next year. You talked about a town, I think in the north of Brazil, with the influence of former black slaves, where it would be especially fascinating to be at carnival. I forgot the name of the town – can you mail me the name again ?
Este texto foi escrito por: Vítor Negrete
Last modified: abril 15, 2003