Webventure

COLUNA: Nevascas nas montanhas brasileiras


O cenário perfeito para os praticantes de esqui snowboard e snowshoe (foto: Antonio Paulo Faria)

Nas montanhas brasileiras mais altas podemos passar calor no inverno e frio no verão, bem como podemos pegar chuva em julho e ótimo tempo em janeiro. Existem apenas tendências climáticas que não garantem nada. Entretanto, em função delas, criaram-se mitos sobre a melhor época para ir às montanhas.

Já passei muito frio escalando o Pão de Açúcar carioca em pleno mês de fevereiro, mas também existem aqueles dias desagradáveis devido ao calor excessivo, umidade do ar muito alta e ausência de vento. Mas se olharmos as estatísticas, veremos que os dias de verão com essas características não são muitos.

O que temos são tendências climáticas que podem funcionar em determinados anos, mas podem não ocorrer em outros. Na verdade, previsão de tempo é quase como uma loteria, trabalham com modelos numéricos na base da estatística, com dados obtidos por satélites e estações meteorológicas terrestres. Porém, não faltam reclamações dos diversos tipos de usuários dizendo que os serviços de previsão estão falhando, entre eles, agricultores, pescadores, militares, esportistas (velejadores, voadores, montanhistas) e turistas. E não apenas no Brasil, mas também nos EUA, Canadá, Inglaterra, França e muitos outros países.

Penso na vergonha que os meteorologistas do INPE-CPTEC, INEMET, Climatempo e Windguru passam ao falhar nos prognósticos. No Brasil a meteorologia é classificada como ciência exata por conter uma carga absurda de matemática, física e computação. Entretanto, a porcentagem de acerto na previsão mudou muito pouco em dois séculos. Ciência exata? Não é culpa dos meteorologistas, estamos muito longe de conseguir prever o comportamento extremamente dinâmico das muitas variáveis atmosféricas que controlam o tempo, e que podem mudar em poucas horas. Mas o que irrita e a presunção desses técnicos. E ainda querem prever padrões climáticos para décadas à frente, como propõe a ONU.

Portanto, não leve tão a sério os serviços meteorológicos, basta consultar três deles para o prognóstico de um mesmo dia para ver as discrepâncias existentes. Em relação ao mito sazonal, deixar de ir às serras brasileiras para escalar, remar, voar, pedalar e caminhar porque é verão, pode se enquadrar em mais uma das muitas dezenas de desculpas para não fazer nada, típico dos pseudoesportistas colecionadores de equipamentos, que na verdade, não praticam nada. Se você é um desses, então é um típico preguiçoso, medroso, ou compra material somente para tentar impressionar os leigos. Da mesma forma que podemos pegar situações atípicas e passar calor em pleno inverno no Pico das Agulhas Negras (PNI), mas também podemos pegar uma nevasca! Mas se você for realmente uma pessoa pessimista e sei lá porque ainda tenta escalar, pode dar ainda esta desculpa: “eu, escalar nas Agulhas Negras em Julho? Vou não, posso pegar uma nevasca lá encima”. De fato, pode!

Acompanhe na próxima página o 1º caso de resgate em uma nesvasca no Brasil

No dia 9 de junho de 1985, ocorreu o primeiro resgate de escaladores numa nevasca em território brasileiro. Jean Claude e Walter Gonçalves estavam numa excursão do Centro Excursionista Brasileiro (CEB) e resolveram sair cedo, para escalar nas Prateleiras, situadas em Itatiaia. Porém, por volta das três da tarde o tempo fechou e a neblina reduziu drasticamente a visibilidade. Anoiteceu e os dois não voltaram ao acampamento.

A neve começou a cair logo no começo da noite, preocupando as pessoas do grupo do CEB porque os dois não tinham voltado. Resolveram pedir ajuda. Havia outros grupos de excursionistas e escaladores na parte alta do Parque, alguns faziam algazarras jogando bolas de neve como crianças. Eu, entre eles. Foi a primeira vez que a maioria viu neve e ninguém estava afim de procurar dois “malucos” perdidos na noite, em plena nevasca. Então pediram ajuda ao Grupo Excursionista Agulhas Negras (GEAN), eles conheciam melhor o parque. Uma equipe subiu de Itatiaia tarde da noite, para fazer as buscas, mas eles não sabiam da tal nevasca. Já havia acumulado cerca de 10 cm de neve sobre o chão e os carros.

Na manhã seguinte fez um dia lindo de céu azul, com toda a paisagem coberta de neve, mas até às dez da manhã nada de aparecer os dois e alguém comentou: “iiii, sei não, acho que viraram picolé”. Mas com aquela paisagem linda e raríssima, ninguém se importou muito, exceto as pessoas do CEB. O grupo de socorro se dividiu em dois e saíram de madrugada. Vasculharam as áreas próximas das Prateleiras e não acharam os perdidos.

