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Coluna do Deco: Paris-Dakar unplugged, uma aventura real


Réplica do Skoda usado na viagem (foto: Divulgação)

Oldrich Kyllar nasceu na hoje extinta Tchecoslováquia, em 22 de abril de 1906. Engenheiro, conheceu o Brasil em 1937, quando morou por algum tempo em Recife, montando usinas de açúcar para seu empregador, a fábrica de automóveis e equipamentos Skoda. Naquela época esteve algumas vezes no Rio de Janeiro, foi mais um estrangeiro que se apaixonou pela magia da cidade, então plenamente maravilhosa e cheia de encantos mil.

Em 41 voltou para o seu país, com dos sonhos prontos para decolagem: 1- Viver definitivamente nas ensolaradas terras cariocas. 2- Tentar uma viagem/desafio através da África. A viagem despertou o interesse do seu então cunhado, o francês Jean Marek, que se ofereceu para acompanhá-lo e documentar a aventura em sua moderníssima máquina fotográfica.

A Skoda também facilitou as coisas, não tanto como a dupla esperava, mas o carro, um Skoda 1101 lhes foi vendido a preço de custo. O Skoda 1101 esteve na linha de montagem da fábrica de 1940 a 1951, competindo com o lendário “fusca” (1200). Era um veículo extremamente simples, mas muito resistente, que possuía 1.089 cc, tração traseira, 4 cilindros, 32 hp, peso de 930kg e velocidade máxima em torno de 115km/h. A documentação necessária foi fornecida, com grande preocupação, pela Cie.

Generale Transharienne, que controlava a África Ocidental, então sob domínio francês. Cientes dos enormes riscos e perigos da travessia, Kyllar e Marek acabaram forçados a assinar um “contrato de socorro” com os franceses, cujos valores ultrapassavam em muito suas possibilidades financeiras, no melhor estilo “a aventura é uma aventura em si mesma”.

Jornada – Vencidas as dificuldades iniciais, em janeiro de 1947, o pequeno Skoda e seus valentes ocupantes puseram-se em marcha, desde a clássica Praga, capital da Checoslováquia, com um longínquo e aparentemente inatingível destino: Dakar, a misteriosa capital do Senegal. Essa extraordinária jornada começa exatos 41 anos antes do primeiro ralí oficial para Dakar. Em 47 não existiam pneus especiais, parafernálias eletrônicas, helicópteros de resgate ou caminhões-vassoura, os uniformes dos “pilotos” eram terno e gravata com colete, mesmo nos piores trechos de deserto.

Há mais de meio século atrás, em 14 de janeiro de 1947, movido apenas pela determinação de Kyllar e seu “cunhado-navegador”, o “1101” está a caminho. “Tuaregs” e “Buanas”, com vocês, pela primeira vez, a íntegra do diário de bordo desta fantástica aventura verídica, contada pelo próprio Kyllar em seus históricos apontamentos originais. Portanto, revise rapidamente o seu equipamento de sobrevivência; o deserto se aproxima…

Janeiro

14/01/47
Saímos de Praga em direção à Bavária, Alemanha, porem devido à neve e ao gelo a rodovia estava interrompida e fomos pra Stutgart e depois passamos pelas cidades de Nuremberg, Strassburg e Lion até alcançar Marseille. O sul da França estava agradável, primaveril e viajamos sem paletó. Em Marseille começou a nevar (25 cm), não se via neve há 40 anos em Marseille. Obtivemos permissão para embarque via consulado checo em Marseille, havia muita curiosidade a nosso respeito. Emprestei o carro a redatores de revistas que gostaram muito da direção leve e da boa potência do carro nas subidas.

28/01/47
Embarcamos no navio Ville d’Oran. Estávamos ansiosos pela aventura. Durante a travessia fomos surpreendidos por vento forte, água nas cabines, bagagens flutuando, tudo ficou molhado.

30/01/47
Chegamos às 17 horas a Alger. Até as 2 da madrugada tentamos encontrar pernoite. Escolhemos boa estalagem para cochilo. De manhã retiramos o carro. Condições lamentáveis: o porta-malas fora arrombado e o relógio colocado por mim em Praga, roubado. Imediatamente experimentamos o carro e verificamos seu comportamento em pequenas excursões às vizinhanças. Procurei sem sucesso arranjar uma permissão militar de trânsito para a África.

