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Entrevista com Silverio Nery, presidente da FEMESP e da CBME

Redação Webventure/ Montanhismo

Encontro do Adote uma Montanha em Bragança Paulista (SP) (foto: Cristina Degani/ www.webventure.com.br)
Encontro do Adote uma Montanha em Bragança Paulista (SP) (foto: Cristina Degani/ www.webventure.com.br)

Silverio Nery, presidente da CBME (Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada) e da FEMESP (Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo) faz uma retrospectiva da escalada e do montanhismo no Brasil em 2006. Em entrevista ao Webventure ele falou sobre os principais acontecimentos do ano, os avanços do esporte e sobre diversas questões que envolvem a atividade atualmente.

Webventure – Fazendo uma retrospectiva de 2006, como foi este ano para a escalada e o montanhismo brasileiro? Avançamos em relação aos anos anteriores? Quais foram os acontecimentos que mais marcaram?

Silverio – Na escalada esportiva tivemos a excelente participação da Janine Cardoso e do André Berezoski em algumas etapas do Mundial na Europa e pela primeira vez tivemos um atleta brasileiro, no caso uma atleta – a Janine – entre as 20 primeiras do mundo. Aqui no Brasil continuamos com os campeonatos regionais e o brasileiro a todo vapor. Os destaques do ano, alem da Janine e do André, vão para Felipinho [Felipe Camargo] e para o Cesinha [César Augusto Grosso], que tiveram participações brilhantes. Em São Paulo tivemos em outubro um grande evento no Parque da Juventude, o II SP Open de Boulder e pela primeira vez desde que estou na diretoria da Federação, conseguimos atrair canais abertos de televisão de forma espontânea, incluindo a Rede Globo.
Politicamente foi um ano importante, tivemos algumas coisas boas e outras não tão boas. A CBME obteve o reconhecimento formal do Ministério do Esporte e passamos a integrar a Comissão dos Esportes de Aventura, o que em tese abre muitas portas para o montanhismo e a escalada nos órgãos públicos. Ao mesmo tempo, graças a freqüente presença negativa desses esportes na mídia – pois é sempre mais fácil conseguir espaço para acidentes e fatalidades do que para as boas notícias – apareceram diversas iniciativas de regulamentação das nossas atividades. A maioria delas foi de projetos de lei estaduais e municipais elaborados por pessoas com total desconhecimento da atividade, o que nos obrigou a um pesado trabalho de bastidores para evitar o mal maior de ter o montanhismo brasileiro regulamentado por normas esdrúxulas e/ou inexeqüíveis.
No front ambiental tivemos um significativo avanço junto ao IBAMA, graças à presença das Federações do RJ e de SP nos conselhos consultivos dos Parques Nacionais do Itatiaia e da Serra dos Órgãos. Apesar do problema recentemente verificado em Itatiaia, em que o IBAMA autorizou a realização de uma corrida de aventura no interior do Parque passando por trilhas proibidas para pequenos grupos de montanhistas há mais de dez anos, não há como negar que tivemos algum avanço.
No caso da FEMESP também avançamos bastante na questão da formação de Montanhistas através da edição de uma Norma para homologação de cursos e registro dos formandos. A partir de 2007 os clubes filiados à FEMESP adotarão definitivamente essa Norma e teremos condições de garantir um currículo mínimo para todos os nossos associados. Nesse aspecto é interessante frisar também o importante papel que vem sendo desempenhado pela AGUIPERJ, que além da sistemática de formação de guias profissionais de escalada, passou a oferecer cursos para condutores de visitantes, começando com um elogiado curso para os condutores locais no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, estabelecendo um novo parâmetro de qualidade nessa área.
Importante também destacar que em 2006 a CBME se tornou membro oficial da UIAA, sendo assim automaticamente reconhecida pelo Sistema Nacional do Desporto como entidade máxima para administração da nossa modalidade esportiva no país.

Webventure – Recentemente o Felipinho voltou do Centrosulamericano de Escalada na Guatemala, e relatou que os atletas de todos os países que competiram, exceto Brasil e Costa Rica, tiveram a viagem e despesas pagas pelas federações de seus países. A Venezuela, com 12 atletas, um delegado e um treinador; o Chile, com nove competidores e dois acompanhantes, e o Equador, com oito atletas e um acompanhante. Porque o Brasil não consegue dar esse suporte aos nossos atletas, visto que esses países, assim como o Brasil, também não têm uma grande tradição no esporte, como os países europeus?

