Região de Paso de Índios por horas pedalamos vendo os cânions. Uma região totalmente desprovida de água. O local era tão seco que não suávamos (foto: Arquivo Pessoal)
Acompanhe a viagem dos irmão Felipe e Maurício Corrêa Chterpensque do Oceano Pacífico até o Atlântico, de bike. Os 20 dias da expedição foram marcados por muito pedal, escalada, imprevistos e belas paisagens
O dia tinha finalmente chegado. Depois de quase um ano de preparação, estaríamos partindo. A despedida no aeroporto foi difícil. Por 20 dias, ficaríamos sem ver nossos familiares, minha esposa e meu filho de nove meses. Mas a vontade de fazer esta viagem era algo inexplicável e por algum motivo teríamos de partir.
Nossa viagem começou no dia 1 de novembro, saindo do aeroporto de Florianópolis com escala em São Paulo. A chegada a Buenos Aires foi tranqüila, apesar da dificuldade de vagas nos hotéis portenhos naquela noite. A viagem de ônibus até Santiago do Chile tinha uma duração prevista em 22 horas. Sabíamos que muitas coisas iriam acontecer e a expectativa era muito grande.
No outro dia, por volta das 6h da manhã, começamos a avistar a pré-cordilheira. Foi impressionante a visão que tivemos: o sol nascente fazia com que os picos nevados ficassem alaranjados, uma visão inesquecível. Às 9h chegamos à aduana Chilena, onde todos tinham que retirar as bagagens do ônibus e passar pela revista rotineira. Neste momento, um estrondo ensurdecedor nos pegou de surpresa. Todos ficaram assustados. Imaginamos que o ruído fosse originário de um trem ou mesmo de uma avalanche de neve. Um funcionário nos disse preocupado que era um terremoto de 3 a 4 graus na escala Richter.
Santiago – Superado o imprevisto, continuamos nossa viagem de ônibus. Chegamos a Santiago e pegamos outro ônibus até uma pequena cidade chamada Villa Rica. Ali nos instalamos na pousada de um nativo que nos vendeu o melhor salmão defumando que já tínhamos comido. Infelizmente erramos a cidade, achando que era mais perto do vulcão e mais uma vez tivemos que pegar outra condução para chegar a Pucon.
Esta seria a primeira etapa da expedição: a subida ao vulcão Villa Rica. Ao chegar na cidade, avistamos o famoso Vulcão, tido como o segundo mais ativo do Chile. Nos hospedamos em um albergue onde fizemos várias amizades onde conhecemos Jason, que mais tarde foi nosso guia e amigo. Pedalamos pela cidade para esperar o tempo melhorar, conhecer o povo e suas belezas naturais. Avistamos córregos e algumas das mais belas paisagens da viagem.
Nossa preocupação era o vento e o mau tempo. Se essas condições predominassem na montanha, nossa estadia estaria perdida. Mas a sorte estava a nosso favor, pois o dia amanheceu com um sol lindo e sem vento. Era um dia perfeito para o início da aventura.
Pensamos em três fases para a nossa viagem:
Às 7h30 vestimos as roupas e equipamentos especiais e partimos. A quantidade de neve no vulcão era impressionante. O branco cobria a montanha desde o topo até a sua base.
Tivemos algumas instruções de segurança e começamos o ataque ao cume. A subida foi difícil, pois não estávamos acostumados a tanta neve e frio. A chegada à cratera foi inacreditável e se nossa viagem tivesse acabado ali já teria valido a pena. Era uma mistura de lava, gases, ventos cortantes e frio insuportável. Uma visão lunar. Valeu e muito ter subido durante quatro horas para ter aquela sensação de conquista.
Nos sentimos no topo do mundo. Após uma sessão para fotos e filmagens, descemos exaustos, mas felizes por termos chegado ao topo do Villa Rica com seu quase 3.000 metros de altitude. Despedimo-nos de Pucon deixando ali muitas lembranças e bons amigos.
Mais uma vez tomamos outro ônibus para iniciar a segunda parte da viagem: a travessia.
Sétimo dia – Após dez horas de viagem de ônibus, chegamos na beira do Pacífico em Puerto Montt. Embora a praia não fosse das mais belas, para nós era o primeiro marco mais importante: a saída do Pacífico. Com as bikes reguladas, alimentação e equipamentos bem distribuídos nos alforges, partimos sem saber exatamente onde iríamos acampar. Saímos de Puerto Montt e chegamos a Puerto Varas. Ali, pedalamos ao redor do lago Llanquihue.
