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Cicloturismo: Bicicletando em Berlim


Em frente à um refúgio chileno (foto: Arquivo pessoal)

Nessa coluna Fábio Zander fala sobre a tradição do cicloturismo na Europa, em comparação com o Brasil, comenta sobre sua chegada à Berlim e um encontro inusitado com Mikhail Gorbachev, além relembrar uma de suas viagens, a Pedalada del Fuego.

O berço do cicloturismo é a Europa e a modalidade preferida dos europeus é o ciclismo de estrada, uma verdadeira paixão e em determinadas épocas tem tanto ou mais espaço que o futebol.

Entendo que os motivos pelos quais a Europa tem elevado número de praticantes de cicloturismo sejam a tradição do ciclismo, a extensa e múltipla malha de estradas secundárias que cobrem todo o continente (incluindo as ciclovias), seu excelente estado de conservação e o grande respeito às leis de trânsito tanto por parte de motoristas, que respeitam e valorizam o ciclista, como pelos pedestres e ciclistas, que respeitam o Código de Trânsito. Esse fato se deve à consciência de cidadania, cultura geral, além de um código de trânsito severo.

A tradição do cicloturismo é alimentada pelos clubes de ciclismo e associações que promovem constantes atividades ciclísticas, como passeios, viagens e parcerias importantes, por exemplo, com o trem e o metrô (U-S Bahn) para o transporte da bicicleta em seus vagões, dentro da Alemanha e em toda a Europa.

Uma das associações mais conhecidas e influentes na Alemanha é a ADFC (Allgemeiner Deutscher Fahrrad-Club – www.adfc.de), que tem uma revista mensal chamada Rad Zeit (algo como: Tempo de Pedalar) e inúmeras lojas e escritórios espalhados pelo país. Foi na ADFC de Berlim, no fim de outubro, onde realizei a minha primeira palestra sobre a América do Sul e as minhas viagens de bicicleta. Sucesso de público!

É impressionante notar que existe uma verdadeira indústria ligada à bicicleta e o cicloturismo, desde agências de turismo e lojas especializadas à redes de supermercados comuns, oferecendo todo tipo de produtos ligados as duas rodas.
O Brasil ainda engatinha para esta valorização da bicicleta e o que me dá esperança é pensar que a Europa deve ter passado por este mesmo ou similar processo, anos atrás.

Brasil, quanto tempo mais vai demorar?

Cheguei à Berlim com a minha namorada Daniela e a bicicleta, junto à bagagem, no início de agosto. Já fazia algum tempo em que pensávamos nessa mudança, a Dani pelo sonho antigo de morar e estudar na Europa e eu sempre a procura de novos “desafios” ligados aos pedais, com a apresentação das palestras, viagens e novos projetos de expedições pelo planeta.

Temos a cidadania e a língua alemã de casa e escolhemos a capital da Alemanha, Berlim, por ser uma cidade mais internacional, mais fácil para a nossa adaptação, além de outras vantagens, como o custo do dia-a-dia. Por incrível que pareça, a terceira cidade mais visitada na Europa, depois de Londres e Paris, é uma das cidades mais baratas da Alemanha para se viver.

Existem ciclovias pela cidade inteira e pelos meus cálculos e registros, a nossa distância média pedalada por mês fica em torno de 800 e 1000 quilômetros, agora no inverno deve cair drasticamente.
Há história, arte e cultura para qualquer lado que se olha. A cidade tem histórias impressionantes ligadas principalmente à II Guerra Mundial, a Guerra Fria entre EUA e União Soviética, e o Muro.
A bicicleta tem sido o veículo ideal para conhecer a cidade e viver o dia-a-dia, como ir às compras, passar no banco ou visitar algum amigo e a parceria com o metrô da cidade é mais uma facilidade para ir a lugares mais distantes.

No dia 3 de outubro, dia de reunificação e feriado alemão, resolvemos pedalar para fora de Berlim em direção a Potsdam. Pelo caminho sempre por ciclovias bem sinalizadas, fomos curtindo a cidade e as paisagens, principalmente no trecho da represa “Wannsee”. (Fotos e texto serão inseridos em uma próxima coluna)

Chegamos depois de pedalar aproximadamente 50 quilômetros no Parque e Castelo Sanssouci, importante ponto turístico de Potsdam. Passeando em seus jardins, muito bem cuidados por sinal, escutamos uma banda tocando o hino alemão e resolvemos nos aproximar. Para nossa supresa um evento ligado à reunificação alemã, com poucas pessoas e muitos jornalistas registrando o plantio de árvores por ninguém menos que Helmut Kohl (ex-chanceler alemão) e Michail Gorbachov (ex-presidente da ex-União Soviética), personagens principais e importantíssimos para a reunificação da Alemanha e a derrubada do Muro em 1990.

