Trilha de Independência para Berlim. (foto: Arquivo pessoal)
Para a primeira coluna no Webventure escolhi como tema escalada do Aconcágua (6.962 metros) pelo Glaciar dos Polacos, uma das escaladas mais impressionantes da minha vida, em especial por ter sido realizada em solo. A via não é tão difícil e técnica, mas apresenta seus riscos, e a escalada em solo, além de um desafio técnico, é um desafio psicológico. Em janeiro de 2003 vamos escalar novamente esta via para tentar filmar a rota e o cume desta montanha, que fascina e atrai montanhistas de todo o mundo.
O dia do cume
Às 3 da madrugada iniciei os preparativos. Ainda ventava lá fora. A sensação de acordar e se preparar para escalar um glaciar sozinho é única. É mais ou menos como os minutos que antecedem a largada de uma corrida, onde tudo está suspenso no ar. Ou aqueles minutos antes de receber a prova do vestibular, para o qual você se preparou por tanto tempo.
Comecei a vestir a roupa. Cada peça de roupa calculada, cada camada, passos feitos por mim tantas vezes e tão importantes. Vesti as botas duplas e saí da barraca, levando a mochila já preparada na noite anterior, contendo: água, um pouco de comida, máquina fotográfica e só, sem corda, sem cadeirinha, sem parafusos ou estacas.
Saí da barraca, vesti os cobre-luvas triguer, do Zé Fernando, sobre as luvas, surradas, wind stopper da Bd, passei o lash das piquetas no pulso e comecei a andar na escuridão da madrugada.
Tentava lembrar da trilha de aproximação do glaciar, que havia reconhecido no dia anterior. Decidi escalar pela via direta do Glaciar dos Polacos. Mais dura fisicamente, por ser mais vertical, mas mais segura, com um risco menor de gretas.
O crux da via – No dia anterior fiquei observando a parede. Uns caras passaram pelo Coello de Botella às 12h. Gostaria de passar por este lugar, que é considerado o crux da via, antes desse horário. Iria subir pelo lado direito evitando o que me parecia ser gelo verglassed.
Assim que comecei a caminhar encontrei um casal se preparando para sair. Fiquei contente. Será que eles iriam subir a direta? Não, eles iriam pela Falso Polacos. Esse encontro foi intenso para mim. Escaladores se preparando na madrugada para enfrentar seus limites. Nos despedimos como guerreiros que se saúdam antes de gritar e correr para o combate. (continua…)
Saí forte, com passos decididos, enfrentando o vento, que ainda estava forte. Subi, subi, subi. Quando o sol começou a nascer estava rolando um viento blanco. Nessa hora do dia o aquecimento da atmosfera produz deslocamentos de ar, que geram ventos temporários. Com a luz percebi que meu crampom esquerdo tinha se soltado e estava preso, na frente somente pela tirinha metálica. Estava usando BD Sabertooth.
Subi até uma pedra, sentei, tirei os cobre luvas, a mochila, peguei o canivete, tirei os crampons, perdi o trekking pole que estava levando (era meio pemba mesmo, achamos no El Salto/Vallecitos), parafusei o ajuste do crampon e recoloquei-o. Quando tentei vestir o cobre luvas, percebi ele estava cheio de neve do viento blanco. O sol já estava mais alto decidi escalar somente com as luvas wind stopper. Tirei uma foto. Mandei ver pra cima…
A neve estava meio fofa e em alguns lugares tinha que escolher bem a rota, procurando os melhores lugares para subir. Passei fácil pelo Coello de Botella e discordo que ali seja o crux da via. No final do Coello, encontrei um pé de crampon. Achei que os caras que subiram no dia anterior tinham perdido. Pensei: vou levar e entrego para eles hoje à noite.
“Roubada” – Mandei pau… este trecho sofri um pouco. A neve estava fofa e a progressão era penosa. Cheguei às chaminés de pedra e gelo. Uma opção era contornar o bloco de rocha inteiro pela esquerda ou encarar a chaminé sozinho. Mandei ver no primeiro lance da chaminé. Me perguntei: o que estou fazendo nessa roubada? Parei, bebi água, recolhi um cordim que alguma dupla havia deixado por lá para montar uma segurança na pedra inútil para mim, que estava em solo.
Tirei umas fotos, respirei fundo e escalei, escalei, e cheguei ofegante à cresta. Ufa, que tesão! Havia vencido o primeiro grande obstáculo, mas ainda não era momento para comemorações. Na caminhada pela cresta até o cume estavam as maiores gretas. Um guia australiano que encontrei no Hostel Campo Base em Mendoza me contou que caiu em uma e ficou entalado na boca da greta com a mochila. Cair em uma greta neste lugar representaria a morte.
