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Conheça a história da conquista de uma nova via de escalada na Pedra do Baú

Redação Webventure/ Montanhismo

O traçado da via (foto: Karina Filgueiras)
O traçado da via (foto: Karina Filgueiras)

Karina Filgueiras é montanhista e Diretora de Escalada do CEU (Centro Excursionista Universitário), empresária e formada em Educacao Física. Já escalou o El Captain, Half Dome, Leaning Tower, Cerro Catedral/ Cerro Tronador, entre outros. Nesse texto ela relata a conquista de uma nova via na Pedra do Baú (SP), ao lado de Bito Meyer.

A via Cães e Caravanas, na face norte da Pedra do Baú, estava em nossas cabeças há mais de um ano, e o Bito Meyer já a tinha visto em 1994, quando esteve conquistando outra via na mesma face, a Distraídos Venceremos. Enquanto estávamos conquistando o Campo Escola CEU (CECEU), um local de treinamento que veio suprir a necessidade que havia na região de vias onde o escalador iniciante pudesse praticar com segurança e ambiente as técnicas de escalada, aproveitávamos para namorar a parede a nossa frente, sabíamos que ali esperava por nós, um tesouro do Baú.

A Cães e Caravanas é uma via com enfiadas cheias da mais pura escalada em livre, num misto de proteção móvel e fixa. A via ficou bastante esportiva para uma via na face norte do Baú, que é desafiadora e difícil e com pouquíssimas vias, e mesmo estas vias com poucas repetições, devido ao grau de dificuldade e de comprometimento necessários para encarar essas vias.

O trabalho seria árduo para mim e para o Bito, pois nossa intenção era fazer um ataque de vários dias e dele sair com a via pronta. Para isso precisávamos planejar e cuidar da logística de parede, como: levar água (3 lts/dia por pessoa), alimentação, equipos, cordas, mosquetões, móveis, costuras, fitas, equipo pessoal, todo o material de bivaque, saco de dormir, roupa, anorak, primeiros socorros, etc, totalizando, por baixo, uns 150 quilos de carga.

Transporte – Começamos o transporte de água algumas semanas antes e durante este período tivemos a ajuda de vários amigos e carregadores, cada um levava um pouco do equipamento e assim conseguimos botar tudo no platô. Era impressionante ver o Bito com suas bengalas canadenses (que tem que usar para caminhar em trilhas depois da fratura na perna que sofreu anos atrás e que causou o enrijecimento da articulação do joelho), carregando uma mochila cargueira com 20 quilos. Só mesmo tendo o “espírito do montanhismo dentro de si”.

Com todo o material no platô, nos restava partir para a via. Desde o início nos propomos a ir trabalhando juntos e dividiríamos todas as responsabilidades da conquista, inclusive guiar, o Bito guiaria uma enfiada e eu outra, mas eu estava tranqüila, afinal tinha o “mestre” Bito Meyer do meu lado. Esta era a via mais séria que iria encarar, até agora tinha conquistado vias curtas e apesar de eu estar acostumada às grandes paredes, como de Yosemite, quase tudo que eu havia escalado até agora, foram repetições de vias, ou seja, eu tinha como referencia que ‘alguém’ passara por ali, mas agora eu me moveria por caminhos “virgens”.

Escolhemos iniciar a conquista desde o platô do “MSP”, por uma fissura desafiadora, que ganho como presente e saio para o desconhecido, guiando por um terreno sem chapeletas com a responsabilidade de “criar Montanhismo”.

A fissura é toda com boas colocações para proteções móveis (peças removíveis que colocamos na rocha). No início é relativamente fácil fazer as colocações das proteções, porém a fenda é formada por uma laca fina, e eu suspeitava que ela poderia quebrar com qualquer queda e no meio do desconhecido. Sem saber exatamente o que você vai encontrar e como seria o próximo passo, o meu coração dispara e tenho que trabalhar muito bem a cabeça para o pânico não “bater”. Depois de alguns minutos volta a concentração e eu consigo focar minhas energias e arrisquei-me na parede acima. Bato apenas duas chapeletas (proteção fixa) nesta cordada e chego a um platô, perfeito para uma parada.

A primeira metade da via foi aberta com martelos e talhadeiras e a segunda parte foi com uma furadeira à bateria, o que tornou, em partes, o trabalho de grampear mais “fácil”. Mas para eu poder usar a furadeira e até mesmo me sentir a vontade e merecedora deste conforto tecnológico e conquistar esta via com o Bito, tive que bater (na mão) 8 furos numa tarde (aí nasceu a Tapa na Pantera, outra via que abri junto com o Bito em um outra região em que estamos abrindo um novo Campo Escola).

O Bito entra para conquistar a próxima cordada, e de cima já aviso, “ta ficando linda”. Agora, mais uma fissura para peças pequenas, e sai em natural e assim foi, fomos revezando a cada cordada. A via tinha a característica das grandes vias de parede e estávamos preparados para tudo. Pensávamos que iríamos encontrar uma parede bastante trabalhosa, com trechos longos em escalada artificial, mas a cada cordada encontrávamos uma linha em livre, que nos levava a fazer um trabalho de escalada esportiva, forte, intensa e comprometida, e era muito bom saber que a via estava saindo em “natural”.

Com o fato da via sair em natural, decidimos conquistar a via com um conceito bastante moderno e arrojado, pois a via tem graduação alta e as quedas acontecerão, porém são relativamente seguras para quem for repetí-la. Relativamente segura porque não grampeamos (não colocamos proteção fixa) onde era possível usar proteção móvel, o que aumenta o grau de comprometimento.

Decidimos também fazer enfiadas curtas, pois a escalada ia mudando de forma a cada 20/30m, como se fosse separada por setores, e cada trecho é diferente do outro. Todas as paradas (local onde ocorre o fracionamento da escalada) estão muito bem protegidas, algumas com três chapeletas.