Fevereiro

05/02/47
Saímos de Alger rumo a Oran. Bela rodovia muito bem asfaltada, com inúmeras curvas serpenteando em subidas e descidas ao longo do mar. Antes de Oran dobrei em direção a Maskaru, onde chegamos à noite, depois de 467 km rodados.

06/02/47
Às 7 da manhã, partida de Maskaru. Encontramos as primeiras caravanas de camelos. Passamos por Kreidar, Mecheria e Ain Safra, que significa Fonte de Areia, porque da rocha sai areia que o vento espalha pela vizinhança. O primeiro lugar onde fizemos reparos nos pneus, depois de mais 335 km. Entre Maskaru e Ain Sefra a estrada é muito ruim e há muitas pedras. Bateu no meu ombro um iugoslavo que vivia há 25 anos em Ain Sefra. Fiz meu último jantar europeu com ele.

07/02/47
7 horas. Saio da casa do iugoslavo depois do desjejum, com um bule de café e pão. A rodovia cede lugar à areia. Meia hora de atraso, 30 graus à sombra. Segui através de Jenie até Colomb-Bechar. Fui recebido com ceticismo pela Cie. Generale Transaharienne. Olharam o carro e disseram: Não tente atravessar o Sahara, para tal eram necessários carros especiais. Queriam que eu esperasse 14 dias pela próxima caravana. Consegui convencer o diretor para passar, mas ele impôs condições e nosso consulado garantiu 75.000FF (Francos Franceses) caso houvesse necessidade de ajuda. Depois de muita negociação, fizemos um contrato. Terei que passar em 6 dias pelo pior trecho do Sahara. Só o contrato custou 2.500FF. Se em 6 dias não chegar à estação no final do Sahara eles partirão à minha procura com aviões e carros especiais. Para cada quilômetro de busca serão 75FF de custo. Tive que pagar antecipadamente a gasolina que pegarei nos postos. O diretor da Transaharienne chamou a atenção para o fato do Skoda ser o primeiro carro pequeno que tentaria a travessia. Não confiaram e prometeram que estariam atrás de nós. Coloquei gasolina, 20 litros de água para o motor e 10 para mim e Marek. Também comprei 2 tábuas para ter como me socorrer caso atolasse na areia.

08/02/47
Saí de Colob-Bechar às 13.30h. Às 18h cheguei a Benis-Abbes, 240 km de distância. Benis-Abbes é uma velha fortaleza em castelo de barro caiado de branco com cercas ao redor. Linda vista, que contrasta ao fundo com o céu africano escuro. Em Benis-Abbes existe um posto da Transaharienne, administrado por uma mulher branca de 35 anos, que vive lá há muitos anos. Ligação com o mundo, só através do rádio e, às vezes, com viajantes que vão ao seu bar beber vinho.

09/02/47
7 horas. Partimos para o deserto, o dia todo medindo a pressão dos pneus. O sol queima sem misericórdia. O calor é horrível durante a viajem e os pneus já furaram 2 vezes.
Ás 16 horas chegamos a Addrar, depois de rodar 360 km. À noite, não saio mais. A possibilidade de se perder é grande. Olhamos a aldeia onde um nativo nos convidou para tomar chá. Pelo costume local, somos obrigados a tomar 3 chávenas de chá. Há danças nativas e músicas especiais. Visito o túmulo do checoSedlar, da firma Bachya (fábrica de sapatos), que faleceu aqui em 1938. Novamente tentam me convencer a não prosseguir. Garantem que irei me atolar na areia e morrer. Os lábios começam a ressecar e ficam em carne viva. 40 graus e toda a atmosfera flutua. Areia com vento. O rádio-telegrafista tenta me assustar contando casos horrorosos.

10/02/47
Percorri 142 km e chegamos a Reggan. No resto do dia executei reparos no carro.

11/02/47
Às 5 h deixamos Reggan. Chegamos às grandes dunas de areia. O vento brica com a areia. A impressão que se tem é de nevasca. Às 12h atolamos bem fundo na areia. Fizemos bom uso de nosso macaco, que pode levantar o carro de lado. Outro lugar para levantar não serviria para nada. Ao levantar de lado, enfia-se a tábua sob as rodas. Partimos. O mais importante era manter elevada a velocidade para que o carro ficasse na superfície da areia sem afundar.

