Bito na palestra do CAP (foto: Filippo Croso)
Na quarta feira, dia 05 de março, O CAP (Clube Alpino Paulista) recebeu Bito Meyer, que fez uma palestra sobre sua trajetória de 40 anos de escalada (ele tem hoje 50 anos de idade).
Pude presenciar uma das palestras mais envolventes que já estive, com histórias de vida, espírito de comunhão com a natureza e a montanha, e o grande desconhecido interior.
A foto de um movimento de escalada podia passar rápido, mas a foto do Bito com seus 20 anos de idade, viajando em cima (do lado de fora) do trem da morte na Bolívia, permaneceu um tempo, enquanto ele relatava aquele estado de espírito de buscar o “lado de fora”, de descobrimento e criatividade, que é tão característico de quem escala.
Apaixonado pela escalada solo, Bito é o exemplo de uma pessoa que vive e pratica a sua filosofia de vida, com simplicidade e coração, espiritualidade e desprendimento, e em plena atividade (conquistou recentemente a via Cria Cuervos D6 7º E5, 1200m, na Pedra Riscada, e solou pela segunda vez a via Leste no Pico Maior de Friburgo, vinte anos depois da primeira, no final de 2007).
Acompanhe a entrevista exclusiva com o montanhista:
Webventure – Como foi seu primeiro contato com a escalada?
Bito Meyer – Eu tinha 10 anos e foi no Pico do Marumby (PR) e foi uma experiência marcante, literalmente uma “aventura”, que mexeu com minha cabeça na época.
Que tipo de escalada você mais gosta de fazer?
A que me leva a um cume e que exige de todo o meu ser e não só de meus músculos e meus equipamentos, que seja uma relação e um diálogo com a montanha e com todo o seu universo.
De que forma a escalada e o montanhismo contribuíram na sua vida e em sua formação como pessoa?
Na realidade a montanha contribuiu comigo na qualidade de “aprendiz de vida”, me fez perceber o grande playground em que nascemos e onde o homem errou na sua trajetória em cima deste planeta e principalmente que vida e morte vêm embrulhadas juntas e no mesmo pacotinho.
Pegando 20 ou 25 anos atrás e os dias de hoje… o que mudou na escalada, e o que continua o mesmo, tanto em você como no meio montanhista?
Acho que podemos até pegar ainda mais atrás… para o montanhismo, a escalada sempre será uma das técnicas a ser usadas para se chegar ao cume de uma montanha e acompanhará a evolução da escalada em si, pois escalar bem e rápido sempre será uma forma de se manter seguro em uma montanha. A escalada em si é igual como antes, sendo que atualmente o grau subiu, o equipamento evoluiu e talvez o que tenha mudado é que o escalador moderno escale sem camisa para mostrar seu maior legado que são seus belos músculos e também ao fato de que hoje em dia tem várias “minas” escalando. E quanto a mim, sou cada vez mais apaixonado pela oportunidade de descobrir o lado de fora.
O que é escalar bem para você?
É quando você consegue ser uma manifestação da arte, é quando não existe o eu, o ego, o vir a ser, e sim só a manifestação da arte.
Como a idade influencia na escalada? Muitas pessoas sentem a limitação física e se tornam mais conservadoras, também porque constituem família, etc. Como escalar bem, do ponto de vista físico e psicológico, acima dos 50?
Essa é uma pergunta muito complexa e eu não saberia respondê-la em poucas palavras, porque envolve a fragilidade humana na sua essência e teríamos que saber até onde o risco influenciaria a prática de uma arte, e até onde a idade é um fator essencial para a perfeição. Eu não enfrentaria um velho que há 50 anos exercita e pratica artes marciais e por outro lado dificilmente um homem sábio que conheceu o amor e que possui uma família se arriscaria a ponto de faltar para ela, pois “ela” é o essencial.
Como você se relaciona com a nova geração?
Sinceramente… não conheço ninguém que tenha começado a escalar antes de mim que ainda esteja escalando e no mesmo nível que eu e com o mesmo tempo. Este detalhe me torna o sul-americano mais velho em atividade e em anos “na ponta da corda”, acho que são as novas e constantes gerações que foram passando na minha frente que poderiam responder essa pergunta. Eu particularmente sigo em frente, minha relação é com as montanhas. Por outro lado, as novas gerações serão sempre bem vindas pois é a arte quem os escolhe para através deles se manifestar, uns ficam por algum tempo, outros para sempre.
Qual a sua rotina de treinos? Como você se prepara antes de uma escalada?
Tenho o corpo malhado e cozido pelos anos de tanto ralar por aí, é tanto tempo dependurado que já tenho um pré “malho” estabelecido, por outro lado tenho o apoio da Casa de Pedra que me possibilita um acesso ao que de mais moderno existe para treinos de escalada no Brasil e tenho o acompanhamento de Karina Filgueiras, que é minha treinadora física, e prático biomecânica funcional, além do que sou bem-vindo pelas montanhas, total, sou uma “cria” delas…
Quais foram suas escaladas mais marcantes? Descreva algum, ou alguns momentos especiais que você passou.
