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COLUNA: Relato de acidente com caiaque oceânico (parte 2)

Redação Webventure/ Canoagem, Rafting e canoagem

O colunista Christian Fuchs (foto: Arquivo pessoal)
O colunista Christian Fuchs (foto: Arquivo pessoal)

O canoísta e profissional de resgate Roger Schumann aponta quais são as lições aprendidas com o acidente do remador amador Robert F. Beltran, que quase morreu congelado no Lago Superior, no Canadá, quando ondas enormes o arremessaram de seu caiaque. Este relato e o texto de Roger foram publicados na Sea Kayaker e republicado por mim, aqui no Webventure, com o consentimento da revista norte-americana. A seguir, o texto de Roger, e na última página observações minhas.

“Analisando a maioria dos acidentes de caiaque, dificilmente algum cai fora das premissas básicas de segurança, mostradas a seguir. A maioria dos incidentes envolve hipotermia e mais um (ou todos) dos quatro erros básicos. Remadores entram em situação de risco quando:

>> Não usam colete de flutuação;
>> Não estão vestidos apropriadamente para imersão;
>> Estão com o caiaque sem condições adequadas de flutuabilidade;
>> Não tem suficiente conhecimento técnico e treinamento sobre técnicas de autorresgate nas condições pretendidas da expedição.

Geralmente há uma decisão errônea de partir, somado a um ou mais fatores, como aumento inesperado de vento e ondas, que culminam em uma situação de risco ou acidente. Nessa história, coisas desagradáveis aconteceram aos remadores, que se imaginavam estar preparados. Apesar de remarem um caiaque que já se demonstrou capaz por 15 anos, vestirem neoprenes e coletes, terem vários anos de experiência e levarem um equipamento pessoal de localização (PLB) como último recurso, tiveram contratempos que quase transformaram tudo em um caso fatal. Certamente a determinação de manterem-se vivos foi heroica, mas o objetivo é não entrar em situações onde botamos a nossa sobrevivência em jogo.”

Bob e Judy estavam com colete, apesar de os modelos infláveis manterem a vitima boiando, eles não são ideais quando é necessário nadar na água. Os modelos convencionais de espuma, além de ajudarem a manter o calor, propiciam melhor condição de nadar e, provavelmente, teriam causado menos problemas. Bob mesmo me falou que nunca achou necessário testar nadar com ele inflado. Treinar situações com o equipamento que você vai usar na sua viagem pode revelar problemas que você não esperaria.

Enquanto o casal se considerava vestido para imersão, eles não estavam preparados para a capotagem no meio de uma travessia de 18 quilômetros, em condições de mar a 10°C e ventos fortes com ondas. Talvez um traje de neoprene inteiro ou um traje seco fossem as melhores opções. Nenhum traje assegura sobrevivência em águas frias, mas aumenta muito a capacidade de raciocínio e tomada de decisões, assim como a coordenação motora e a habilidade manual, para se sair rapidamente da situação de risco.

A maioria dos caiaques duplos é bastante estável, principalmente carregado, mas pode se tornar instável se inundado. A perda da tampa dianteira aumenta muito a instabilidade e reduz muito a chance de um autorresgate nessas condições. Outras considerações devem ser levadas quanto a equipamento, como ficar preso no leash de remo e ter um cabo de resgate de arremesso (com a utilização de leash de remo, não acredito que a utilização de cabos de resgate de arremessar iria mudar muito a situação).

A consideração mais importante nesse caso, e o ponto mais importante para leitores, não envolve mudança do foco nos equipamentos, mas sim em técnicas de resgate. Certamente o cabo de resgate poderia ter evitado a nadada épica de Bob, mas e aí? Ou mesmo coletes adequados, que não precisem ser forçados a entrar pela cabeça, ainda os deixariam a quilômetros da costa, esperando por um resgate de helicóptero, sem técnicas adequadas de voltar para dentro do seu caiaque.

Com certeza, o PLB salvou a vida deles e os neoprenes os mantiveram vivos até a chegada do resgate, mas o quarto princípio de segurança, listado acima, poderia ter poupado o trauma e o perigo de necessitar ser resgatado por alguém: remadores precisam ter técnicas adequadas de autorresgate, condizentes com o lugar e condições que vão remar.

Bob mesmo admite que não tinha prática total dos resgates, e os executou apenas em águas quentes, abrigadas e com o caiaque vazio. Judy tinha apenas tido um curso de canoa canadense, quando jovem. Eles não haviam praticado as técnicas no caiaque carregado, nem juntos e nem em condições parecidas com as que teriam na sua remada.