Quando chegamos às maiores dunas o carro ficou asfixiado. Tem-se que ser muito hábil para mudar as marchas. Às vezes que consegui sair em 1a, o esforço era de lascar, mas era gostoso. Viajando pelo Sahara vê-se ao longe os contornos de um lago, por causa da evaporação da areia. Por 2 vezes perdemos o caminho. Pela localização do sol concluímos que estávamos ao contrário. Retornamos pelo nosso próprio rastro. Prosseguimos para Bidon 5. Estávamos com muita sede. Havia pouca água, mas o pior foi o desgaste rápido dos pneus. O carro estava bastante carregado: 250kg + 80L de gasolina + 20L de água para o motor + 15L de óleo. Apesar de tudo, o carro fazia grandes saltos na areia. Motor perfeito, não superaqueceu.

Às 15h chegamos a Bidon 5 com dificuldades, depois de rodar 525 km. A performance foi extraordinária. Bidon 5 tem esse nome porque a 1a caravana que aqui passou deixou 5 barris de gasolina vazios, que serviram posteriormente para construir casebres de lata. No local há rádio e a tripulação militar é de 3 homens, mais um civil para o posto da Transaharienne e um suíço esperando há anos com material para transporte ferroviário a ser construído. Boas vindas cordiais. 3 jovens franceses que servem há 3 meses. Ficaram felizes em nos ver. Jantar solene comemos carne de gazela. Jogamos boliche francês, o que fez bem às mãos endurecidas de tanto segurar o volante. A Cia Ferroviária do suíço tentou abrir um poço, tendo encontrado água salgada a 250m de profundidade. Agora perfura outro poço, já em 1.000m de profundidade. Antes das 18h o rádio avisou Colomb-Bechar de nossa chegada.

12/02/47
Partimos às 6h30 e às 10 afundamos na areia. Custou uma hora até sairmos dali. Deste lugar, levei como lembrança a areia do Sahara. Estou já a 5 dias no deserto. Além dos postos, não encontramos ninguém. Aqui não chove há 7 anos. Às 15h, Tessalit, onde fizemos um curto descanso. Às 18 chegamos a Aguelhoc, e isto sem um pneu. Sobraram 4 pneus na reserva. Durante a viagem vimos um carro da Transaharienne que atolou e foi abandonado.

13/02/47
De manhã coloquei os pneus e inspecionamos o carro. Às 10h saímos. Já vi que os pneus não vão durar até o fim do Sahara. Os pneus eram belgas, lamentei bastante não ter colocados pneus reforçados. Logo após a saída furou um pneu dianteiro, que reparei. A areia diminuiu, mas foi substituída por pedras. De tarde arrebentou a câmara traseira esquerda. Coloquei um pneu dentro do outro e 2 carcaças velhas e seguimos em frente. Às 20h desmancharam-se estes pneus com 210 km percorridos.

14/02/47
Decidi chegar mesmo sem pneus, sem água e sem comida. O perigo é sermos procurado (a 75FF por quilômetro) se não chegarmos a Gao no dia seguinte. Desloquei os pneus para trás e nas dianteiras prossegui só com os discos de aço das rodas. Para aliviar o peso do carro, joguei as tábuas fora e outras coisas dispensáveis. A água potável chegou ao fim no dia anterior e as conservas checas também. O sol queimava barbaramente. Aferi constantemente a calibragem dos pneus traseiros, mas mesmo assim, um deles estourou de novo. Levou bastante tempo até encontrar o furo na câmara, pois já não tinha mais saliva. Marek ficou dentro do carro e contou o tempo que nos restava. Depois levantou, pegou o cobertor vermelho e pôs sobre o carro. Isto para que o avião, na busca, nos visse melhor… A situação estava séria, sem água, sem comida, sem pneus (o pior), com os lábios estourados, num tremendo calor. Será que vamos conseguir sair daqui?

