Velejador solitário esperando a maré encher. (foto: Arquivo De Olho no Brasil)
“De Olho no Brasil ecoturismo no litoral do Maranhão e Piauí” é a primeira fase de um trabalho de pesquisa que elaboramos e conseguimos realizar neste ano. Nosso objetivo é buscar informações escondidas em regiões brasileiras não muito divulgadas e fazer um levantamento do potencial ecoturístico, sob a ótica da sustentabilidade, visando assim a preservação e integração sócio-cultural, ambiental com o desenvolvimento.
Percorremos os litorais desses estados de ponta a ponta, com atenção às porções menos conhecidas. Assim, Alcântara, São Luis e o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses não foram nosso enfoque, não obstante nos tenham fascinado. Para vivenciarmos todos os sentimentos e a realidade dos locais, utilizamos os mesmos meios dos quais as comunidades dispunham: nos alimentamos de suas iguarias, ouvimos suas músicas e sentindo não sua rotina e seus anseios.
Na divisa com o Pará
Começamos na divisa do Maranhão com o Pará, em uma pequena cidade chamada Carutapera – cidade que é formada por gente que traduz em suas faces as raízes de nosso Brasil. São índios, contudo, miscigenados aos negros e europeus.
O lugar, até pouco tempo atrás, era um tanto isolado. Hoje a estrada está pavimentada, criando um vislumbre de desenvolvimento econômico para a comunidade, que chega a apostar no turismo. Quando chegamos no lugar, parecíamos ETs. As donas de casa deixavam seus afazeres domésticos e corriam para as janelas, as crianças largavam seus brinquedos… eram olhares curiosos e ao mesmo tempo receptivos.
Para nos informarmos melhor a respeito dos atrativos da cidade, nos recomendaram falar com o padre. Padre Mário, italiano, está lá há mais de 30 anos. É possuidor de uma vivência marcante sobre a cultura caiçara. Ele foi praticamente nosso guia de turismo, nos mostrou a realidade local.
Caranguejo e reza – Fomos até um galpão, no qual mulheres esperavam pacientemente pelos caranguejos, dos quais deveriam retirar toda polpa e receberiam R$ 1,00 pelo quilo da carne, enquanto que o mesmo caranguejo é vendido nas praias de Fortaleza-CE por valores que variam de R$ 1,00 até R$ 1,50 a unidade do crustáceo.
Contudo, o mais peculiar, é que esse padre instalou alto-falantes nos quatro cantos da cidade e, todos os dias, acordava as pessoas às 6h com orações e músicas católicas. Além disso, sempre aproveitava para dar recados e informações úteis à comunidade.
No final, ainda nos ofereceu sua casa de praia, situada em um lugar deslumbrante chamado Ilha de São Pedro. Nos ofereceu a chave da palafita (a região sofre enormes influências da maré) e pediu para a deixássemos com a vizinha ao final da estadia, já que seguiríamos por outros rumos.
O lugar é uma pequena vila de pescadores. Uma gente simples e hospitaleira, que ali permaneceu resistindo às mudanças impostas pela natureza. As características geográficas mudam conforme a ação das marés, dos ventos, das dunas e do clima, como um todo. A Pancada, a praia de lá, é simplesmente estupenda, e o que é melhor: deserta. Nela é raríssima a presença de turistas e a cultura, diferenciada.
Para os moradores, a praia possui outro significado, diferente do que estamos acostumados: é sinônimo de trabalho e subsistência. As pessoas até estranhavam quando passávamos horas curtindo a praia. Tudo isso sem contar a riqueza da fauna e flora com revoadas de centenas de guarás nas florestas de mangue que completam o cenário da ilha.
Verde-amarelo em qualquer lugar – Passamos a final da Copa do Mundo neste lugar. Uma experiência cultural pitoresca. Já no início da viagem, estranhamos a quantidade enorme de óleo diesel que estava sendo transportada no barquinho já abarrotado. O motivo: fazer o motor, o gerador, funcionar mais do que usualmente afinal, o jogo é imperdível.
A comunidade, que não passa de 100 pessoas, se reuniu nas casas que gozam de uma televisão e assistiu compenetradamente a cada lance. Por fim, a festa não foi diferente do que qualquer parte do país: muita cerveja, dança e fogos.
Aproveitamos o restante do dia para explorarmos mais a ilha e resolvemos seguir pela praia. As marés do Maranhão apresentam as maiores oscilações do país, chegando a variações de seis metros e atingindo, às vezes, 400 metros de recuo nas praias. Tal fato proporciona mudanças fantásticas nas paisagens. Ondas cedem lugar a pequenas lagoas repletas de moluscos e siris, além de pequenos peixes que só se verão livres na próxima maré cheia.
As marés – Rios e igarapés secam completamente. Atravessamos um desses rios secos, preocupados com seu enchimento, pois a maré estava forte, o rio era largo, e poderíamos ficar isolados, – ou até mesmo sermos arrastados na volta, pelas cheias. A vontade de desbravarmos falou mais alto.
Cruzamos o rio, superamos um verdadeiro viveiro de caranguejos com lama até a cintura e seguimos em frente, até encontrarmos três nativas no meio do nada. Elas eram tão singelas e pareciam perdidas em meio ao paraíso. Nos perguntaram se o Brasil havia ganhado a Copa. Respondemos que sim e pedimos um copo dágua, pois nossos cantis haviam secado há tempos. Não nos negaram, todavia confessaram que para conseguí-la tinham que caminhar seis quilômetros.