Me concentrei e comecei a caminhar lentamente em direção ao cume. Testei a neve, pulei várias gretas pequenas e encontrei a gretona que ele descreveu, uns 200m antes do cume. Levei umas duas horas para chegar ao cume. Quando vi a cruz do cume caminhei de olhar fixo nela até chegar aos seus pés e cair de joelhos, com os olhos cheios de lágrimas. Lembrei de todos que me emprestaram os equipamentos e quis abraçar todos eles: Zé Fernando, Tomás Papp, Rodrigo. Muito obrigado, eu consegui!!!
Medição do Aconcágua – Lá no cume estava uma bagunça. Uns italianos tinham instalado um equipamento gigante para determinar a altura da montanha (veja na foto ao lado). Ao mesmo tempo, eles topografaram com teodolito desde a costa do Chile. Um trabalho animal.
Estava no cume ao meio dia. Na mesma hora que em os caras estavam passando no crux no dia anterior. Descendo pela Canaleta, cruzei o fluxo ascendente de hordas de escaladores. O vento estava forte. A via normal estava mais fria que a Polacos.
Desci rapidamente e encontrei o casal da madrugada no cotovelo da Canaleta. Eles estavam exaustos. Tentei animá-los e continuei descendo. De Independencia tomei a rota para o Campo2. Ou melhor, tentei pegar a rota. Desci bastante fora da trilha até encontrá-la. Quando estava chegando, vi que uns escaladores me esperavam. Eles me cumprimentaram pela rapidez e destreza. Eu já não era mais o mané da barraca de praia.
Até aqui descrevi o dia da chegada ao cume. É, na verdade, o ponto final de uma escalada teve muitos outros momentos importantes que eu conto nos links abaixo, na ordem em que aconteceram.
Em 2001, fomos (Rodrigo Raineri e eu) para o Aconcágua dirigindo a caminhonete F1000 do Rodrigo. O plano era o seguinte: escalar em Los Arenales; guiar os clientes; reconhecer a Parede Sul.
A escalada em Los Arenales foi uma preparação para a escalada em rocha. Los Arenales é um paraíso com agulhas de pedra, com um refúgio legal no meio de um vale maravilhoso. A escalada utiliza muita proteção em móvel; um treinamento perfeito para a Parede Sul animal.
O Rodrigo guiou o Paulo para o cume do Aconcágua e eu guiei o Décio para um trekking até Plaza de Mulas, que acabou se esticando até Nido de Condores. Acabado o trekking, eu deveria levar o Décio até o aeroporto e esperar o Rodrigo em Mendoza para a escalada da face sul.
Isso ainda levaria alguns dias. Pensei: levo o Décio até o aeroporto, volto, faço o Glaciar dos Polacos e desço para encontrar o Rodrigo em Mendoza. O Rodrigo teria feito cume pela normal para aclimatar e eu pelo Glaciar dos Polacos.
Decidi fazer exatamente isso e no dia seguinte voltei ao parque durante a noite, levando um mexicano como carona. Subimos voando baixo, com o som alto.
Dormimos na entrada do parque. Para quem conhece: na graminha do estacionamento, ao lado da casa dos guardaparques. No dia seguinte, cedinho arrumei tudo e mandei ver na trilha. Minutos antes de escurecer cheguei ao Hotel Refúgio Plaza de Mulas com minha mochila de 20 quilos nas costas.
Descansei um dia no hotel e no dia seguinte saí com o objetivo de chegar até Berlim. Ledo engano, muita pretensão!!! Quando estava em Camp Canadá começou a nevar e ventar. Fui até Cambio de Pendiente e montei minha barraca Salewa.
A barraca é um caso à parte (veja a foto). É uma barraca para duas pessoas, zero estações, ou seja, mais indicada para usar na praia, já que não suporta ventos. Era a única que eu tinha e não estava a fim de carregar uma VE25 como da primeira vez em que escalei o Aconcágua pela rota normal. Afinal eu ainda teria de escalar a Parede Sul; deveria me poupar. Naquela noite rezei para a barraca não sair voando e pensei em um esquema para reforçar sua ancoragem.
No Refúgio – Na manhã seguinte fui de Cambio até Berlim. Chegando cedo a Berlim, vi os refúgios menores vazios. Montei minha barraca, sem o teto, dentro do maior dos refúgios menores. Quando estava tranqüilo, me preparando para cozinhar chegaram uns caras malas. Na verdade, o mala era eu. Onde já se viu montar a barraca dentro do refúgio? Eu não estava afim de passar a noite, na barraca zero estações, fora do refúgio.
Depois de alguma conversa, montamos a barraca deles para mim, fora do refúgio. Acho que eles estavam com medo de ficar lá fora e para eles era um excelente negócio me tirar de dentro do refúgio. Dito e feito, montamos uma Artiach (tipo uma VE25) só para mim. Tesão, passei uma noite maravilhosa.
