Pingüim em Punta Tombo / Argentina (foto: Fabio Zander)
Nesta coluna, Fabio Zander explica um pouco mais sobre sua paixão pelo cicloturismo e dá como exemplo a viagem de bicicleta sozinho na Cordilheira dos Andes. Confira.
O cicloturismo não é praticado nem por super-heróis nem por malucos e é essa imagem que ainda carece mudança em nosso país; uma viagem de bicicleta envolve baixos custos e qualidade de vida, pois qualquer pessoa pode praticar, bastando organização, planejamento e conhecimento de seus limites.
Além do contato com a natureza, uma viagem de bicicleta cria empatia com os habitantes das regiões percorridas e, de certa forma, estas pessoas acabam sendo peças importantes durante a cicloviagem, pois acrescentam conhecimento e experiências. Também posso dizer que a velocidade da bicicleta é ideal para não se perder os detalhes da região que se está percorrendo.
Com esse espírito foi realizado o Desafio nos Andes, entre 1998 e 1999; uma das minhas mais marcantes viagens utilizando a bicicleta como meio de transporte. Além, claro, de curtir a pedalada em si, gostei do que ela me acrescentou de experiência.
O ano é 1999, a noite fria está estrelada e o silêncio é apenas quebrado por uma rajada de vento que passa sobre nós três deitados e quietos na areia da estepe. Um dos céus mais estrelados que já vi fez com que passar por ali valesse muito a pena. A estepe patagônica é linda e difícil.
Seis meses antes desse céu estrelado, Cezar Cattani, Mauricio Estevez e eu nos juntávamos para tornar real o nosso sonho que chamamos de “Desafio nos Andes”; o objetivo era pedalar do Oceano Pacífico ao Atlântico, saindo do Chile com destino à Argentina, atravessando a Cordilheira dos Andes e a Patagônia. Diria que o maior desafio aconteceu para nós antes mesmo da viagem, com a procura de equipamentos, vôos e parcerias, mas tudo foi preparado a tempo de partirmos para a nossa então maior cicloviagem.
Decidimos dividir a travessia em três etapas: a primeira seria de Puerto Montt, no Chile, até San Carlos de Bariloche, na Argentina; a segunda etapa, de Bariloche até Rawson, na costa atlântica próxima a Península Valdés, e, por fim, a última etapa, que teria como objetivo conhecer a famosa Península Valdés e Punta Tombo, onde vivem milhares de pinguins-magalhânicos.
O ponto de partida foi Puerto Montt, bem ao sul do Chile, onde montamos as nossas bicicletas. Entre equipamentos e alimentos, o peso total do conjunto era de 40 quilos. As primeiras pedaladas foram de adaptação com as bicicletas, nosso meio de transporte durante os próximos dias e semanas.
No início pedalamos por uma região com lindas paisagens e vista para a Cordilheira dos Andes e seus picos de neve eterna. Passamos por Puerto Varas, cujas casas lembram bastante o estilo de Campos de Jordão. A estrada beira o Lago Llanquihue e ao longe se avista o vulcão Osorno com uma cortina de gelo causada pelo forte vento em seu topo de 2.652 metros de altura.
Chegando em Petrohue, somos recepcionados por um bando de doloridas mutucas “canibais” que nos irritaram bastante e nos acompanharam até Bariloche. A partir deste trecho da pedalada começamos a nos sentir em outro país, pois o início ainda nos lembrava bastante o Brasil.
Em Petrohue atravessamos o Lago Todos los Santos num pequeno barco, com destino a isolada Peulla. Diria que esta vila é uma das mais bonitas de toda a viagem, tendo um hotel, pelo menos uma dúzia de casas e um pequeno porto, perdido nos Andes. Lá fica também a aduana para a saída do Chile e entrada na Argentina. Acampamos no quintal da casa do guarda florestal de Peulla.
Na verdade, quando se passa pela pequena aduana em Peulla, entra-se praticamente em um território neutro pois a aduana para a autorização de entrada na Argentina fica a aproximadamente 20 quilômetros de Peulla. Este foi um dos trechos mais lindos e difíceis nos Andes são quase 800 metros de pura subida por precárias estradas de terra. Ao subir a cordilheira encontramos um cicloturista brasileiro e um alemão que desciam para Peulla e com os quais conversamos bastante; só ficamos decepcionados por não termos avistados os grandes e imponentes condores andinos.