Silverio – Não existe apoio oficial nem privado no nível necessário para isso. Desde que comecei a dirigir a Federação paulista e a CBME venho batendo na porta de órgãos públicos e patrocinadores privados e posso garantir que é extremamente difícil conseguir esse tipo de apoio. Somos bastante deficitários e as contribuições dos associados mal chegam para pagar despesas operacionais simples, como contabilidade, por exemplo. Temos conseguido apoio do Governo do Estado, em São Paulo, mas apenas para eventos esportivos como o SP Open, o Campeonato Paulista e a final do Brasileiro. Mas essa verba é “carimbada” e deve ser obrigatoriamente usada nesses eventos.
Eu discordo da visão de que os demais paises da América do Sul não possuem tradição em escalada. Graças à Cordilheira dos Andes, esses paises são visitados por montanhistas estrangeiros – principalmente europeus – desde o século XIX e isso acabou criando uma tradição de montanhismo clássico e alta montanha que não temos por aqui. Para se ter uma idéia, na Venezuela e na Bolívia as Federações Nacionais de Montanhismo são praticamente órgãos públicos, seus diretores recebem salários diretamente do governo. No Peru existe uma escola nacional de Guias de Montanha reconhecida pelo Ministério da Educação. Infelizmente ainda estamos longe disso.

Webventure – Um dos pontos que a Confederação tem batalhado é referente ao seguro de acidentes para montanhistas. Para emitir uma autorização de escalada, em muitos lugares no mundo, os governos, ou os parques, exigem que o escalador apresente um seguro de acidentes. No momento não temos como apresentar esse seguro, e portanto corremos o risco de sermos barrados de escalar em certos locais. Como está indo esse trabalho?

Silverio – Já fizemos duas tentativas com seguradoras diferentes sem sucesso. Mesmo mencionando o exemplo europeu e procurando estabelecer alguma coisa análoga por aqui, até agora não obtivemos sucesso. Os analistas brasileiros desconhecem a atividade e simplesmente não conseguem avaliar objetivamente os riscos envolvidos, condição sine qua non para estabelecimento de uma apólice. Neste momento estamos conversando com uma terceira corretora e parece que dessa vez conseguiremos pelo menos uma cotação.
A idéia seria estabelecer uma apólice coletiva para associados da CBME que passaram no mínimo por um curso básico ou de iniciação ao Montanhismo. Como você mesmo indica, este seguro seria um grande diferencial para os associados, facilitando o acesso às áreas de escalada. Para nós seria também uma forma de aumentar o interesse por nossos cursos, melhorando cada vez mais a formação dos Montanhistas de modo geral.

Webventure – No fim do ano, com a polêmica instalada após a corrida de aventura Ecomotion, mais uma vez veio à tona o sentimento negativo que montanhistas de forma geral sentem em relação à essas provas. Qual é a raíz desse sentimento? É apenas a questão do impacto ambiental, ou envolve algo a mais, ligado à natureza da prova e aos locais em que passa, muitas vezes montanhas? Existe um ponto de convergência entre Corridas de Aventura e Montanhismo, algum entendimento possível, ou são atividades tão díspares que jamais entrarão em consenso?

Silverio – O problema de fundo vem das diferenças de visão e de expectativas em relação ao ambiente de montanha. A maior parte dos montanhistas escolheu essa atividade justamente pelo prazer do isolamento e da contemplação das belezas naturais associado a uma atividade que pode ser fisicamente exigente ao extremo e que, ainda assim, não implica em competição no sentido esportivo tradicional. Esse espírito é incompatível com a imagem propagada e com as situações vivenciadas pelos praticantes de corridas de aventura.
Também não há como evitar a sensação de invasão em áreas antes tão bucólicas e ambientalmente equilibradas por uma nova gama de freqüentadores que desconheciam a situação anterior de equilíbrio e podem achar que o ambiente de montanha sempre foi do jeito que se apresenta durante a corrida: uma sucessão de obstáculos vertiginosos que se deve vencer a todo custo sem muito tempo para apreciar o que está no entorno, pequenos vilarejos lotados por veículos 4×4 das equipes de apoio, presença constante da mídia, helicópteros, etc.
Justamente por ser uma atividade relativamente nova nas montanhas, nunca houve uma avaliação mais criteriosa dos impactos ambientais causados pelas corridas de aventura. O potencial de impacto, no entanto, é inegável, dada a quantidade de pessoas e veículos envolvidos. Também parece que não houve tempo para que a atividade se organizasse a ponto de estabelecer códigos de conduta, como aqueles defendidos e praticados pela maioria dos montanhistas.
Creio que a melhor alternativa seria buscar uma distribuição equilibrada dos espaços disponíveis. Considero, por exemplo, que a escolha dos locais por onde passa uma corrida de aventura deveria evitar áreas notadamente frágeis cuja atratividade se deve mais ao apelo de marketing do que ao aspecto esportivo. Também me parece fundamental que os organizadores, ao optar por áreas naturais preservadas para realização dos eventos, devessem obedecer aos mesmos princípios de ética e conduta que os demais freqüentadores, o que de fato muito raramente acontece.

Webventure – Como anda a questão da certificação de Guias de Montanha e Cursos de Escalada? A CBME já definiu normas e procedimentos? Também referente à essa questão, a ABETA (Associação Brasileira das Empresas de Turismo de Aventura) e o Ministério do Turismo, estão trabalhando no desenvolvimento de um conjunto de normas técnicas para diversas atividades ao ar livre, entre as quais está o Montanhismo. Isto está sendo feito com a consultoria ou apoio técnico da CBME? Você não acha que as normas de escalada e montanhismo (para certificar Guias e Cursos) deveriam ser elaboradas por quem mais entende do assunto, ou seja, os montanhistas, e não por empresários e profissionais do turismo?

