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Brasileiros evitam a terceira morte no Everest


Cenas da temporada de Paulo e Helena no Everest (foto: Arquivo pessoal)

Paulo e Helena Coelho não chegaram ao cume do Everest. Mas saíram de lá como heróis. Tudo porque deixaram de lado o sonho de chegar ao topo do mundo para evitar a terceira morte na temporada 99. Eles dividiram o acampamento base com o belga Pascal Debrouwer, que morreu em 24 de maio passado, numa queda, pouco depois de chegar ao cume. No mesmo dia, o polonês Tadeus Kudelski morreu congelado, também ao descer do topo. O português João Garcia seria a terceira vítima, se não tivesse sido salvo pelos brasileiros. De volta ao país, Helena conta, com exclusividade à Webventure, tudo que se passou naquela tarde trágica.

“Estávamos dividindo o acampamento base com oito alpinistas, entre eles os belgas, liderados pelo Pascal, e o João. Já os conhecíamos de dois ou três anos, eles tinham um projeto parecido com o nosso, de escalar o Everest sem oxigênio. Havia também uma expedição comercial liderada pelo polonês Pawlovski, da qual fazia parte o Kudelski, que também morreu”, conta Helena.

Helena é professora da rede pública de São Paulo, e Paulo é pesquisador do IPEN-SP, e não estavam vinculados a nenhuma equipe.

“A gente foi com o nosso dinheiro, a cara e a coragem. Digo que dos 100 alpinistas que estavam no Everest, nós éramos os únicos sem patrocinadores.”

Segundo Helena, o tempo abriu por três vezes, permitindo investidas ao cume, durante o período em que ela e o marido permaneceram no monte. “Na primeira vez, subimos três ucranianos e nós dois. Um deles morreu porque enfrentou mau tempo na descida. Nem chegamos a atacar”, diz a alpinista.

“Na segunda vez que o tempo abriu, subimos junto com os americanos, da expedição que encontrou o corpo do (George) Mallory. Também subiram os poloneses e os belgas. Todos partiram para o ataque, menos nós, que dormiríamos no colo norte (7 mil metros) para, no dia seguinte, atacar. Foi então que começou o drama”.

“Soubemos que os sherpas viram o Pascal cair de uns mil metros”


Pelo rádio, Helena ouviu que os três poloneses, o belga e o português tinham subido e não voltaram do cume. Eles tinham descido tarde demais, lá pelas 16h. Escureceu e nada deles. Todo mundo começou a ficar muito preocupado. No dia seguinte, a gente nem subiu”. O objetivo da viagem dos paulistas estava praticamente abandonado. Eles escolheram ir em busca dos amigos. “O João chegou no acampamento de 8.300 metros, desesperado. Ele pegou uma garrafa de oxigênio que tinha para qualquer emergência e foi atrás do Pascal. Todo o acampamento tentou convencê-lo do contrário pois ele já estava trabalhando há duas noites sem oxigênio acíma de 8.000 metros sem ter condições de oferecer ajuda para alguém. A gente, que podia falar com eles em português, apelou de tudo quanto era jeito pra segurá-lo. Não teve jeito.”

O alpinista português vagou por 2 horas em busca de Pascal e começou a descer de volta. “Ao mesmo tempo, começava uma discussão no campo base avançado. Como o Pascal tinha ido sem sherpas, os belgas da expedição queriam pagar aos sherpas dos outros para subirem. Imagine que o Pavloviski, que era o guia da expedição polonesa, preferiu dispensar os sherpas dele ao invés de mandá-los procurar seu próprio cliente (Kudelski”, que também estava perdido”, desabafa. Helena “Os italianos, que estavam há 8.300 metros, tinham sherpas mas disseram que só liberariam a subida deles se o tempo não estivesse bom. Depois soubemos que eles foram procurar o pessoal e viram o Pascal cair de uns 1.000m.”