Passamos por muitas pousadas e quando estava anoitecendo percebemos que não haveria mais vagas disponíveis na vila para passarmos a noite. Obtivemos autorização para pernoitar em uma fazenda. A única condição foi que ficássemos do lado de fora de um celeiro, embora as bikes pudessem permanecer no seu interior. Não entendemos até hoje esta determinação, mas a aceitamos e ficamos felizes por termos podido dormir em nossa barraca.
8° Dia – 57 km
Acordamos às 6h, tomamos um bom café, guardamos a barraca e continuamos a pedalar. Tínhamos que acordar sempre cedo, pois, levávamos cerca de duas horas para levantar acampamento. A pedalada neste dia foi tranqüila, sempre margeando o lago Llanquihue e aos pés do vulcão Ozorno. Depois de cerca de 6 horas, finalmente chegamos à vila de Petrohue. Ali, teríamos de esperar até o dia seguinte para cruzarmos os três lagos Andinos: Todos los Santos, Frias e Nahuel Huapi. Fizemos uma fogueira e fomos dormir antes que os mosquitos nos comessem vivos.
9° Dia
Partimos de barco até a outra margem do lago. Navegamos por belas paisagens, sempre na presença dos Andes e seus picos nevados. Atracamos em Peulla, outra pequena vila no Lago de Todos los Santos.
Neste trecho, enfrentaríamos a parte mais difícil da nossa expedição: atravessaríamos os Andes. Os primeiros 25 km não foram difíceis apesar de haver muito rípio (espécie de cascalho) ao longo da estrada. O desnível de 700 metros que teríamos de enfrentar seria insano. Levamos quase 5 horas para pedalar os 30 km. Foi extremamente difícil alcançar os aclives pedalando. Neste dia, parecia que nossas forças chegariam ao fim. E para piorar, o frio foi mais intenso na divisa do Chile e Argentina. Tivemos de vestir nossas roupas de frio para fazer a descida até o Lago Frias. Montamos a barraca e fomos dormir exaustos na companhia de duas raposas.
10° Dia – 35,7 km
Acordamos mais uma vez com as montanhas cheias de neve e um lago maravilhoso em nossa frente. Turistas em vários ônibus chegaram ao local. Ao avistarem as bikes, nos perguntaram de onde éramos, para onde iríamos. O espanto foi geral ao constatarem o propósito de nossa viagem. Aproveitamos o dia para descansar, enquanto esperamos a chegada do barco que nos levaria dali. Durante o dia inteiro, passeamos nos lagos, por fiordes e árvores milenares Ao final do dia, chegamos a San Carlos de Bariloche. Nos hospedamos em um albergue. Pedimos pizza para matar a saudade, tomamos uma boa cerveja e fomos dormir.
11° Dia – 59,7 km
Partimos de Bariloche pela manhã. Tomamos um atalho para não passarmos pela parte mais urbana da cidade. Fizemos compras no supermercado para mais três dias e continuamos, sem saber que os próximos seriam tenebrosos. Ainda estávamos beirando a cordilheira, uma região linda, mas muito penosa. Foi neste dia que mudamos um velho ditado: aquele que diz que tudo o que sobe tem de descer. Para cicloviajantes o ditado é diferente, tudo o que sobe tem de descer e subir novamente. Neste mesmo dia, encontramos um casal de europeus que estavam fazendo a volta ao mundo caminhando já há três anos. Eles iam para o Ushuaia. Teriam ainda mais quatro meses. Percebemos ali que nossa expedição não era tão extraordinária. Pedalamos o dia todo até chegar a El Bonson.
12° Dia – 88,8 km
Mais subidas e descidas e agora o sol começava a nos incomodar. Com a mudança de vegetação, a temperatura subia muito durante o dia e caía demais durante a madrugada. O frio era intenso. Já estávamos entediados com a pedalada deste dia e, para piorar, o pneu da bike do Maurício furou. Cruzamos com três carros, que voltaram alguns minutos depois. Eram brasileiros e viram nossa bandeira do Brasil. Conversamos bastante – já fazia um bom tempo que não víamos brasileiros – nunca pensamos que iríamos sentir saudades do nosso Brasil. Dormimos felizes por ter encontrado brasucas. Isso nos deu mais ânimo para continuar a viagem.
13° Dia – 120 km
Saímos cedo para tentar fazer uma quilometragem alta. Estávamos um pouco atrás do planejado. Encontramos uma igreja abandonada em escombros. Decidimos parar para almoçar. Do outro lado da estrada, havia um reserva indígena. Uma festa estava acontecendo. Muitas pessoas dançavam. Mais tarde descobrimos que essa dança tinha o nome de Camaruco. O ritual determinava que se matasse um cavalo branco, comesse o coração e bebesse o sangue para que chovesse e a terra ficasse fértil.
