Após descida o desafio era na bike até o final (foto: Divulgação)
Confira a seguir o relato de Danilo Vivan, que fez sua iniciação na corrida de aventura no último fim de semana durante a prova Haka Race, em São Roque (SP).
Ritual de iniciação – Haka, segundo a Wikipedia, é uma dança dos povos Maori, descendentes dos polinésios que colonizaram a Nova Zelândia. Como uma espécie de ritual, antes de cada batalha os guerreiros Maori praticam a ‘war haka’, que é uma forma de invocar o deus da guerra e demonstrar força e coragem diante do inimigo.
Provavelmente por conta de tão nobres características, a haka tornou-se uma espécie de patrimônio nacional dos neozelandeses. É invariavelmente praticada antes de cada partida pela seleção nacional de rugby, os All Blacks, orgulho do País, assim com a seleção de futebol é para nós brasileiros.
Essas explicações todas sequer me passavam pela cabeça naquela manhã chuvosa de sábado, 1º de março, enquanto me espremia com outros 146 guerreiros, todos modernamente paramentados com calças de lycra, mochilas e capacetes diante de um pórtico alaranjado com o logotipo da Curtlo.
Era a largada da Haka Race, meu ritual de iniciação nas corridas de aventura, pode-se dizer. Estávamos todos ali diante do desafio de percorrer dezenas de quilômetros a pé e de bike, e de descobrir com a ajuda de uma bússola, um mapa da década de 70, e uma boa dose de sorte, oito Postos de Controle PCs, na linguagem das corridas de aventura.
Ricardo, meu colega de equipe, com quem eu dividiria nas próximas horas confidências, discussões e uma infinidade de câimbras, se espremia um pouco à frente. Sua estratégia era obter das demais equipes alguma ajuda na ingrata tarefa de decifrar o uso de mapas, planilhas e bússolas tarefa com a qual, diga-se de passagem, não tínhamos a menor familiaridade. Da minha parte, a estratégia resumia-se em seguir passo a passo o pelotão composto pelo maior número de competidores. Usaria essa tática nos primeiros metros, quando seguiríamos separadamente eu correndo e Ricardo escorregando por uma pista de esqui artificial. Depois que nos encontrássemos no primeiro PC virtual, passaria a confiar cegamente em suas pouco confiáveis habilidades de navegador.
Como nas corridas de rua, uma invisível, mas bem perceptível onda de tensão e excitação instala-se entre os competidores antes da largada. Uns pulam, outros batem palmas, outros pulam e batem palmas; outros ainda ajoelham-se e balbuciam palavras imperceptíveis. Léo, o organizador, passa aos gritos as últimas orientações. Em seguida, inicia a contagem: 5, 4, 3, 2 ,1…largamos!
Ainda meio atordoado, sigo o pelotão que desceria a pé. Fosse numa corrida de rua, nesses primeiros metros eu diminuiria o ritmo guardando as energias pro final. Mas numa corrida de aventura, quando não se tem a menor noção de técnicas de orientação, mais importante mesmo é estar na cola de quem conhece.
Chegamos juntos ao PC virtual e aguardamos a turma que viria pela pista de esqui. Meus adversários logo reconhecem seus pares no primeiro grupo vindo da pista e seguiram para o segundo PC. Ricardo levou uns 20 minutos. Marquei na estratégia. O pessoal que desceu pelo teleférico em vez da pista se deu melhor!, gritou.
Seguimos a pé, colados num grupo de amigos todos veteranos em corridas de aventura por cerca de cinco quilômetros, até o PC 01, um matagal no qual as bikes estavam estacionadas a nossa espera. Aproveito a oportunidade para sorver vagarosamente um tubo de gel energético. Ricardo, mais ligado na prova, me dá o primeiro de uma série de puxões de orelha: Po, meu, vai logo! Transição tem de ser rápido!
Seguimos debaixo de uma fina garoa pelo acostamento de uma estrada de asfalto. O ritmo é excelente, o trecho é bom de pedalar. Mais alguns quilômetros e abandonamos o asfalto e iniciamos a trilha. Depois de mais ou menos 10 quilômetros chegamos no PC 02 – Chácara do Nilson, informa a planilha. Assinamos a tabela de controle e seguimos a pé para um dos trechos mais extenuantes, a subida do morro da Saboó, com mais de mil metros de altitude.
A medida que o morro, antes um pequeno ponto na paisagem, vai se tornando maior a nossa frente, começamos a discutir. Não, ele não pode ter posto o PC lá no topo. Já andamos quase nove dos dez quilômetros de trekking que estavam previstos. O PC deve ser na metade… Claro que não. Você acha que o Léo não ia pôr um desafio desses? Esquece, meu! O PC é lá no pico.