Silverio – Como eu mencionei na primeira resposta, a FEMESP trabalhou este ano numa sistemática de formação de Montanhistas partindo da base, procurando padronizar e sistematizar um currículo mínimo que será seguido pelos clubes filiados. A meta é manter os registros de todas as turmas formadas pelos Clubes de maneira organizada e acessível para consulta. No Rio de Janeiro e no Paraná as Federações trabalham com um currículo mínimo para os chamados Cursos Básicos que já é oferecido há tempos pelos Clubes filiados. Na outra ponta, a dos Guias de Montanha profissionais, além da experiência dos Clubes que já mantinham cursos avançados para formar essa categoria bastante especializada, também temos a AGUIPERJ, filiada à FEMERJ, que trabalha na padronização desses currículos. Então eu diria que falta muito pouco para termos um padrão nacional de formação de montanhistas, baseado, onde aplicável, nos padrões da UIAA. Essa é uma meta importante e em 2007 eu acredito que esse assunto será definitivamente concluído.
Quanto ao assunto ABETA e Ministério do Turismo, nós entendemos que a CBME e/ou as Federações deveriam ter sido chamadas para conversar no início do processo, quando da definição do modelo de certificação. Para citar um exemplo contrário, neste final de ano participamos (CBME) das discussões e de reunião no Ministério do Esporte, na qualidade de membro da Comissão do Esporte de Aventura, nas quais foram estabelecidos os conceitos de “Esporte de Aventura” e “Esporte Radical”. Com isso o Montanhismo, a Escalada de Competição, o Skate, e as Corridas de Aventura, entre outros, passam a ser modalidades reconhecidas oficialmente pelos órgãos de governo, ou seja, passam a existir oficialmente, podendo, a partir daí, candidatar-se com muito mais respaldo a verbas de governo e a programas de incentivo ao esporte, como os previstos na Lei de Incentivo atualmente em discussão no congresso.
No caso do Ministério do Turismo, o modelo de certificação foi definido pelos empresários do setor com apoio irrestrito do Ministério e quando nós fomos consultados, só nos restava apoiar ou rejeitar o modelo. Também sem nossa participação o Ministério do Turismo elaborou uma definição formal de Turismo de Aventura, que inclui a prática do montanhismo amador tradicional, com o que obviamente não podemos concordar.
O problema é que esse modelo INMETRO/ABNT foi desenvolvido para a indústria e nós achamos que fica muito complicado e caro aplicá-lo para certificação de pessoas. O modelo tradicionalmente usado para formação de montanhistas no mundo inteiro segue a linha educacional, com a UIAA e as Federações nacionais cumprindo um papel semelhante ao dos Conselhos profissionais, como CREA e OAB, por exemplo. Esta é a linha que estamos seguindo. Infelizmente, como vários montanhistas também atuam no segmento do turismo e se envolveram desde o início como empresários no processo do MinTur, não existe consenso quanto a essa questão, o que é uma pena.
Uma coisa é certa: o montanhismo amador precisa continuar garantindo seu espaço e não pode, em nenhuma hipótese, ser confundido ou categorizado como Turismo de Aventura, conforme a definição do Ministério do Turismo.

Webventure – Quais as suas expectativas e receios para a escalada e o montanhismo brasileiro em 2007?

Silverio – Com a crescente exposição na mídia não especializada que estamos aos poucos conseguindo, acredito que em 2007 a escalada esportiva finalmente poderá se tornar auto-suficiente em termos de patrocínio.
Também estou certo de que o PAM Programa Adote uma Montanha, o projeto que espelha a vertente ambientalista dos Montanhistas e que esteve caminhando mais lentamente nos últimos meses, volte a seu momento mais agitado, com grande visibilidade. Precisamos profissionalizar esse Programa e para isso contamos com o comprometimento dos empresários do setor, na forma de patrocínios e parcerias.
Meu receio é não ter tempo para atender à enorme demanda de assuntos que vão surgindo. Fica cada vez mais difícil dar continuidade a esse trabalho em caráter exclusivamente voluntário. Como eu disse lá atrás, em paises como a Bolívia os diretores da Federação de Andinismo são pagos pelo governo para trabalhar. No Brasil precisamos encontrar uma fórmula que desate esse nó.

Webventure – Para finalizar, alguma mensagem para a comunidade escaladora?

Silverio – Eu agradeço imensamente ao reconhecimento que a comunidade demonstra pelo nosso trabalho. Onde quer que eu vá – este ano participei de reuniões e eventos pala FEMESP e CBME em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Brasília, Teresópolis e Itajubá, fora os encontros com a galera nos campeonatos e locais de escalada – os montanhistas cumprimentam e agradecem pelo trabalho das Federações e da CBME. Muito obrigado a todos pelo carinho e atenção com que sempre sou tratado.
Desejo a todos um feliz Natal e grandes caminhadas e escaladas para o ano de 2007! Um grande abraço a todos.

Este texto foi escrito por: Filippo Croso

Last modified: dezembro 18, 2006

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