Nossa aparência era das piores. Estava cheio de machucados, pois deitara no chão para colocar as rodas. Aporrinhei-me com a câmara por 3 horas até encontrar o furo. Depois prossegui a 20 km/h tendo na mente o contrato com a Transaharienne a 75FF/km. Sabia bem que não poderia pagar e que perderia o carro e o resto, como outros que fracassaram. O pior trecho já estava atrás de nós, faltando apenas chegar ao posto em Bourem, onde passavam os carros da Transaharienne. Não sei que fim teria levado se não tivesse saído deste lugar. Faltava ainda um dia de prazo para acabar o período, portanto a única saída era ir em frente. A viagem era cansativa. Procurava evitar as pedras, mas o motor recebia grandes choques. Sabia que o carro conseguiria ultrapassar todas essas dificuldades. A preocupação era com os discos das rodas. Depois de 50 km arrebentou o aro do disco direito. Troquei por um reserva e segui em frente. Depois perdi o escape. O motor continuou em prefeito funcionamento, sem aquecimento, apesar de usar 1a e 2a em vários lugares. A cada 10km eu inspecionava tudo. Até o posto final faltavam apenas 4 km. Depois de mais um conserto dos pneus, atravessei esses 4 km em 1h. A estrada estava tremendamente pedregosa e tive medo que a carcaça do motor quebrasse. O carro parecia um trator, mas íamos sempre em frente. No caminho, gazelas e antílopes. Em Borem fomos recebidos por um iugoslavo de maneiras muito amigáveis. Bebemos, comemos e pernoitamos, dormimos em um barraco e no chão. Que bom! O iugoslavo está aqui sozinho, comandando 100 soldados cuja tarefa é manter a estrada. Os soldados são negros, sem uniforme, sem armas. Servem por 2 anos.

1502/47
De manhã, 20 negros carregaram meu carro no caminhão da Cie. Transaharienne, que o levou a Gao. São 98 km. Conforme soube, a Cie. Transaharienne perguntava pelo rádio pela nossa chegada. Caso não fosse confirmada já estavam preparando a expedição para partir no dia seguinte. Graças a Deus.

Gao é a capital de um município do mesmo nome, com 120.000 habitantes. A cidade tem 9.000 homens, dos quais 124 são brancos. Existe grande comércio de gado com as colônias inglesas, Nigéria e Costa do Ouro. A região tem caça abundante: antílopes, rinocerontes, hipopótamos, crocodilos, avestruzes, renas, etc. O carro despertou grande admiração em Gao. De todos os lados vinham perguntas de como fora possível cruzar o Sahara sem pneus. Admiravam o desempenho do Skoda e contavam que várias expedições falharam e deixaram carros na areia. Verifiquei os rolamentos das rodas dianteiras. Tudo estava bem.

16/02/47
Domingo. Descansei biblicamente. Durante o dia perguntava onde poderia conseguir pneus. No jantar, em casa do diretor da Transaharienne, sobe dos pneus, bem como soube que meu carro foi o 1o carro pequeno a realizar a proeza. Que coisa repetitiva! Afirmei que, sem a perda dos pneus teria chegado 2 dias antes, graças ao desempenho extraordinário do carro. O diretor falou que foi melhor chegar sem os pneus, pois isso confirmava o bom desempenho.

Trouxe comigo material promocional das estações de águas checas, o qual foi distribuído em todos os lugares entre Alger e Dakar. De maneira que, se alguém nos seguir, encontrará no profundo interior da África, fotos de Karlsbad (Bohêmia), geisers de 70graus e 10 metros de altura, onde queimei minha mão pela primeira vez. Que saudades…

17/02/47
7h. Procuramos os pneus e graças ao bom relacionamento e disposição do diretor da Transaharienne, consegui o pneu Michelin especial, maior, com o qual não se pode exceder 70km/h. Comprei apenas 4 por economia e calculei que iam durar até Dakar. Começei a reparar os discos. Removi os aros, troquei pelos de um velho Citroen e fixei-os por meio de arrebites. O centro da roda ficou igual, só o aro foi trocado. Muito trabalho sob 60graus ao sol. Mosquitos. O clima, quente e seco. Durante toda a noite ouvem-se os tambores dos nativos. É perigoso sair à noite. Fomos a uma festa de dança dos negros. 5 dias no hotel custaram 6.000F Africanos.

22/02/47
À noite (18:30), saí de Gao. Íamos a Niamey, o caminho através das savanas, muita areia, sempre ao longo do rio Niger. À distância víamos o mato em chamas. Aves e lagartos fugiam de nós. Caças diversas.

