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Cruzando um continente – no limiar de dois mundos

Qualquer grande viagem começa antes mesmo de deixarmos nossa casa. Além das malas, documentos e despedidas, nossa mente se enche de projeções e aspirações. Pensamos em tudo o que pode acontecer ou deixar de acontecer mesmo sabendo que na hora “h”, nada sai do jeito que imaginávamos. Ainda bem!

O ponto de partida, depois de 9 horas de vôo direto do Rio de Janeiro, é conhecido de muitos brasileiros: Miami. O destino é Cidade do México, no coração da América Central. O meio de transporte é o ônibus. A rota é incerta e a única companheira; a máquina fotográfica. Na bagagem de duas mochilas, com direito a barraca, o espírito transbordante em busca do inesperado.

A estação de ônibus, em um bairro menos favorecido de Fort Lauderdale em Miami, mostra um pouco do terceiro mundo norte-americano: empregados com a boa vontade e desorganização do funcionalismo público brasileiro. O meu ônibus, marcado para as 19h15, saiu as 19h45 deixando para trás, além de mim, várias outras pessoas por causa de um overbooking.

Consegui entrar, me valendo da malandragem brasileira, em um ônibus que saiu por volta 22h. Estava confortavelmente instalado na última poltrona, lado a lado com o banheiro e sentado em cima do quente motor, quando me ocorreu um fato curioso: eu era a única pessoa branca no veículo! No sul dos EUA a classe de baixa renda é quase toda representada por negros, resquícios da escravidão.

De ônibus, opr opção – Outro fato curioso é que ao conversar com as pessoas pelo caminho descobri que no país onde o avião custa quase tanto quanto o ônibus, a viagem terrestre não é uma opção de economia, porém de ideologia. “Aviões não são para mim, quero ter sempre meus pés sentindo a firmeza do chão!”, confidenciou-me um rapaz do Alabama num sotaque quase incompreensível.

Jacksonville, Tallahassee, Fort Walton Beach, Mobile, Biloxi e finalmente New Orleans, a primeira parada oficial. O sistema de transporte rodoviário nos Estados Unidos é peculiar. Os ônibus param em todas as cidades pegando e deixando pessoas, portanto não é raro a rota normal ser desviada em alguns quilômetros para deixar ou pegar passageiros. A dica é não se importar e relaxar com um livro ou walkman.

O berço do Blues e do Jazz é impressionante. A primeira sensação ao cruzar o famoso “French Quarter” ou bairro francês, é de diversidade. A cada passo um som diferente vindo dos diversos Pubs ao longo da “Bourbon Street”. A grande atração da cidade é sem dúvida o Rio Mississipi, um tradicional passeio de barco pelo rio é uma boa pedida até para o mais radical dos aventureiros, mas é bem provável que as maiores atrações estejam à margem do rio onde não é raro encontrar um “bluesman” destilando fortes notas em seu instrumento.

Companheiros pitoerscos – A viagem continua e nesse ponto, após conseguir um contato em San Diego, na Califórnia, decidi chegar ao pacífico. Até El Paso, cidade de fronteira com México, a bela monotonia desértica tomou a paisagem e os grandes momentos ficaram por conta das conversas pitorescas no ônibus. Primeiro um caminhoneiro típico, que ocupava, além do seu, metade do meu assento. Ele falou comigo por mais de uma hora, reclamando que tinha largado seu caminhão, quebrado, em Lafayette e lamentava profundamente sua vida miserável.

Depois, um simples rapaz interiorano de 17 anos, aficionado por automóveis. Ia para Houston fugido depois de uma briga com o pai que quase lhe custou a ponta do dedo! “Não se preocupe, aposto que ele me busca amanhã. Não é a primeira vez”, me disse rindo. Tudo era festa para o garoto que só conhecia o Brasil de nome. “Vocês tem um ótimo time de futebol, não é?”, perguntou com cuidado, não querendo cometer gafes.

A última conversa peculiar foi com uma jovem que ia de Houston para San Antônio. É uma jornada de 6 horas pelo deserto texano. Assim que nos apresentamos ela me confidenciou que era sua primeira viagem de ônibus. Ela não esperava o momento de rever seu namorado, recém integrado a Guarda Nacional americana. Depois de alguns instantes, ao me ver com uma sacola com alguns chocolates ela me surpreende: “Vocês tem chocolates no Brasil?”, foi horrível, não contive os risos que a deixaram completamente sem graça! Mal sabe ela que a maioria dos chocolates que ela come é industrializado a partir de árvores das matas brasileiras.

Essas conversas mostram que por mais perfeita que uma sociedade possa parecer, as pessoas sempre têm angústias, sonhos, perfeições e imperfeições.

Hermanos – Se ao sair de Miami me espantei com a quantidade de negros no ônibus, o espanto agora, saindo de San Antônio, era em relação à quantidade de mexicanos ou descendentes. As feições não negam. Nas ruas, ao longo de todas as cidades fronteiriças, a impressão é de se estar no México.

As placas de informação, os outdoors e as pessoas parecem falar espanhol antes mesmo do inglês. Na verdade, são enormes cidades divididas por grades ou muros e com direito a Patrulha de Fronteira e tudo, mas é notável que a cultura das duas “partes” da cidade é muito semelhante.

San Diego é uma cidade jovem. Praias, montanhas, deserto, baías, uma lua apaixonada, festas, gente bonita e estudantes de várias partes do mundo. Isso já torna a cidade ideal para o público jovem, ainda mais surfista. Entretanto para qualquer um que nunca teve a sensação de ver o sol se apagar no mar, a cidade é uma opção ótima. Um rápido trekking por uma colina nos arredores de La Mesa deu a exata noção da região. Eu estava numa elevação desértica do terreno e à minha volta toda, casas e mais casas.