Perplexos e desanimados, identificamos minúsculos pontos vermelhos a cor da camiseta dos participantes da prova bem próximos do pico. Ronaldo e Felipe, dois colegas, param no início da subida e nos oferecem umas bem-vindas castanhas. Inicio a subida procurando, sempre que possível, olhar pro chão, evitando adivinhar as escarpas que se avolumam a minha frente. No trecho mais próximo do cume me agarro em raízes e pedras para vencer as passagens mais íngremes. Chego no topo.
Fosse num passeio, ficaria ali parado por uns longos minutos apreciando aquela paisagem espetacular. Mas não há tempo. Assino a tabela do PC, espero uns minutos até a chegada de meu companheiro e iniciamos a descida. Na estrada que dá acesso novamente à chácara do Nilson, a próxima transição, ganhamos tempo, substituindo a caminhada por uma corrida em ritmo leve. Por poucos minutos, apenas.
Logo Ricardo começa a sentir câimbras que o acompanhariam até o final da prova. Seguidas vezes, ele corre por uns metros e logo em seguida,pára pra se alongar, diminuindo assim os efeitos das contrações.
Na Chácara do Nilson, paramos para abastecer nossas mochilas de hidratação e caramanholas (garrafinhas). É hora de devorar uma barra de cereal e um tubo de gel energético. Ricardo, mais determinado, esquece das câimbras e se apronta na bike: Vamos logo!
Iniciamos a perna mais longa de bike, que nos levaria até o PC 07 (pela planilha, apenas cruzamento), passando antes por uma ponte de concreto (PC 05, já na área urbana de São Roque), e pelo cemitério do Cambará (PC 06). Seguimos num comboio de três equipes.
Aos poucos o tempo chuvoso dá lugar a um sol forte e a temperatura sobe. O trecho mais difícil, entre o cemitério e o cruzamento, é uma longa subida em estrada de terra mais de um quilômetro, calculo ladeada à nossa esquerda por um enorme muro de concreto. Nessa etapa seguimos da única forma possível: empurrando morro acima nossas magrelas. Naquelas circunstâncias, aliás, o termo magrela não poderia ser mais inadequado. Pressupõe algo leve, esbelto. Mas convenhamos, não há nesse mundo balança de precisão que me convença de que naquela ladeira enorme e debaixo de um sol de 40 graus minha magrela pesasse apenas 13 quilos, como já havia verificado várias vezes numa balança em casa e em lojas especializadas.
Ali, diante das forças da natureza, pesava 80 quilinhos, no mínimo. E dá-lhe sol! Nos arrastávamos por cinco ou seis metros e parávamos debaixo de algum arbusto pra respirar e tomar um pouco de água. Nessas horas, dizem os iniciados, a reação de todo corredor de aventura é mais ou menos a mesma: Meu Deus! O que que eu estou fazendo aqui? Pra que isso?, pensava.
Seguimos e alcançamos o PC 07, o tal do cruzamento. Sirlene, uma velha amiga, é quem está no comando das planilhas de registro. Ela nos estimula: Meninos, vocês tão indo muito bem! São uma das primeiras equipes a passar por aqui. Pura verdade. Confiro na tabela e observo que umas 20 equipes no máximo já deixaram ali suas assinaturas. Dali até o PC 08, já de volta ao ponto de onde cinco horas antes largáramos, o pedal é tranqüilo, cerca de um quilômetro na reta.
Ricardo, maltratado por horas de câimbras, se esforça pra me acompanhar. Mas é a hora de minha vingança: Vamos, meu, a gente está bem na parada. Não atrasa, po!
Chegamos ao PC 08, o arborismo. Missão que, devido às precárias condições físicas de meu colega, caberá a mim. Já paramentado com o kit de escalada, olho para as pequenas fendas na parede artificial, impossíveis de se agarrar e mais impossíveis ainda de se apoiar os pés. Desanimo.
Ricardo, você vai ter de ir no meu lugar, velho. Eu não vou conseguir… A resposta: Você não ta vendo o jeito que eu estou? Larga de ser medroso e vai. Fui. Com a ajuda do instrutor, lá embaixo, passo por mais essa numa boa. Atravesso uma ponte entre duas árvores e desço por uma pequena corda tirolesa. Missão cumprida. Ufa!
Passamos, juntos, o pórtico de entrada, ali transformado em chegada. Nos abraçamos como dois jogadores que comemoram um gol. Nada de dança para demonstrar força ou invocação aos deuses da guerra. Entre uma subida íngreme, um sol de 40 graus e o esforço pra se manter na estrada, driblando as câimbras e o cansaço.
O que vale nessa dança é espantar os próprios demônios, seguir em frente e festejar a camaradagem.
Este texto foi escrito por: Webventure
Last modified: março 11, 2008