Para mim, foi impressionante e emocionante ver ao vivo Gorbachev, com sua pinta na careca, um dos homens mais poderosos de sua época, presidente de uma União Soviética secreta e misteriosa e que poucos conheciam. Um dos homens a por fim a Guerra Fria e mudar os rumos de seu país.

Depois de acompanhar este encontro histórico, já anoitecendo e esfriando, pedalamos para o centro da cidade de Potsdam e rapidamente decidimos pegar um trem de volta para Berlim, com as bicicletas.
Como é fácil unir cicloturismo à rica história e cultura do velho continente!

Estamos no início de dezembro e o inverno vem chegando forte na Europa. A neve, que já tem caído bastante, assim como as temperaturas, não me assustam e continuo com as pedaladas diárias. A bicicleta da Dani já descansa e está guardada no porão, esperando dias melhores em 2006.

Não há como não lembrar da Pedalada del Fuego em 2001, com destino à Ushuaia, também no início do inverno:

“Aproveitei para conversar com o dono do restaurante “El Conti” (em Cerro Sobrero, Terra do Fogo do lado chileno). Perguntei se a chuva seria indício de neve, o que ele negou na hora, pois, nesse caso, o vento não estaria tão forte.

Meio em dúvida, comecei a minha pedalada às 12h45, debaixo de uma chuva gelada, mas bem equipado com as roupas de abrigo. Durante a pedalada não senti frio, apenas nas paradas curtas para eventual foto, mas quando o vento surgiu forte, vindo contra e pela lateral, como no dia anterior, a chuva começou a me atrapalhar, escorrendo aos poucos nas roupas internas. Para minha supresa começou a cair um pouco de neve.

Como existem refúgios na beira da estrada a cada 20 quilômetros, resolvi parar em um deles depois de menos de uma hora do início da pedalada. Estou encharcado de chuva e de suor. Estes refúgios foram construídos pelos chilenos, pois a estrada tem pouca infra-estrutura e as cidades são cada vez mais escassas a partir da fronteira chilena.

Os pontos de paradas (refúgios) são muito úteis para viajantes, como eu, caso tenham necessidade de um abrigo para pernoite e proteção contra o mau tempo. No seu interior existe um beliche apenas com o estrado, uma mesa com cadeira e um aquecedor a lenha, pois não existe luz elétrica, o que seria luxo por aqui. Quem mantém limpo e repõe a lenha destes refúgios são as estâncias mais próximas. Uma idéia simples, ótima e de grande ajuda.

Voltando ao passado – O objetivo inicial, que seria passar a noite na pequena vila de Cullen, foi cancelado às cinco da tarde e decidi passar a noite por aqui mesmo, pois começou a nevar forte.

Definitivamente, o dono do “El Conti” era um péssimo meteorologista. Troquei de roupa e, por ter pouca lenha, resolvi acender o aquecedor apenas mais tarde.

Confesso que estou um pouco assustado com as novas condições climáticas que terei para a pedalada até Ushuaia. Penso muito em minha família e na incansável lista de precauções contra o frio. Nessas horas em que a temperatura tem abaixado bastante, acabo entendendo melhor o espanto das pessoas com a minha pedalada em direção ao sul e não ao norte.

De tempos em tempos abro a porta do refúgio; o vento sopra forte e cada vez mais a paisagem em volta se torna branca. Mesmo com saudades das pessoas e de um calor tropical, não queria estar em outro lugar a não ser esse. Troco apenas pelo sol amanhã.
Outro dia sem banho, este já é o terceiro. O meu dedo mindinho e o seu vizinho continuam adormecidos e os exercícios diários para a recuperação da sensibilidade continuam.

Por volta das 8 horas da noite acendi o aquecedor à lenha e quase morri sufocado. De alguma forma a chaminé não funcionava direito, poderia ser o acúmulo de neve ou o forte vento, pois a fumaça retornava ao interior do refúgio. Por fim, depois de algumas tentativas, fui obrigado a apagar o fogo e a abrir a porta para arejar o ambiente. Apesar de tudo, dormi aquecido e defumado, assim como o resto do equipamento.

Trouxe alguns dos meus diários de viagem para Alemanha que me relembram daquele cicloturismo “selvagem”, que mais gosto, mas novas experiências na Europa serão muito bem vindas”.

Este texto foi escrito por: Fabio Zander