Com o tempo ruim e escurecendo, Jean e Walter não conseguiram achar a trilha de volta das Prateleiras e acabaram indo na direção oposta. Mas acharam uma laje rochosa com teto, onde puderam se abrigar. Os agasalhos que tinham foram suficientes para passar bem a noite, e dormiram por lá mesmo. Somente no outro dia de manhã eles perceberam que havia nevado, porque a neve não faz barulho algum quando cai. Imagine a cara deles quando viram toda a paisagem branca? Logo depois acharam o caminho de retorno e encontraram um dos grupos socorristas. No final da manhã todos chegaram bem ao Abrigo Rebouças.

Interessante é que fui saber realmente o que aconteceu com os dois somente 26 anos depois, em setembro de 2011, devido a resposta que recebi de um artigo que escrevi para a lista de discussão da Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro, respondida gentilmente por Igor Spanner.

Por causa da neve, muitos chegaram atrasados em casa. Denise Lucena, que namorava o José Augusto Mattos, chegou em sua casa um dia depois e falou para o pai, que era juiz, que se atrasou por causa de uma nevasca em Itatiaia. Obviamente ele não acreditou naquela historinha, provavelmente nunca ouviu desculpa tão descarada da filha. O namorado devia ter aprontado alguma, mas ela foi salva pelas imagens transmitidas na TV Globo.

Acompanhe na próxima página outras nevascas brasileiras

Em 1957, 1979 e 1996, a Serra de Santa Catarina e a cidade de São Joaquim registraram acúmulo significativo de neve. O meteorologista Ronaldo Coutinho do Prado lembra que, em 1957, o município catarinense ficou isolado durante cinco dias devido a dois metros de neve acumulados. O grande problema é a falta de dados. Certamente já tivemos grande acúmulo de neve na Serra da Mantiqueira, mas temos dados confiáveis apenas a partir de algumas décadas atrás. Para se ter idéia, antigamente os meteorologistas brasileiros confundiam geada com neve. Para eles, tudo que era branco era geada. Como você é culto, sabe que geada é o congelamento do orvalho na superfície. Isto ocorre frequentemente em vastas áreas do Brasil, até na Bahia, como no Pico das Almas que tem 1850 metros de altitude, como eu mesmo presenciei.

Se a água nas poças formadas nessas montanhas congela e a geada é frequente no inverno, então por que não nevaria com frequência? Neva! Mas não observamos porque geralmente o volume precipitado é muito pequeno e derrete rápido. Não é simples provar isto cientificamente, não temos equipamentos automáticos no Brasil para presenciar e registrar os poucos cristais de gelo (neve) que caem nessas condições.

Seria necessário estar nessas montanhas durante as noites mais frias e com chuva eminente. Os poucos cristais de neve que caem quase todos os anos no topo das montanhas mais altas da Serra da Mantiqueira, da Serra Geral e da Serra do Mar, raramente se mantém porque durante o dia a temperatura passa a ser positiva.

A rocha escura, por sua vez, absorve calor durante o dia, permanecendo com temperatura positiva durante a noite. Ou seja, para a neve se manter nas montanhas brasileiras, ou tem que nevar muito, ou a temperatura tem que ficar negativa ao longo do dia, ou por alguns dias. Isso ocorre aproximadamente uma vez a cada década em algumas de nossas montanhas.

No dia 5 de agosto de 2010 a neve acumulou em até 30 cm em alguns lugares da Serra Geral, como na Serra do Rio do Rastro. Isso foi o suficiente para Vitor Patto fazer algumas descidas de snowboard no Morro da Igreja. Esta profundidade não é suficiente para fazer grandes manobras com esquis ou snowboard, mas provavelmente foi a primeira vez que alguém praticou isto no Brasil e também temos escalado em cascata congelada!

O inverno de 2011 foi particularmente muito rigoroso no sul do Brasil, fazendo pequenas cachoeiras congelar na Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina. No dia 10 de julho Ricardo Baltazar e Fabio Lopes escalaram os 30 metros da Cachoeira da Poeira, que estava totalmente congelada, usando piquetas e grampons. Se não tivesse fotos e um cinegrafista para registrar, você acreditaria nesta historia?

Espero que esse tal de aquecimento global continue assim, se continuar “esquentando” dessa forma, talvez poderemos, em breve, escalar cascatas congeladas maiores, subir as Agulhas Negras usando piquetas e grampons e descer esquiando. E viva o aquecimento global!

Mas neve para que? Podemos não ter neve no Pão de Açúcar, mas você sabia que já tivemos avalanche de gelo no Morro da Urca, em pleno verão de 2010? Depois de uma megafesta, resolveram esvaziar as várias caixas jogando todo o gelo restante pela a Face Norte, onde ficam as vias de escalada. Alguém viu e reclamou. Já imaginou as manchetes nos jornais se alguém morresse com uma pedrada de gelo na cabeça? Tecnicamente isso foi uma avalanche de gelo induzida pelo o homem. Eu não menti!