23/02/47

Saímos às 3h e logo nos perdemos em profunda areia. Voltamos e continuamos ao longo do rio Niger. Às 5h30 furou outra câmara. Reparei, ficou pronta às 7h. Seguimos viagem. ãs 8:30 chegamos a Niamey, capital da colônia do Niger, sede do governo, centro comercial e cruzamento de caminhos do comércio. Bem situado. Tomei um banho no rio Niger, perto de lavadeiras negras seminuas. Em Niamey, às15h, colocamos o carro na barcaça para cruzar o rio Niger e seguir viagem. 16h, na outra margem, seguimos. Grande calor, não podemos viajar em velocidade maior que 30/40 km/h. os pneus ficam aquecidos e temos que parar. 100 km depois, furou um pneu traseiro. Tornei a colocar o velho pneu belga Engelhart na lona, mas andou somente 10 km. Escurecia. O que fazer? Do mato, de repente, surgiram faróis. O que era? Comecei a consertar o pneu, com Marek montando guarda com a lanterna e o cano de escape como arma. 23h30. Chegamos a Canchari, onde dormimos.

24/02/47
De manhã, 2 pneus estavam vazios. Reparei-os. Às 8h, prosseguimos. Vimos antílopes e nativos nus que paravam diante do carro e faziam continências. 13h entramos em Fada-N-Gurma, 2.900 habitantes. Lá existe uma missão católica evangélica. Às 15h, depois do calor, partimos novamente. Durante todo o dia inspecionei os pneus. Vimos macacos em abundância. Depois de percorridos 300km chegamos a Oulga-Dou-Dou, às 23:30h. Oulga-Dou-Dou é a capital do estado do mesmo nome e tem 536.000 habitantes dos quais 300 são brancos.Centro comercial de gado, fábrica de tapetes e capachos. Tem também uma estação meteorológica.

25/02/47
7h. Parece que o calor está cada vez maior. Viajamos até às 11h e então paramos para descansar. Às 17h30 prosseguimos. Às 20h furou o pneu da roda dianteira e o conserto parecia impossível. Mesmo assim, dei um jeito e depois me deitei com um cobertor. Meu passageiro dormiu dentro do carro. Sinto-me muito cansado, pois só eu dirijo e faço todos os reparos. Dormi tão profundamente que, ao acordar, não sabia onde estava. À 1h, acordei com uma gritaria desesperada. Marek disse que havia caça por perto. Acendemos os faróis e vimos que algo pulou para dentro do mato. Não reconheci o vulto, mas Marek disse que era uma pantera grande e preta. Eu tremia. Pela primeira vez conheci o sabor do medo. Último cigarro. Botei a cama no chão e dormi. Havia mosquitos demais.

26/02/47
De manhã, começei com os consertos dos pneus. Parecia impossível. Coloquei 2 pneus em um só e por cima, correntes de neve para não perder as carcaças. Um horror, mas funcionou. Às 15h chegamos à aldeia Pá, depois de rodar 77 km. O pneu avariado para nada servia. Os nativos de Pá deram-nos água e foram gentis. Pensei o que fazer. Passavam por lá carros da Transaharienne e às 22h passou um que levou Marek até a cidade e Cougu Du para comprar um pneu. Marek voltou no dia 27, às 20h. A noite perto de Pá foi horrível. Dormi dentro do carro. Havia mosquitos por todos os lados. Às 23h prosseguimos. Logo o motor enguiçou por falha do condensador, mas dentro de uma hora, continuamos. Também a comida acabou, mas o principal havia: água. DE manhã, encontramos nativos. Conversei por gestos. Ensinei-os a fazer contas em francês e a cantar em eslovaco. Crianças pulavam como macaquinhos e tentavam tirar os cromados do carro. Abri o último vidro de mel. Adoraram. Brincamos até a noite, na aldeia e cantamos ao som dos tambores. À meia noite chegamos a Bobo. 11.450 habitantes, 240 brancos. Estrada de ferro para Abidjan (800 km). Grande hospital para doença do sono. Leões, elefantes, hipopótamos, panteras e macacos. Em Bobo dormimos no hotel e de manhã vimos que, à noite, no escuro, pisáramos em escorpiões. Difícil trocar travellers checks, só um sírio aceitou-os.

Março

01/03/47
1:30h. Partimos para Bamaco. Aqui se viaja de noite porque os 60graus do dia acabam com qualquer pneu. À frente, hordas de macacos e caças diversas atravessavam a rodovia. De dia, nos escondíamos à sombra, sempre calibrando os pneus.

02/03/47
5h. Chegamos a Bamacom, sede de governo, centro muito importante de comércio. Rio Niger, Estrada de Ferro Dakar (1.230 km), através da qual se exporta algodão e marfim, peles, gado, sal, amendoim. Hospital para malucos. 25.000 habitantes, 800 brancos. Tive necessidade de gasolina, tudo fechado. Tenho febre de 40 graus (a malária que peguei em 37, na Pérsia). Consegui 100L de gasolina. Aconselham-me a seguir pela linha férrea, mas não topo. Decidi partir às 4h, mas, apesar da febre, consegui dormir um pouco.