Quando você leva uma queda, um vôo, numa falésia (parede pequena de rocha), já é adrenante, imaginem só isso acontecendo numa parede de aproximadamente 350m de altura, aérea e exposta. A via ficou maravilhosa e causou muita curiosidade e excitação na cidade e na galera escaladora, que acompanhou a nossa escalada dia-a-dia e viam nossas luzes de lanterna parede acima durante as noites. Fendas, faces verticais, regletes, negativos, teto, tinha de tudo e a cada metro que passávamos, o Bito me dizia “a escalada acontece de 2 em 2 metros, vamos em frente e com calma”. E eu ia desfrutando desses momentos…

Seguindo as agarras chegamos à última cordada da via. Dali o Bito guia uma transversal de aproximadamente 20m, sem proteção em meio a pedra podre a qual chamou de “Benvindo a Ixtlan” (grau sugerido Vsup E3 E4 – grau de exposição a confirmar), chegando embaixo de um teto gigante, coberto de um líquen amarelado e de minério que reluz com a luz do sol.

Teto – Bito equipa (coloca proteções fixas) o teto em A0, para que as pessoas possam repetí-lo, já que a via é toda em natural, e depois eu começo a conquistar os últimos 20m. Depois de muito esforço e duas quedas, consigo sair de “Ixtlan” pelo “caminho do Nagual” e chego ao cume do Baú. O Bito tinha razão, também aconteceu comigo… já não sou a mesma pessoa…

Para esta investida estávamos programando de cinco a sete dias de parede. Como éramos apenas em dois, o trabalho pesado era intenso, além da escalada propriamente dita.

O pior e mais desgastante era fixar cordas, jumarear (ascender pelas cordas), limpar a via (retirando as proteções colocadas pelo guia), passar horas na mesma posição fazendo a segurança do seu companheiro, içar os equipamentos, fotografar, fazer comida, economizar água limpando as coisas, ficar atento às condições climáticas, derreter embaixo do sol e depois congelar no início e no final do dia, enfim… nem tudo era brincadeira e esporte, uma trabalheira enorme, que terminava normalmente às 20h, dentro de nossos sacos de dormir. No dia seguinte acordar cedo, com as mãos já inchadas, cortadas e doloridas, começar tudo de novo, um trabalho difícil, cansativo, comprometedor e lógico arriscado.

Tentávamos tomar um bom café da manhã, mas nem sempre era possível. A tensão do dia que viria pela frente e a sensação de descoberta e do desconhecido que estava na nossa frente, nos deixavam com uma certa “inapetência matinal”.

Preparava um lanche, guardava na mochila e começava o dia ascendendo pelas cordas, interminavelmente, com enormes mochilas nas costas tantas vezes, que chegava a esquecer da altura.

O balanço – Depois desta conquista, aprendi muito sobre escalada e conheci também um novo lado do Montanhismo: a sua expressão mais pura e anárquica. Apesar de estar acostumada a escalada de grandes paredes e de já ter escalado vários big walls, permanecendo até cinco dias na parede e em várias regiões do mundo, cheguei a conclusão que a magnitude da conquista de uma via como esta é inigualável.

O Comprometimento, o Companheirismo, a Cumplicidade e o Entendimento do Universo que rege essa harmonia entre os três elementos de uma escalada, que são, Você, seu Companheiro de cordada e a Parede, esses momentos são únicos e ao mesmo tempo inexplicáveis. Você se expõe de todas as formas e arrisca sua vida na ponta da corda e passa a conhecer de onde vem a força desses homens e mulheres, “originais e verdadeiros” que enchem nossos corações e espíritos com histórias de montanhas cheias de determinação, comprometimento e paixão.

Concordo com o Bito quando ele diz que a conquista ou abertura de uma via como esta é um trabalho autoral, intelectual e que reflete muito do seu íntimo, e porque não dizer que é uma expressão artística do seu universo e da sua capacidade de criar e ser original.

Não sei exatamente quanto utilizamos para realizar esta via, mas aqui vão alguns números:

Equipamentos:

  • 5 cordas de 60m (2 dinâmicas, 2 estáticas e 1 retinida)
  • 50 mosquetões soltos
  • 20 mosquetões de rosca
  • 20 costuras longas
  • 1 jogo de Camalots e Nuts (peças móveis para proteção – total 20pçs)
  • 6 ganchos (cliffs)
  • 15 fitas diversas
  • 56 chapeletas com chumbadores, batedores e martelo, brocas, furadeira
  • 2 mochilas de ataque
  • 1 mochila cargueira
  • 1 haul bag (saco de lona plastificada super resistente).

    Equipamentos de acampamento:

  • sacos de dormir
  • sacos de bivaque
  • isolantes térmicos
  • fogareiro
  • utensílios de cozinha
  • head lamps
  • primeiros socorros.
  • Além de tudo isso ainda há a alimentação de todos estes dias, carregadores e combustível do veículo nas diversas viagens de São Paulo à Pedra do Baú.

    Classificação da Via:
    Nome: Cães e Caravanas
    Conquistadores: Karina Filgueiras (40) e Bito Meyer (51)
    Graduação Sugerida: 6º VIIb (A1+/VIIIb) E3
    Descida: pelas escadinhas a partir do cume. Os rapéis da via são possíveis de qualquer trecho com duas cordas de 60m. A partir da P6 o rapel fica trabalhoso e com grandes pêndulos (não recomendamos para quem não estiver habituado a este tipo de situação).
    Distância de Trilha: aproximadamente 1 hora com carga.

    Este texto foi escrito por: Karina Filgueiras

    Last modified: julho 22, 2008

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