Eram os diferentes subúrbios do Condado de San Diego, um conjunto de casas até perder de vista. Para quem tem as megalópoles como parâmetro, fica difícil imaginar como 2,5 milhões de habitantes ocupam tanto espaço.

Cruzando os mundos – Cruzar a fronteira dos EUA para o México foi surpreendente. Não me pediram nada. Passando de carro, foi como passar por um pedágio. De volta ao EUA, o rapaz da alfândega do Aeroporto de Miami, ficou intrigado em saber como eu tinha saído do país e não tinha visto de saída! Ele custou a acreditar no percurso, quando contei por onde andei. O visto, tirado no Consulado Mexicano, no Rio, ficou lindo no passaporte, mas não teve outra utilidade senão a estética.

O ônibus saindo de Tijuana passou por uma fiscalização na estrada, porém os guardas, provavelmente pensando que eu fosse americano, não me pediram nenhum documento. A paisagem desértica continuou igual a dos EUA. O nascer do sol é de tirar o fôlego. A diferença é que ao cruzar as cidades de beira de estrada, no lugar das cidades pensadas e arquitetadas perfeitamente pelos engenheiros e arquitetos americanos, o ônibus passa por vilarejos e cidadelas no estilo do sertão nordestino brasileiro.

Lugares com telefones de quatro dígitos! Passar da realidade norte americana para a mexicana tão subitamente obriga a refletir. Dois lugares tão próximos geograficamente e de realidades tão distantes. É lógico que todo mexicano sabe como vive o americano, mas os americanos não sabem à que se submetem os chamados “Latinos”.

O Brasil é aqui?? – O paralelo é quase obrigatório, a situação de Brasil e México é muito parecida. Riqueza e miséria convivem lado a lado por todo o país. O povo mexicano gosta do brasileiro. Sempre que dizia de onde vinha todos faziam questão de me tratar como VIP.

Passado o norte desértico, a paisagem varia entre os campos de cultivo e áreas de floresta, Sinaloa, Nayarit, Jalisco, Guanajuato, até chegar à primeira parada oficial no México depois de mais de quarenta horas de viagem desde Tijuana: Querétaro.

A cidade, capital do estado de mesmo nome, teve papel de destaque na independência do país. É pequena, mas com belos monumentos históricos como o aqueduto, construído por uma duquesa espanhola que gostava de banhar-se. Próximo à Querétaro, uma cidadela chamada Bernal é um parque de diversões para quem pratica escaladas ou rapel, mas é necessária uma permissão da prefeitura.

Aventura e beleza – A Pedra de Bernal, que se impõe 288 metros acima da cidade e fica a 2.515 metros do nível do mar, é considerada o terceiro maior monólito do mundo. Perde apenas para o Rochedo de Gibraltar e para o nosso Pão de Açúcar.

A cidade de Querétaro tem um movimento noturno de boates e danceterias. A grande diferença é que a maioria das músicas é cantada em espanhol! Mas o estilo é o mesmo das casas brasileiras. Esses não são lugares para procurar a música mexicana genuína. Esta música diversificadíssima está espalhada por todo o território, e quase sempre acompanhada de belas danças. A arte nas igrejas e museus mostra a marca indígena forte na colonização. Os anjos e entidades adorados pelos católicos freqüentemente tomam formas e feições indígenas.

Fora isso, as incontáveis pirâmides e construções das civilizações pré-hispânicas dão um ar bastante rico culturalmente ao país. Sobretudo na própria Cidade do México. Para historiadores, arqueólogos ou mesmo curiosos (como eu) é enlouquecedor!

Depois de Querétaro a parada seguinte foi Pachuca, capital do estado de Hidalgo. Uma cidade muito simples. Essa parada me rendeu um dia inteiro de escaladas na cadeia montanhosa Las Ventanas. O belo parque tem várias opções de lazer com a natureza e um albergue que fica onde começam as escaladas mais famosas da região, que ainda abriga o vulcão El Chico.

De Pachuca finalmente cheguei à capital mexicana. Pensava que minha jornada tinha terminado, as passagens de avião estavam marcadas, tudo certo para o meu retorno ao ponto de partida: Miami. Mas os amigos que me hospedavam me convenceram a adiar a passagem e seguir com eles para um fim de semana em “Las Vigas”, no meio do estado de Vera Cruz.

Um minúsculo vilarejo a uma hora de estradinha de barro da Reserva Ecológica Valle Alegre que abriga um Albergue da Juventude. Do albergue é possível fazer escaladas, mountain biking, raftings e caminhadas pela região. A bela vista do Cofre de Perote instiga a caminhada de quatro horas até o topo. A região tem cachoeiras e paisagens lindas, como do Pico Orizaba, com 5.747 metros e neve eterna.

Mas o frio também é forte, a região fica na faixa dos 2.800 metros de altitude e mesmo no verão as temperaturas podem chegar a ser negativas à noite. Na volta à Cidade do México, pude perceber como esse simples fim de semana engrandeceu a viagem num âmbito geral.

Viajar é mesmo fascinante, ao sair de Miami, voltando pra casa, minha cabeça já arquitetava a próxima empreitada e meu coração já sentia saudades do “México lindo e querido…”. Paradoxalmente, quanto mais nós viajamos, mais descobrimos lugares que queremos conhecer. E assim reinicia-se o ciclo de planejar e executar viagens.

Este texto foi escrito por: Julio Stéphano