03/03/47
18h. Parti fraco, agarrado ao volante. Sabia que o tempo estava contra mim. Às 22h parei. Via manchas escuras e perdi o controle do volante.

05/03/47
7h. Marek acordado. Prosseguimos. Macacos na estrada. Parei para fotografá-los, mas começaram a atirar pedras. Corri. Tomei banho no rio Senegal. Balofobei, cidade de 1.800 habitantes, na confluência dos rios Bafing e Bakoi ganha novo nome: Senegal. Após a travessia, deitamos à sombra das mangueiras.

06/03/47
Chegada a Keys, porto do rio Senegal. Temperatura 47 graus à sombra. Mercado importante e estrada de ferro até Dakar. Só me restavam 200F em notas. Precisava de gasolina, comida etc. Cheque nem pensar. 50L de gasolina é o que restava. Daria para chegar a Tambakunda, a 300km? Às 17 h partimos, chegamos às 21h a uma outra travessia. Aqui havia controle de documentos, mas o uisque era bom. Custou 15F. Sobrou 15F. Vimos novamente as coisas de todo dia: fogo, caça nas matas.

07/03/47
De madrugada chegamos a Tambakunda e dormimos no carro. Por lá passa a estrada de ferro até Dakar. Troquei cheque e pude comprar 100L de gasolina. Havia 10L no tanque. Compramos comida e conhaque. Fizemos uma visita à cidade e à plantação de sementes oleoginosas.

08/03/47
Partimos às 8h. A paisagem começa a mudar, aparecem árvores verdes. A caça mais conhecida na região é a hiena e o porco do mato. O carro sofre, passando por buracos, pedras e vals, mas está firme, funcionado perfeitamente. Chegamos a Kafrine Koalum às 12h. Porto no rio Saloum. Maior centro comercial de amendoim. Sede do município de Tamba. São 290 km, mas nós fizemos mais de 360 km. Depois de lubrificar e inspecionar o carro seguimos viagem.

09/03/47
7h. Último trecho, a via Transafrikana. Na rodovia o asfalto era bom. A paisagem nova, verde por tods os lados. Encontramos os primeiros carros e o mar estava próximo. Às 16h chegamos a Dakar. Acariciei o carro e agradeci a bonita viagem feita. Só nós sabíamos o esforço feito, o sofrimento com pedras, areias, uma verdadeira olimpíada.

Domingo, hotéis cheios. Saímos da cidade. Banho de mar. O Skoda nos acolheu. De manhã vi que dormimos ao lado do cemitério. Fomos cordialmente recebidos em Dakar pelo engenheiro Franha, que nos sugeriu um hotel, o Bachya.

Dakar é a capital da África Ocidental Francesa, com 4.800.000 quilômetros quadrados e 15.500.000 habitantes. O porto mais importante de ligação com a América do Sul. Sede do governo federal, forças armadas e centro comercial. Interesse enorme por carros.

Esperamos 7 semanas por um navio e não pudemos embarcar o carro. Por isso deixei-o com o Sr. Franha e tomei um avião para o Rio de Janeiro. O carro será embarcado no próximo navio. Em Dakar consertei os carros da Bachya, estavam em condições lamentáveis. Depois dos dias quentes e noites escuras tenho saudade do Skoda1101. Aguardo seu desembarque aqui, na cidade mais bonita do mundo. Espero revê-lo breve, quando as luzes dos cadillacs, Buicks e Studebakers empalidecerão em confronto ao meu pequeno Skoda 1101.

Oldrich Kyllar
Nota: Depois da jornada africana Jean Marek voltou para a França, enquanto Kyllar permaneceu no Rio de Janeiro, onde constituiu família. O valente Skoda 1101 o acompanhou, é claro, e faz parte da família até hoje, totalmente reconstituído pelo seu filho Ralf, empresário e colecionador de motocicletas antigas. O automóvel esteve em desfiles carnavalescos, corridas clandestinas e muitos outros eventos, como lembrança concreta da coragem e dedicação de seu primeiro e único proprietário, Oldrich Kyllar.

Este texto foi escrito por: Deco Muniz