Acompanhe na próxima página como é a formação da neve

A formação da neve. Já viu micro nevasca dentro da barraca? A primeira vez que presenciei tal fenômeno foi no Aconcágua, em 1997. Certo dia acordei coberto por uma fina camada de cristais de gelo em pó, mas eu estava dentro da barraca bem fechada. Aconteceu a mesma coisa na Pedra da Mina (2798 m), mas a intensidade foi menor. Quando dormimos, liberamos grandes volumes de vapor de água através da respiração, que se condensa no teto da barraca. Com temperatura negativa o vapor se transforma em uma fina película de gelo, e quando o vento forte sacode o tecido, os cristais de gelo caem, produzindo uma micro nevasca. Mas isso não deve ocorrer dentro das barracas ventiladas.

Existem vários tipos de cristais de gelo, que na atmosfera chamamos de neve. Vai depender da temperatura e da umidade do ar. Geralmente neva quando a temperatura na superfície fica entre -10 e 2°C, abaixo disso não é comum. Quando está nublado, a temperatura fica relativamente mais quente, mesmo nas regiões mais frias, é o tal do efeito estufa. Lembra que as noites mais frias são aquelas de céu estrelado, logo após a passagem de uma frente fria ou sistema de baixa pressão. Sendo assim, provavelmente nunca teremos neve em Itatiaia quando a temperatura estiver a -10°C.

Em regiões úmidas, a neve geralmente cai pesada, em grandes flocos (agrupamento de cristais), tornando-se pastosa. Já em áreas de clima seco, a neve tem a textura granulada, com cristais finos, parecendo pó (powder snow). Mas também tem a chuva congelada que se forma durante os períodos de inversão térmica. Mais quente acima e mais frio abaixo. As gotas muito pequenas produzidas nas camadas altas com temperaturas positivas, caem e atravessam camada de ar situada mais abaixo e com temperaturas negativas, congelando as gotas. Isso não é o mesmo que neve ou granizo. O granizo tem grãos maiores e é típico do verão, formado nas correntes de ar ascendentes dentro das nuvens cumulus nimbus, que podem chegar a 700 km/h.

Depois que sucessivas camadas de neve se acumulam sobre a superfície, os cristais podem passar por alguns estágios, modificando a forma cristalina por compactação, fusão-recristalização, etc. Depois que a neve se compacta e a partir de uma certa densidade, chamamos de firn ou nevé. Abaixo dessa camada vem o gelóide e, finalmente na base, o gelo, tal como encontrado nas geleiras. Mas também forma-se gelo com o derretimento da neve e o congelamento da água. As condições da superfície da neve também mudam muito em função da oscilação da temperatura e do vento, formam-se muitos tipos diferentes de superfície.

Dados paleoclimáticos de muitos trabalhos indicam que a 18.000 anos antes do presente, a temperatura média global, inclusive no Brasil, era mais baixa. A umidade do ar também era menor nas regiões atualmente úmidas. Isto significa que as montanhas mais altas deveriam ficar cobertas por neve durante breves períodos, ao longo do inverno. Ou seja, a neve deveria ser pouca, mas era mais frequente no Sudeste e Sul do Brasil. A última vez que ocorreu a formação de geleiras no país foi a centenas de milhões de anos, quando o Sul e o Sudeste, Gondwana na época, estavam muito próximos do Pólo Sul.

Depois disso, as placas tectônicas se deslocaram para o norte. A prova são as rochas típicas formadas em ambientes periglaciais, conhecidas como tilitos. Em São Paulo existem grandes depósitos. Sabe-se que há aproximadamente 18.000 anos, Pleistoceno, a linha de neve, ou zona alpina, desceu em até 1000 metros. Ficava acima dos 3600 m.

Atualmente, a linha de neve na faixa tropical tem seu limite entre 4600 e 4800 metros de altitude, mas isso depende da exposição da vertente aos raios solares, e também ao clima local. Isto é, as montanhas brasileiras mais altas possuem altitudes de até 2.994 metros de altitude, e mesmo durante o Pleistoceno não havia formação de geleiras no Brasil porque a linha de neve devia ficar bem acima das montanhas brasileiras mais altas. Isto é fato porque até o momento não foram achados depósitos sedimentares correlativos. No entanto, neve e gelo deviam ser mais comuns, porque a temperatura média era mais baixa.

Concluindo, prepare seu equipamento de esqui, snowboard, snowshoe, ou equipamento de escalada. Pode ser que neste inverno você possa usá-los no Brasil, e quem sabe, até mesmo fazer uma ascenção alpina nas Agulhas Negras. Mas pode ser também na próxima década, daqui a 50 anos…

Ninguém pode prever, nem meteorologistas, climatologistas ou qualquer outro chutador climatológico. E não deixe de ir às montanhas no verão, o máximo que poderá acontecer é pegar uma chuvinha refrescante no final da tarde, mas prepare-se para o frio. E lembre-se, consulte sempre três serviços meteorológicos, se eles não se entenderem, faça a sua própria previsão, vai dar no mesmo!

Este texto foi escrito por: Antonio Paulo Faria