A água era bastante amarelada. Toda a água consumida para tudo provém de poços que nem sempre estão posicionados da maneira mais correta, muitas vezes o banheiro, um pequeno cercado de madeira com um buraco no chão, fica próximo a esses poços.
Agradecemos e retornamos acompanhados por um sublime pôr do sol.
Partimos da Ilha de São Pedro e de Carutapera com um sentimento de perda. Apesar do pouco tempo que permanecemos, acabamos nos envolvendo afetivamente com as pessoas, a rotina tão diferente de nossa em São Paulo e, principalmente, com aquele ritmo tão tranqüilo.
Resolvemos partir pelo litoral, pelo mangue, apesar de não haver indicação de alguns caminhos no mapa e de previamente sabermos que seria complicado. Como vinha sendo até então, cair na estrada sempre era uma nova aventura. Ainda mais na nossa condição: dependendo dos paus-de-arara, das lotações e dos pescadores e, fundamentalmente, da maré para seguirmos. Pretendíamos chegar à Ilha dos Lençóis em um dia. O trecho acabou durando três dias…
Antes que você confunda, antecipamos que esta ilha não está inserida no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Ela se localiza no extremo norte do arquipélago de Maiaú, à Latitude 44º54 S, Longitude 1º18 W e cinco metros de altitude – região das Reentrâncias Maranhenses.
Pegamos uma lotação até Godofredo Viana. Em seguida, para Cândido Mendes, de onde pegamos um barco e seguimos para um lugar chamado Barão de Tromahy – serpenteando os igarapés e sacos da região. Neste lugar passamos umas das mais longas noites de nossa viagem.
Uma noite e tanto – Disseram-nos que haveria um barco para o próximo lugarejo às 23h, em função da maré. Mas o tal barco não chegava. Àquela altura já haviam se juntado a nós um casal de cantores evangélicos, um senhor ouvindo seu “brega” no último volume, um bêbado e a simpática companhia de um jegue que berrava de hora em hora.
A noite não parecia ter fim e, quando finalmente pudemos nos encasular em nossas redes dentro dos mosquiteiros, aparece um barco transferindo um par de presos sabe-se lá para onde.
Pela manhã conseguimos seguir nosso penoso trajeto, passando por lugares chamados de Pau Santo, Portugal e São Paulo, chegando a um lugarejo chamado Apicum-açu. Isso depois de andarmos cerca de 15 quilômetros a pé, pois não havia outro meio de locomoção a não ser uma caminhonete D-20 que fazia o trajeto uma vez ao dia. Não valia a pena esperar durante horas.
Ao chegarmos ao local, logo nos informamos sobre possíveis embarcações que nos levassem até a Ilha dos Lençóis. E todas as respostas eram negativas. Parecia quase impossível conseguir carona naquele dia. Até que, por sorte, um garoto avistou um barco da Ilha e nos avisou. Eram pescadores que conseguiram lotar a embarcação de pescado e vieram ao porto para vender a produção.
Lenda de Dom Sebastião – Conseguimos uma carona e tanto, com direito a um robalo cozido com legumes e o início de uma experiência de vida marcante. Os três pescadores eram nativos da ilha e no início da viagem já nos passaram um pouquinho da cultura e das lendas de seu povo.
O lugar já concentrou a maior colônia albina do mundo, com incidência de 3% na população, quando a média é de 0,0005%. Durante a longa viagem, nos contaram que a Ilha é a morada do El Rei Dom Sebastião – que habita em seu castelo sob as dunas e que quando tal castelo submergir, toda São Luis se destruirá.
Além disso, nos alertaram sobre as cautelas necessárias em relação a tudo que pertencesse à ilha. Se estragássemos ou trouxéssemos qualquer coisa de lá, poderíamos sofrer com a fúria do Rei. Ele nos castigaria de alguma forma – seja com doenças, com os barcos ou qualquer outro contratempo prejudicial.
Espantosamente linda – Depois de navegar por cerca de seis ou sete horas, avistamos ao longe uma morraria branquinha fugindo de um verde imenso. Era ela: a tão almejada Ilha dos Lençóis. Local espantosamente lindo, que cultiva em seu povo a simplicidade e o aconchego de um verdadeiro paraíso tropical.
Ela é formada por restingas, dunas de até 50 metros de altura, lagoas cristalinas e manguezais. Isso sem contar os coqueiros imensos, os quais nos serviam com muita água todas as manhãs. As casas, mais ou menos 100, são construídas com tábuas, palha de babaçu e madeira em geral, muitas vezes proveniente do mangue, além de outros materiais encontrados na natureza.
O sebastianismo, a crença e cultura influenciada pela tradição portuguesa é muito forte. Todos esses aspectos e fatores somados, transformam a Ilha dos Lençóis em um lugar verdadeiramente mágico, no qual tivemos o privilégio de poder ter ficado alguns dias.
O único e enorme problema é o fato da vila ainda não estar preparada para receber um número maior de ecoturistas, pois a infra-estrutura é muito precária e, mais do que isso: a comunidade ainda não está preparada para recebê-los.
Esta foi o relato de apenas parte da nossa viagem pelo litoral do Maranhão. Em breve, contaremos como foi a conclusão desta experiência única e os “paraísos” maranhenses e também do Piauí que ainda estão para ser conhecidos. Até lá!
Este texto foi escrito por: Fabian Kuerten e Marina Minari
Last modified: novembro 29, 2002