De Berlim, atravessei a montanha para a esquerda, num lugar sem trilhas, até chegar ao Camp 2 Polacos. Normalmente as pessoas chegam até este lugar subindo por Punta de Vacas vide a coluna da Helena Coelho. Cheguei bem cedo e comecei a montar a barraca em um lugar que me pareceu legal. Pouco depois, hordas de clientes começaram a chegar. Eles eram pouco comunicativos, acho que pensavam: coitado desse mané com uma barraca de praia.
Os alpinistas, na sua maioria, faziam parte de grupos de empresas do primeiro mundo e iriam tentar subir pela Falso Polacos. Fiquei bastante surpreso com a quantidade de gente. Tinha até um carregador nepalês. Imaginava que o Camp 2 fosse mais deserto.
Montei os reforços na barraca. Acho que foi o Thomas que me ensinou a fazer esses reforços. É até engraçado. Você faz um lacinho em uma corda, coloca uma pedrinha por debaixo da lona e laça a pedrinha com a lona por cima; mais ou menos como se fosse fazer uma trouxinha; sem deixar a pedrinha cair, estica a corda e prende no chão.
A noite foi fria. O lugar que eu tinha escolhido não era muito bom. Eu estava somente com um isolante; a água que descia do glaciar passava por debaixo da barraca aumentando a perda de calor. Resumindo, passei frio pra caramba. No dia seguinte, parti para o cume.
Aí vão algumas informações sobre as rotas, para poder entender o texto principal desta coluna. Além desta, o Webventure publicou uma coluna da Helena Coelho bem legal sobre as rotas do Aconcágua.
Como toda montanha, o Aconcágua tem várias faces, ou lados. Como R.J. Seccor fala: O Aconcágua é uma montanha paradoxal. A rota normal pela face noroeste é uma caminhada para cima e a Parede Sul é defendida por faixas de pedra solta, paredes de gelo e avalanches enormes. Enquanto este pico argentino é facilmente acessível pela estrada entre Mendoza e Santiago, a alta altitude e o clima severos criam desafios assustadores.
Polacos – A face do Glaciar dos Polacos pode ser uma via intermediária. Não é para os principiantes, mas também não apresenta desafios técnicos extremos. O grande desafio está nos últimos mil metros. Esta parte é escalada em gelo pelo glaciar homônimo até a aresta da montanha, de onde se caminha até o cume.
Achei a via dos Polacos mais tranqüila que a normal. Do Camp 2 se vê a grande parede a vencer no dia e isto tira um pouco da ansiedade. Seu obstáculo é visível. Enquanto, pela rota normal, a figura da canaleta assombra o imaginário das pessoas.
Pela rota normal, a seqüência dos lugares que se passa é: Puente Del Inca, pequena localidade na estrada; entrada do Parque Provincial; Confluência; Colômbia; Plaza de Mulas (4.270m), que é o acampamento base; Camp Canadá (4.910m); Cambio de Pendiente ou Camp Alasca (5.180m); Nido de Condores (5.350m); Berlim (5.780m); Independência (6.400m); Canaleta; e o cume (6.962m). A aproximação é realizada pelo Vale de Horcones superior.
O primeiro – A primeira escalada do Glaciar dos Polacos foi realizada em 8 de março de 1934 por Konstanty Narkievitcz-Jodko, Stefan Daszyinski, Wictor Ostrowiski e Stefan Osiecki. Estes escaladores vieram da região do Tatras, na Polônia, e realizaram a escalaram em estilo alpino, uma escalada à frente do seu tempo.
A aproximação tradicional para o Glaciar dos Polacos é realizada pelo Vale de Vacas. Existem duas passagens ou conexões entre a rota normal e a dos Polacos: a travessia em Nido de Condores e a travessia por Berlim. Quanto mais alto, se caminha menos. Assim, escolhi atravessar por Berlim até o Camp 2 Polacos, último acampamento pela rota dos Polacos, antes do ataque ao cume.
A travessia é realizada a uma altitude considerável, dos 5.700m aos 6.000m. A rota direta, também conhecida como Variante Argentina ou Variante de Tucuman, foi escalada pela primeira vez em 1961 por Orlando Bravo, Tato Bellomio e Dado Liebich, membros do clube andino de Tucuman. Em vez de escalar o lado esquerdo do glaciar essa rota sobe pelo lado direito. O ângulo varia de 45 a 50 graus em um pequeno pedaço a aproximadamente 6.500m e então decai dramaticamente até chegar na cresta, que leva ao cume.
Partes dos textos desta coluna são traduções, recortes e colagens do material destes livros. Sempre vou colocar a bibliografia utilizada. Não tenho a pretensão de concorrer à Academia Brasileira de Letras, mas de relatar de dividir minhas impressões sobre o mundo outdoor. Assim como os filmes do Banff não concorrem no festival de Cannes. Todas as sugestões serão bem vindas.
R. J. SECOR, Aconcagua A Climbing Guide, The Mountaineers, Seatle, 2ºed. 1999.
Este texto foi escrito por: Vitor Negrete
Last modified: dezembro 19, 2002