Foram tantos, e todos na sua maioria foram marcantes, chegar ao cume das montanhas da Patagônia, ou minha primeira montanha, meu primeiro cume, meus primeiros 6º e 7º graus foram alucinantes, meus primeiros e último solo, meu primeiro tênis de escalada de verdade há 30 anos atrás, minhas primeiras conquistas e derrotas, minhas primeiras escaladas no Itatiaia e Rio de Janeiro, em 1977, e Agulha do Diabo neste mesmo ano. Putz…, Baú, Ilimani, Morro do Anhangava, Floripa, El Capitan… Interminável!
E alguma tristeza, alguma escalada que teve que abandonar?
Nossa… Só de lembrar já fiquei triste. É não poder mais mandar (sem ser em top rope, devido ao problema que tenho no joelho) o Midnight Lightning (o mais famoso boulder da história, localizado no Camp 4 -Yosemite).
Qual o seu local favorito no Brasil? Por quê?
Não tenho o local preferido, no Brasil ou em outro país. Meu lugar preferido é o do “lado de fora”.
Você teve um acidente sério durante um vôo de parapente. Quando foi e o que aconteceu? Como isso repercutiu na sua escalada?
Logo que chegaram ao Brasil os parapentes, saltávamos dos picos sem pára-quedas de socorro ou outro tipo de acessório de segurança. E em um desses vôos, um vento atrapalhou meu pouso e quebrei a perna e por dois anos atrapalhou minha escalada em tudo… hoje com o joelho rígido mando o grau que eu quiser e minha escalada é admirável.
A via mais recente que você abriu é a Cria Cuervos (D6 7º E5, 1200m), na Pedra Riscada. Conte-nos um pouco desta experiência, os aprendizados, as melhores lembranças.
Esta via é punk… Largos cheios, sem nenhum grampo, mil e tantos metros acima de qualquer conforto, lá na casa do chapéu (1400 km de Curitiba), cinco viagens para concluir a via, muito e muito esforço, cargas de água, comida, diversão e ferramentas, carrapatos, sol a pino, geadas e tormentas, muita responsabilidade, maturidade e insanidade, grana, tempo, suor e sangue…Yeah!… Perfeito.
Que lugar ainda não foi e gostaria ir?
São tantos, que faço de onde estou o melhor lugar e dos primeiros passos do dia, minha melhor caminhada.
Onde e quando é a sua próxima escalada?
Minhas escaladas não vem do desejo ou da manifestação do ego ou do querer, são frutos de uma fonte seca, eu simplesmente sento e espero… uma hora verte. No momento a fonte está seca.
Melhor livro e filme de montanha que já viu…
Bom, em particular eu recomendo a todo montanhista que quer ter alguma referência mais significativa, que conheça o pensamento de Reinhold Messner, mas o melhor livro sobre montanhismo que li foi “Os Conquistadores do Inútil”, de Lionel Terray. Ali está a essência de algo muito delicado que é a imensidão humana. E o filme foi “Extremo Sul”, pela capacidade dos diretores em recuperar o que estava perdido, por mostrar a maneira de como não se escolher os companheiros e de como não praticar montanhismo, e também e o mais importante, do poder de uma montanha sobre exércitos e homens.
Você nunca esteve muito presente na mídia. Até na comunidade escaladora me parece que você nunca estava no centro das atenções, mesmo tendo realizado várias ascensões significativas. A que se deve esse fato, ou essa escolha?
Quando eu era um garoto eu já descobrira a “marcialidade” e a espiritualidade que existe na relação do homem com a escalada e com as montanhas. Daí então, minha relação tornou-se direta com a “Arte” e suas “manifestações”. Eu queria para mim o que estava contido naquele frasco. As pessoas que estão em evidência ou precisam de atenção, tem algum problema ou estão vendendo algo e não é meu caso. As pessoas interessantes do montanhismo, geralmente não estão na mídia, estão em casa com suas coisas e os seus.
Existem escaladas praticamente risco zero e escaladas de risco elevado, por mais que se esteja preparado. O que o risco representa para você?
O risco é um ótimo tempero para quem quer amadurecer, se conhecer e evoluir. Nos expondo, nos revelamos… nos descobrimos… Quando dois samurais se defrontam, é o conhecimento que saca e maneja a espada.
O montanhismo brasileiro está evoluindo? Quais os pontos positivos, e o que você sente que falta?
O Montanhismo é o nome da “influência” que as Montanhas exercem sobre os homens, portanto, sempre será atual, já o “Montanhista Brasileiro” esse ainda é bastante ingênuo.
Quais os seus projetos futuros?
A vida é um “Vôo de Catapulta” (nome de minha nova via), eu ainda me sinto mais propulsado, do que sinto empuxo. Estou topando todas, injeção embaixo da pálpebra e “passagem só de ida pro lugar errado”. Há muita coisa a ser feita, muitos convites e oportunidades, tem que pular no rio para conhecer seu trajeto, estou no meio de um grande rio.
Alguma mensagem que gostaria de deixar?
Tudo a seu tempo… apesar de toda a violência, a vida é uma grande dádiva, é uma oportunidade única, e a escalada e o montanhismo nos ajudam na nossa trajetória sobre este planeta… Obrigado.
Este texto foi escrito por: Filippo Croso