Mais uma vez continuamos a pedalar quando percebemos que o pneu da bike do Felipe estava completamente torto. Paramos em Tecka, um vilarejo no meio do nada, onde o posto de gasolina era o estabelecimento mais moderno. Dois raios estavam quebrados e o máximo que pudemos fazer foi um conserto improvisado, pois não havia peças de reposição. Ficamos preocupados, porque depois desse vilarejo, estaríamos no deserto sem ajuda de ninguém. Decidimos então voltar 100 km até Esquel. Para isso pedimos carona a um caminhoneiro.
14° Dia
Dormimos em Esquel onde consertamos a roda. Como não tínhamos muito tempo e estávamos atrasados, decidimos pegar um ônibus e parar a 100 km além de Tecka, numa vila chamada Passo de Índios. Chegamos à 1h da manha e não encontramos ânimo para montar a barraca. Resolvemos colocar o isolante térmico e o saco de dormir, deixamos os equipamentos de lado e ficamos apreciando uma das noites mais lindas no deserto. Pegamos no sono olhando as estrelas.
15° Dia – 168,6 km
Partimos como de praxe bem cedo. Os dias que se seguiram foram os melhores pedalados. Estávamos praticamente velejando, pois o vento forte que sempre vem dos Andes nos empurrava para o tão esperado Atlântico. Neste dia, fizemos a nossa maior quilometragem: 167 km e a média de velocidade chegou a 35 km/h. Sempre acompanhados por cânions e sendo observados por guanacos, lebres e ovelhas curiosas, chegamos a Lãs Plumas outro vilarejo no meio do nada. Ali encontramos um pequeno hotel.
16° Dia
Fomos acordados por um galo à nossa porta. Foi então que percebemos que no outro quarto havia galinhas, com todos os hóspedes piando. A pedalada continuava muito boa, com exceção dos 10 km de subida que enfrentamos para sair de Lãs Plumas. Comemos alguns sanduíches em um posto de beira de estrada e seguimos, quando fomos surpreendidos por um forte redemoinho que nos acompanhou por vários metros. Paramos no fim da tarde, o vento mudou de direção e começou a soprar forte, tornando impossível a pedalada. Montamos a barraca ao lado de um morrote para nos proteger e dormimos mais uma vez no deserto.
17° Dia – 134,3 km
Acordamos, arrumamos nossas coisas e saímos a pedalar, faltavam apenas 60 km para
o Atlântico. Chegamos a Trelew, cidade base onde deixaríamos nossas bagagens, tomaríamos um bom e demorado banho e partiríamos para o último dia de pedal com destino a Playa Union. Conhecemos um pouco da cidade e ligamos para Brasil para matar a saudade de casa.
18° Dia – 82,4 km
A ansiedade era grande, tomamos um café e saímos. Próximo destino: Playa Union.
Finalmente tínhamos chegado ao tão esperado Atlântico. A praia, apesar de também não ser das mais belas, era para nós o segundo marco mais importante. Após fotografar e filmar, fomos recebidos por um leão-marinho. Parecia que ele nos queria congratular pelo feito.
Ficamos alguns minutos na beira da praia em silêncio cada um com pensamentos e imagens de vários lugares. Alugamos um carro e fomos conhecer a Península Valdez, onde se encontram baleias, pingüins, leões e elefantes marinhos. Nesse dia, tomamos um barco e fomos ver as baleias franca. Por quase duas horas, apreciamos as baleias passando por nós e saltando. Com o carro, fomos à parte leste da península ver os leões marinhos. Nesta parte da praia é onde eles descansam e muitas baleias orcas atacam os filhotes na areia. Fomos embora da península com o pôr do sol mais belo de toda a viagem. Foi a melhor despedida que poderíamos ter da Patagônia. Saímos com uma lição da cicloviagem: uma forma de alcançar a felicidade é sonhar e tornar esse sonho em realidade.
19 e 20° Dias
Tomamos um ônibus até Buenos Aires e depois um avião até Florianópolis. Esta foi nossa cicloviagem, sem nenhum problema sério, muita saudade da família, apenas um pneu furado e quatro raios quebrados.
*Felipe Corrêa Chterpensque: Catarinense, comissário de bordo, fotógrafo e editor de vídeo amador; é cicloturista há três anos. Além da Travessia Pacífico-Atlântico realizou diversas viagens nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Apoio: Arara Una Equipamentos para Cicloturismo
www.ararauna.esp.br
Este texto foi escrito por: Felipe Corrêa Chterpensque*
Last modified: outubro 18, 2006