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Cláudio Patto: De Olhos Bem Fechados

Redação Webventure/ Aventura brasil, Destino Aventura, Trekking

Appalachian Trail  possui mais de 3.400 quilômetros (foto: Divulgação/ Appalachian Trail Conservancy)
Appalachian Trail possui mais de 3.400 quilômetros (foto: Divulgação/ Appalachian Trail Conservancy)

Alguns anos atrás resolvi experimentar, ao longo de cinco quilômetros, algo que há algum tempo me intrigava: o que é viver totalmente no escuro, sem o auxílio da visão, um dos nossos sentidos mais importantes. No fim da tarde, saí para fazer uma caminhada em um parque perto de casa como fazia algumas vezes por semana, mas agora eu daria a volta completa de olhos fechados. A idéia era caminhar substituindo a visão pelas instruções e cuidados da minha esposa, minha guia nesta experiência. Durante os próximos 50 minutos eu experimentaria usar apenas os meus outros sentidos.

Mesmo conhecendo o caminho quase de cor, com pista asfaltada, regular e com poucos buracos, já não bastava apenas olhar para baixo e calcular cada passo, evitando galhos e buracos. Eu já não tinha certeza absoluta que não iria tropeçar e cair das duas pontes sem guarda ou da beira da lagoa. E apesar de confiar cegamente na minha guia, uma insegurança muito forte foi tomando conta de mim quando nos aproximávamos da travessia da primeira ponte, nos meus primeiros cinco minutos de caminhada às escuras.

Eu ainda não havia me acostumado com a idéia de estar tudo escuro, com as curvas do caminho, de tentar manter uma reta só pela posição da mão ao meu lado e já ouvia o barulho do riacho, cada vez mais alto, cada vez mais perto. “Mas que idéia louca foi essa? Pra que eu estava fazendo aquilo? E se eu não conseguisse manter uma reta nos curtos 10 metros de ponte? Apesar dela ter uns dois metros de largura, para mim parecia que eu estava andando sobre uma tábua estreita? E se viesse alguém no sentido contrario? E se eu desse um passo para o lado errado?”, pensava

Tamanha foi a loucura e o frenesi na minha cabeça sobre aquela ponte que eu perdi o equilíbrio e tive que parar para me recompor. Aquilo era ridículo! Eu nem conseguia atravessar uma ponte por onde passaria um carro sem ter vertigens. Definitivamente eu não estava adaptado àquela vida no escuro. Imagine então em uma trilha irregular, com degraus, pedras, galhos e riachos sem pontes?

Exemplo – Continuei andando, de olhos fechados. Por mais absurdo que aquilo pudesse parecer, eu queria dar a volta completa. Enquanto eu andava, eu pensava em Bill Irwin, um homem que em 1990 e em seus 50 anos percorreu do começo ao fim os mais de 3400 km da Appalachian Trail, a primeira e mais famosa das longas trilhas continentais nos Estados Unidos. Muitas pessoas tentam completar esta trilha de uma só vez, mas poucas conseguem empreender uma caminhada tão longa, por tanto tempo. Mas Bill Irwin venceu não só a distância, a solidão e o clima, mas fez isto sem enxergar. Cego desde os 28 anos de idade, ele realizou a caminhada, indo da Geórgia ao Maine em menos de nove meses com o auxílio do seu cão-guia Orient.

Para Irwin, foram aproximadamente 5000 quedas, uma costela quebrada e alguns equipamentos perdidos. Até hoje ele é o único deficiente visual a ter completado a Appalachian Trail em uma única temporada, o que eles chamam por lá de True Hikkers. Bill enfrentou milhares de quilômetros de trilhas íngremes, às vezes lamacenta, muitas vezes cheia de pedras, e o que é pior: desconhecida para ele e para o Orient. Ele estava andando no escuro, sem saber o que encontraria pela frente, por uma trilha longa como poucas no planeta, cheia de bifurcações, trilhas secundárias e acessos a locais para acampar. Pensando neste homem eu ria comigo mesmo da minha vertigem e dos meus apavorantes 5 minutos iniciais.

Passada a primeira ponte a minha confiança voltou. Dali em diante o caminho parecia estar ficando mais fácil. Eu já me divertia tentando decifrar nas curvas e nos ruídos o mapa mental do parque. Passar pela segunda ponte foi mais fácil, mas não menos aterrorizante, e a volta pela beira da lagoa foi até divertida.

No final destes cinco quilômetros eu estava bem mais relaxado e aproveitava para sentir o cheiro do mato, o vento na cara e é claro os sons dos pássaros e das outras pessoas caminhando ao meu redor. Sentei, tirei os óculos escuros que eu usava para não perceberem que eu era um louco caminhando de olhos fechados, e abri os olhos. Por uma fração de segundo eu tinha o melhor dos dois mundos: o visual do parque todo verde e florido e os sons e cheiros que eu antes nem imaginava em sentir.

Jornada – Depois de 50 minutos de caminhada, Bill Irwin ainda estaria no começo do seu dia, já teria tomado alguns tombos, e já teria alguns cortes. Só que no final do dia ele não poderia abrir os olhos e ver a paisagem ao seu redor e simplesmente decidir voltar a ver. E ele nem precisava. Certamente tinha muitos equivalentes ao táteis, sonoros e olfativos ao visual do pôr-do-sol, como o cheiro do orvalho caindo e o som na mata escurecendo. Agora só faltava montar a barraca, preparar o jantar do Orient, dormir e começar tudo de novo no dia seguinte, por mais 270 dias.

Este texto foi escrito por: Cláudio Patto

Last modified: novembro 29, 2006

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