Durante todo o tempo, Helena falava com João pelo rádio, tentando mantê-lo consciente. “O pessoal do acampamento-base (6.400m) queria que ele voltasse para lá. Mas o João, a 7.800m, me falou que não agüentaria andar tanto e pediu para ficar com a gente a 7mil metros. Os pés dele começavam a congelar e ele tinha perdido as luvas”, descreve a brasileira. Ela e Paulo ficaram esperando pelo português até o fim do dia. Mas ele não apareceu.

“Encontramos o João delirando. O nariz, os pés e os dedos das mãos dele estavam congelados “

“Foi então que o Paulo resolveu sair em busca dele até os 7.800m. Depois de uma hora, ele voltou sem ninguém, embora o João ficasse me dizendo pelo rádio que via a luz da lanterna do Paulo. Sendo assim, meu marido resolveu voltar – já era quase meia noite. Foi mais uma hora e meia de caminhada e nada. Mas o João me falava que estava com o Paulo. Naquela hora, percebia que ele estava delirando.”

Pela terceira vez, Paulo deixou a barraca no colo norte para buscar o português. Helena se habilitou a ir junto e eles ainda tentaram conseguiu ajuda de outros alpinistas. “Ninguém quis sair. O italiano respondeu: ‘deixa, ele já deve estar morto’. Nós saímos e acabamos encontrando ele fora da rota, delirando. ” Madrugada adentro, a dupla tentou ajudar na recuperação do alpinista. “O nariz, os pés e os dedos das mãos dele estavam congelados. Congelamento de terceiro grau.”

Os três passaram a noite no colo norte e, pela manhã, começaram a descida. “O Paulo foi rapelando com ele, controlando tudo. A 6.400m, o João foi medicado e ficou em repouso por três dias. Eu e o Paulo voltamos ao colo para arrumar nossas coisas. Foi aí que o tempo abriu novamente e todo mundo subiu. Pensamos em fazer alguma coisa rápida, em dois ou três dias, mas acabamos preferindo acompanhar o João, Afinal, a gente esteve o tempo todo cuidando dele, dando comida na boca, levando ao banheiro, porque as mãos dele não faziam mais nada…”

Dos 6.400m aos 5.100m, João foi carregado pelos sherpas, contratados pelo casal e pagos depois pela Associação de Montanhistas local. Os três seguiram juntos até Khatmandu e, de lá, o português foi levado a um instituto especializado em congelamento, em Zaragoza, na Espanha.

“Não foi tempestade de neve. O motivo (das mortes) foi que eles desceram tarde demais”


Mas o que poderia ter causado tamanha tragédia entre alpinistas tão experientes? Helena garante que, tempestade de neve, não foi a causa principal. “O verdadeiro motivo é que eles desceram tarde demais, alguma coisa os fez demorar. Todo mundo tinha chegado ao cume durante aquela tarde, incluindo o pessoal do Mallory. Só eles não voltaram. Outro agravante é que eles deixaram as mochilas um pouco abaixo do cume, como todo mundo faz. Quando desceram, quase à noite, não conseguiram achar o equipamento, as lanternas, rádio, etc.” Para Helena, a temporada foi uma das mais difíceis. “Este ano teve pouco gelo. A parte superior era cheia de pedras escorregadias, o que retardava a chegada.”

Mesmo depois de presenciar a tragédia, a dupla não pensa em se afastar da montanha. “A gente sofreu muito. Na hora, nem chegamos a sentir tanto a morte do Pascal porque nos ocupamos com o João. Mas ele teve que dar a notícia à esposa do Pascal, por um telefone que a gente emprestou. Imagine a situação, o Pascal tinha uma filhinha de oito meses… Tudo isso é ruim, mas somos montanhistas, a gente continua. A maior homagem para um montanhista é estar na montanha.”

No período que eles estiveram lá 10 pessoas chegaram ao cume sendo que 3 morreram na descida e dois desceram com problemas sérios de congelamento.

Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira