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Antonio Paulo Faria contesta os 100 anos de montanhismo no Brasil

Redação Webventure/ Montanhismo

O Dedo de Deus  na Serra dos Órgãos (RJ) (foto: WTrilha / Flicker CC)
O Dedo de Deus na Serra dos Órgãos (RJ) (foto: WTrilha / Flicker CC)

Em virtude da Semana do Montanhismo, que vai acontecer em abril de 2012 no Rio de Janeiro, uma disputa antiga ressurgiu, pelo berço do montanhismo brasileiro. Tecnicamente, é uma disputa sem sentido, como mostro abaixo, mas os ânimos andam exaltados do lado de alguns paranaenses e cariocas, e pessoas de outros estados estão formando suas torcidas.

Disputas dessa natureza existem no mundo inteiro. No fundo, elas servem para fazer marketing de algum produto. Por exemplo, em Washington, nos Estados Unidos, eles dizem que o Monte Shuksan (2.392 metros) é a montanha mais fotografada do mundo. Por acaso, conheço bem essa montanha. Mas, você já ouviu falar nela? Não se acanhe se a resposta for não, pois poucos fora de Washington já viram ou ouviram falar dela. Mas isso tem um propósito, o marketing para vender a região. O mesmo está acontecendo para vender a ideia de que o montanhismo nasceu ou na Serra do Marumbi (Paraná), em 1879, ou no Dedo de Deus, Rio de Janeiro, em 1912. Mas não é nada disso.

O Pico Olimpo (1.547 metros), no Marumbi, foi subido em 1879 por Joaquim Olímpio de Miranda e colaboradores. Apesar de ter sido uma caminhada com trepa-pedras, foi uma aventura verdadeira, nos moldes do montanhismo tradicional europeu, que estava começando a chegar por aqui.

O Dedo de Deus (1.675 metros), na Serra dos Órgãos (RJ), tornou-se tão importante para o cenário nacional que até briga intermunicipal ocorreu pela disputa de sua imagem. O município de Teresópolis sempre usou a imagem do Dedo como propaganda. A montanha fica muito próxima da cidade e dela se tem a melhor imagem deixando qualquer um impressionado pela sua beleza. Teresópolis, graças ao clima e ao panorama das montanhas, cresceu como área de veraneio, onde as classes A e B compraram sítios e casas para passar os finais de semana. Porém, a montanha fica situada no município de Magé, bem próximo do limite municipal, e a cidade sede em si fica situada na Baixada Fluminense, longe da montanha. Na década de 1990, um prefeito de Magé se zangou e resolveu processar o município de Teresópolis porque achava que estavam usando ilegalmente a imagem do Dedo de Deus como propaganda para captar investimentos para a cidade. De fato, todo mundo pensa que a montanha fica em Teresópolis. Eu não sei o final da briga, mas este caso serve para ilustrar a importância da montanha.

O Dedo tornou-se o símbolo do montanhismo brasileiro, não só pela sua beleza e imponência, como por sua história que, de acordo com a maioria dos montanhistas, marca o início da escalada técnica (alpinismo) no Brasil, liderada por Teixeira e outros quatro rapazes de Teresópolis. Essa conquista aconteceu em grande estilo e foi realmente um marco importante e de repercussão internacional. Ou seja, o evento teve um marketing gigantesco e com enorme apelo popular. Os conquistadores tiveram, na época, até audiência com o Presidente da República.

Entretanto, não podemos fixar uma data para o começo do montanhismo no Brasil, muito menos achar a paternidade, porque nada disso aconteceu. O montanhismo tradicional brasileiro simplesmente apareceu de forma natural, talvez entre os séculos 17 e 19, e evoluiu por conta dos próprios brasileiros e também de imigrantes. Além disso, ainda existia o montanhismo militar, o religioso, o exploratório e outros. As pessoas já subiam montanhas há milhares de anos para caçar, conseguir recursos naturais e até por prazer.

Alguns usam o montanhismo como esporte para justificar uma paternidade, mas isso tem profunda conotação política, e foi dessa forma que os franceses fizeram para justificar que o montanhismo moderno nasceu com a primeira ascensão do Mont Blanc (4.807 metros), em 1786. Mas até na Europa essa ideia já ruiu.

E no Brasil querem copiar isso, mas com um enorme equivoco. Por exemplo, se for seguida essa linha de pensamento, o Everest não foi conquistado em 1953, porque foi puro ato político (geopolítico) inglês, numa disputa direta com os franceses e os suíços. Até militares participavam e chefiavam essas expedições. Seguindo esta linha de raciocínio, o Everest foi conquistado somente quando o primeiro escalador foi lá com fim puramente esportivo. Você concorda? Por isso tal linha de raciocínio esta equivocada.

Essa disputa pelo berço do montanhismo brasileiro não faz sentido. Bem na base da Serra do Ponto (1.195 metros), em Pernambuco, tem pinturas rupestres de milhares de anos, onde também foram achados ossadas de 83 pessoas. Milhares de nativos viveram por ali durante muitas dezenas de séculos. Não seria ingenuidade de paranaenses e cariocas acreditarem que esses brasileiros primitivos não subiam a Serra do Ponto por simples prazer, para observar paisagens mais distantes? Mas o mesmo deve ter acontecido em Minas Gerais, Bahia, nas incríveis formações rochosas do Nordeste (os inselbergues) e em outros lugares. Tudo isso antes do ano de 1500.

O próprio Pão de Açúcar era subido por prazer esportivo a partir de 1838, como mostram registros, mas é quase certo que já se fazia isso antes. Em 1817 uma mulher inglesa subiu e colocou uma bandeira britânica no topo, o que acendeu sentimentos nacionalistas. Erroneamente, consideraram ela como a conquistadora, mas essa montanha já era subida muito antes.

O inicio da escalada técnica no Brasil, conhecido pelos leigos como alpinismo, também não foi no Dedo de Deus em 1912. Já se fazia isso antes no Brasil. Por exemplo, a primeira ascensão do ponto mais alto das Agulhas Negras, em 1898, a Torre do Livro. Na própria cidade do Rio de Janeiro já existiam escaladas técnicas. O problema é que esta atividade não era organizada ou reconhecida e a mídia da época deu enorme valor aos conquistadores do Dedo de Deus.

Entretanto, já vi caprinocultores no Espírito Santo subirem enormes costões descalços, com lances de 3º grau, para capturar cabritinhos perdidos, e nunca ouviram falar neste tal de alpinismo. A maioria dos escaladores brasileiros subiria aquilo encordado e com sapatilhas, outros encheriam aquela rampa com grampos. Isso devia (deve) também acontecer com frequência no Nordeste há dois ou três séculos atrás!

O que está acontecendo é que pessoas sem um embasamento histórico e carente de informações estão promovendo uma discussão bairrista muito parecido com as torcidas de futebol. Ou estão mal intencionadas, querendo, de alguma forma, tirar proveito politico.

O berço ou paternalismo do montanhismo brasileiro não existe. A Semana do Montanhismo no Rio de Janeiro sem dúvida vai ser muito importante e a data foi escolhida exatamente por ser a comemoração da conquista dos 100 anos do Dedo de Deus. Mas, erroneamente, lançaram um selo comemorando os “100 Anos do Montanhismo Brasileiro”. Em função disso, a turma do sul ficou irada. Entretanto, quando nos encontramos nas montanhas, nada disso é relevante!

Alguns trechos deste texto foram reproduzidos do livro de minha própria autoria, “Montanhismo Brasileiro, Paixão e Aventura”, lançado em 2006.

Este texto foi escrito por: Antonio Paulo Faria

Last modified: dezembro 14, 2011

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