Águas abrigadas são lugares ótimos para se começar as práticas de autorresgate. Uma vez que você se sinta seguro, o segundo passo seria treiná-las em condições mais desafiadoras, porém ainda sob controle, onde, em caso de falha, você seria empurrado para águas mais tranquilas, por exemplo.

O terceiro passo seria voltar a águas abrigadas e treinar com o caiaque carregado, uma vez que ele se comporta diferente. Você poderia praticar no primeiro dia de expedição ou até em águas rasas, onde você nem precise molhar o cabelo. Muitos remadores que eu conheço não treinam, pois não querem ficar molhados e frios. Mas, como vão testar se a roupa é adequada para a condição, se você não experimentar? Provavelmente se Bob e Judy tivessem treinado antes, a experiência poderia ter sido menos traumática e eles teriam reconhecido falhas em seus equipamentos e técnicas.

O quarto passo seria praticar as técnicas com caiaque carregado em condições de águas agitadas. É o equivalente a aprender a nadar, pulando no lado mais fundo da piscina.
Provavelmente praticando isso antes da travessia, eles iriam descobrir que os coletes infláveis são difíceis de vestir na água ou encontrariam algum jeito adequado de vesti-los ou até substituí-los por um de espuma. Teriam descoberto que o traje curto de neoprene não é o suficiente para a temperatura. Teriam assegurado que o equipamento básico, como a bomba, estaria preso ao caiaque. Teriam talvez descoberto que o sistema de fechamento das tampas é falho 15 anos atrás, quando esse duplo foi lançado, o sistema de travas era comum, mas suscetível à abertura acidental; a partir de então, os fabricantes introduziram várias modificações para evitar esse problema, principalmente em reentradas do remador no caiaque por cima das tampas. Ironicamente, a proa cheia de água acabou ajudando Bob a chegar ao caiaque.

O leash de remo de Bob estava preso à saia em vez de no caiaque, fazendo com que ele se enroscasse. Sempre existem prós (não perder o remo) e contras (ficar enroscado) para mais discussão sobre o tema, acesse a reportagem sobre o uso de leash de remo chamada “Staying Connected: The Case for Paddle Tethers”, disponível em PDF em www.seakayakermagazine.com.

Travessias grandes requerem decisões mais precisas, e praticar técnicas e saber de seus limites auxiliam nessas decisões. Quanto maior a exposição e a possibilidade de mau tempo, maior a necessidade de praticar em condições reais. Meu conselho padrão é não remar em condições maiores da que você consegue se autorresgatar. Falar “eu pratiquei reentrada com flutuador de remo” não vai ajudar a tomar decisões tão precisas quanto falar “eu fiz reentradas em mar de um metro, com ventos de 20 nós em caiaque carregado”. Do mesmo modo “eu estou vestido adequadamente” não é tão útil quanto “eu ainda consigo funcionar bem depois de 20 minutos imerso em água com 10°C”.

Um resgate é necessário para remadores que ainda não conseguem reentrar no caiaque após um capotamento. Capotar não é o problema da canoagem. Para aqueles que têm um rolamento confiável, é apenas um problema passageiro. Porém, quando você está na água gelada e não consegue voltar, se torna um potencial risco de vida. O maior aprendizado dessa história é o que pode acontecer quando você leva equipamentos e técnicas adequadas para remadas curtas e em águas quentes, para travessias longas e com fama de tragadoras de vidas. Exposição é a chave. Faz toda a diferença se você está remando 5 minutos ou 10 quilômetros até o próximo ponto seguro de saída da água.

Bob e Judy foram levados pelo sucesso da primeira travessia a executarem a segunda travessia, dobrando o tempo de exposição ao risco. A janela de bom tempo que permitiu eles chegarem à ilha era apenas um intervalo entre as mudanças de mau tempo. Enquanto eu concordo com o julgamento deles de que o retorno foi uma má decisão, tenho que considerar que a ida para a ilha já botou eles em problemas.

Uma vez na água, Bob falou que tinha um flutuador de remo, mas decidiu não usá-lo, pois Judy poderia estabilizar o caiaque para ele. Realmente funcionou, mas a técnica de apoio de Bob não foi suficiente para garantir a reentrada de Judy. O uso do flutuador pode dar muito mais apoio que uma manobra de apoio. Ou melhor, se houver dois flutuadores, pode-se equilibrar o caiaque para os dois lados, tornando tudo mais fácil.