Atravessamos ainda de balsa o Lago Frias e o grande Lago Nahuel Huapi, chegando em Llao Llao, que é o ponto final da travessia pelos lagos, de onde pedalamos até Bariloche.
San Carlos de Bariloche, uma cidade totalmente voltada ao turismo, também é conhecida como “Brasiloche” por ter sempre muitos brasileiros passando as férias. Instalados em uma pousada, após vários dias sem banho e de camping selvagem, nos preparamos para a próxima etapa.
De volta ao pedal, o objetivo agora é chegar em Rawson, no sul da Argentina, atravessando uma Patagônia plana, de estepes áridas e secas. A partir deste trecho o sol nos castigou bastante, mas acabamos nos acostumando com a idéia de que passaríamos os próximos dias sem sombra alguma nessa planície.
É bem visível a transição entre a região dos Andes e a estepe patagônica, os grandes bosques são substituídos pela vegetação rasteira e o movimento de carros cai significamente, sendo possível contar nos dedos de uma mão a quantidade de carros que passam por nós durante o dia. Isolados, é como nos sentimos.
De Esquel até Tecka sofremos bastante com os ventos fortes que varrem a planície e nos desgastaram fisicamente. A partir de Tecka a vegetação é constituída de pequenos arbustos e capins; guanacos, ovelhas, lebres, gaviões e raposas (zorros colorados) podem ser observados ao longe, durante a pedalada.
Existiam momentos em que nós três pedalávamos em silêncio, com uma pequena distância entre cada um. Sinal de que estávamos pensando em nossas vidas, conhecendo-nos mesmo. Mesmo assim, o trabalho em equipe funcionava entre nós: o Mauricio e o Cattani montavam e desmontavam a barraca enquanto eu preparava as refeições e havia um revezamento para a lavagem das louças.
Estocamos bastante água e comida, para esta etapa de vários dias na estepe. Os banhos nas noites sempre frias eram tomados da seguinte forma: jogávamos o sabonete do outro lado do Rio Chubut e éramos obrigados a entrar na água para recolhê-lo e, assim, aproveitar o gelado e raro banho. Foi justamente nesta etapa, às margens do Rio Chubut, que avistamos o céu estrelado.
Pampa de Agnia, Paso de los Índios, Los Altares, Las Plumas, Dolavon e Gaiman foram as vilas bases para reabastecimento durante a travessia da isolada estepe patagônica. Chegamos em Trelew, uma cidade bastante movimentada, onde descansamos por alguns dias numa pousada. Decidimos nos mudar para um camping em Playa Unión, que fica em Rawson, e que foi a base para os nossos passeios até a Península Valdés e Punta Tombo.
Punta Tombo é uma região com bastante diversidade de aves marinhas e costeiras e onde se encontra a maior colônia continental de pinguins-magalhânicos. Avistamos milhares de pingüins. Seus filhotes, que são barulhentos e muito curiosos, vivem em buracos que são seus ninhos.
O caminho é demarcado para os turistas, mas são facilmente transpostos pelos pinguins, que não se incomodam com nossa presença, pois são eles que reinam na região, somos nós os invasores em seu ambiente.
Já a grande Península Valdés é rodeada pelo Oceano Atlântico, o Golfo San José e o Golfo Nuevo, estes dois últimos sendo o habitat de muitas baleias francas austrais. Pena que não era a época certa para avistá-las.
Dentro da península, espalhados pela planície e pelas estradas de terra, existem vários salares e depressões. A principal cidade da região é Puerto Piramidés, que fica ao sul e é parada obrigatória para os turistas, sendo um ponto para descanso e alimentação. Sua praia tem uma vista maravilhosa para o mar do Golfo Nuevo.
Próximo à cidade de Puerto Piramidés existe uma loberia e lá assistimos ao parto de lobos-marinhos (focas-de-pêlos), nos quais os filhotes caem na água e tentam subir de volta ao platô sem a ajuda dos pais. Apenas alguns filhotes após muita luta contra as ondas sobrevivem.
Ainda ao norte da península Valdés, em Caleta Valdés, vimos uma elefanteria, na qual muitos elefantes-marinhos de quase 3 metros de comprimento estavam tomando banho de sol numa praia reservada apenas para eles.
Enfim, conseguimos. Foram 25 dias de pura realidade e 1.200 quilômetros pedalados no verão chileno e argentino dando-me a certeza de estar no rumo certo para outras viagens cicloturísticas.
Este texto foi escrito por: Fabio Zander