Considerando que um caiaque duplo tem o deck mais alto, o que dificulta a reentrada, se fossem dois caiaques simples, talvez a operação fosse mais fácil. Enquanto investir em um PLB é uma boa ideia, ideia melhor ainda seria investir em aulas de resgate, para nem ser necessário o uso do PLB. Apenas a prática pode revelar possíveis problemas no seu equipamento e técnica.

Pratique o autorresgate regularmente, ao menos uma vez por temporada. Antes de uma travessia, se pergunte quando foi a última vez que você praticou isso com os seus parceiros. Técnicas de reentrada tem validade! Quando foi a última vez que você checou a validade da sua?

Nota de Christian Fuchs:
Roger Schumann é colunista da revista Sea Kayaker e autor do livro Sea Kayak Rescue. Ele é professor de formadores de instrutores nível 5 da American Canoe Association e (ACA) da British Canoe Union, e também adora ensinar os remadores a reentrar em seus barcos em mar agitado. Sua última pratica foi semana passada e foi bem divertida! Ele foi o meu mentor na formação dos primeiros instrutores da ACA no Brasil, e também na Argentina. Ele é uma pessoa muito simples e tem todo o meu respeito, assim como é extremamente respeitado no mundo todo. Contatos: www.eskapekayak.com.

Com 13 anos de experiência e sete trabalhando exclusivamente com canoagem no Brasil, as minhas observações técnicas sobre o ocorrido seriam praticamente as mesmas do Roger, que além de anos de instrução, já fez várias expedições pelo México, já desceu o Grand Canyon (EUA) em caiaque oceânico e é um dos especialistas norte-americanos da modalidade rock garden de caiaque oceânico (manobras entre pedras e arrebentações).

Vantagens de remar no Brasil: é claro que as condições de temperatura de água e do ar aqui são bem mais amenas que no Canadá, salvo no espaço abaixo de Florianópolis e entre o Rio de Janeiro a Cabo Frio, quando bate uma corrente de água fria, mesmo no verão. Com águas mais quentes, a hipotermia que para americanos, argentinos, chilenos e praticamente toda a comunidade canoística mundial é sempre um estresse, para nós não é um ponto tão importante. O que nos dá uma enorme vantagem em relação à segurança.

Desvantagens de remar no Brasil: apesar de aparelhos PLB de localização via satélite estarem disponíveis no Brasil, como o Spot, você acredita mesmo que ao apertar o botão de emergência, em meia-hora vai pousar um desses lindos helicópteros de resgate do seu lado? Eu não contaria com essa opção. Em caso de necessidade, realmente não espere ajuda externa. É melhor estar afiado nas técnicas de autorresgate.

A grande maioria dos remadores brasileiros, mesmo os experientes, ainda não teve contato nenhum com alguma instrução formal de canoagem, técnicas de autorresgate, etc. Isso tanto por ser um esporte novo no Brasil e haver poucos instrutores capacitados, quanto à filosofia otimista do brasileiro do “deixa que, na hora, eu me viro” ou “vai acabar tudo bem”. Estar preparado é não precisar contar com a sorte para conseguir sair de uma situação de risco.

Equipamentos adequados (caiaques apropriados para travessias, equipamentos de resgate como os flutuadores de remo, etc.) ainda não são fáceis de serem encontrados no Brasil. Assim como previsão de tempo confiável. A que eu uso e que mais tem acerto é a do site tcheco www.windguru.com. O melhor seria a pessoa ter noções básicas de meteorologia, para conseguir olhar para o céu e conseguir prever o mau tempo vindo.

Apesar de Bob e Judy já terem uma certa idade e cara de “tiozinhos”, eles têm muita água deixada para trás nos seus 24 anos de canoagem (seis para Judy). São raros os brasileiros que tem essa vivência. E, mesmo assim, estes não estão livres de uma história para contar. Não pense que você pode ficar isento delas!

Com a evolução da internet, qualquer pessoa tem acesso a técnicas e dados, que facilitam bastante, mas não resolvem problema nenhum. Como o Roger disse, é necessário treiná-las nas condições que você vai remar e descobrir qual técnica serve para você. Não existe técnica única, infalível.

A própria revista Sea Kayaker traz, em todas as edições, um caso sobre algum acidente mais uma análise, que serve como boa fonte de informações a você gasta menos de 35 dólares para receber a revista aqui no Brasil.

Afinal, estamos no país que será o próximo paraíso da canoagem mundial. É só se dedicar um pouco ao assunto e aproveitar o que já temos disponível!

Este texto foi escrito por: Christian Fuchs

Last modified: abril 12, 2012

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