Subida ao Bonete com Aconcagua ao fundo (foto: André Dib/ www.andredib.com.br)
O vento gelado açoitava a pele, queimada pelo frio implacável. A nevasca já durava três dias. Os flocos de neve soprados pelo mau tempo, acumulavam-se rapidamente sobre as paredes de náilon da barraca. Estávamos no acampamento avançado a 5.900 metros de altitude, conhecido como Berlim, aguardando, com os nervos aflorados, o momento certo para o ataque final.
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Recebíamos notícias frequentes de pessoas com extremidades congeladas (mãos e pés) e alguns casos de edema na tentativa do cume. Passávamos a maior parte do dia na barraca, e no meu caso, só, à companhia da escritora chilena Isabel Allende. Dividíamos o tempo derretendo gelo para encher as garrafas térmicas, cozinhando, lendo e conversando com os amigos da barraca vizinha, quando breves estiagens permitiam.
No mais, éramos privados de sair, limitando-se a ver a barraca envergando com o peso da neve que se adensava no sobre-teto, ou a ouvir os estalos das varetas castigadas pela ação dos ventos que golpeava a pequena tenda impiedosamente. Nesses largos momentos de inércia e solidão, que traz o tédio insidioso e a saudade de casa, podemos tirar proveito com grandes momentos de introspecção. Acredito que um dos fatores determinantes ao sucesso da empreitada em uma montanha dessa magnitude, deve-se ao controle emocional, afinal, estávamos ali por escolha, envoltos àquela atmosfera insípida, incerta e exaustiva.
Por quê? Para que, se a força da natureza conspirava contra nós? Acredito que a incursão a um cenário hostil, e ao mesmo tempo extravagante e belo, como o topo de uma montanha nos faz sentir que o vigor da vida está justamente nessa busca pela natureza pulsante, insólita e intensa. Os poucos minutos no cume têm o poder de congelar o tempo por um instante, de nos mostrar algo sublime, único, efêmero, muitas vezes indizível.
A preparação – A história começou com os preparativos meses antes. Sabíamos precisamente o que estava por vir, e exatamente por isso fizemos um planejamento rigoroso para aumentar nossas chances de cume. Geraldo Ozório, um dos meus companheiros, havia estudado um roteiro de 18 dias, dando folga a prováveis intempéries da natureza, muito comuns nessa latitude.
A questão da aclimatação também foi tratada de maneira enfática, e os dias excedentes que teríamos, nos daria uma margem maior para adaptação do organismo ao ar rarefeito. Outra questão crucial foi a logística da alimentação. Contamos com o apoio da Liofoods, empresa pioneira no país na produção de alimentos liofilizados. Processo tecnológico de desidratação que mantém a forma a cor e principalmente o sabor original dos alimentos, diminuindo consideravelmente o peso e conservando a comida em temperatura ambiente por anos.
Enviaram-nos os produtos de acordo com nossas necessidades, individualizando as porções preparadas por nutricionistas, levando em questão a altitude e a necessidade calórica calculada dia a dia. Fechava o grupo outro antigo companheiro de montanhas, o médico Luiz Guimarães que nos dava respaldo com seus conhecimentos técnicos de medicina em altitude.
Chegamos à portaria do parque pela manhã e já era possível contemplar o gigante. Após apresentar nossas permissões na entrada do parque, seguimos em direção ao primeiro acampamento do trajeto mais conhecido até a base montanha, chamado de Rota Normal. O Cerro Aconcagua por ser a montanha mais alta das Américas, e figurar no circuito dos Sete Cumes, que consiste na escalada da maior montanha de cada continente, desperta o interesse de milhares de montanhistas no mundo. Presente no imaginário das pessoas desde o passado o Sentinela de Pedra, como é conhecido no dialeto Aimará, tem instigado homens a se aventurar pelo mais colossal cerro andino.
Seguimos a trilha que acompanhava o vale do Rio Horcones, por entre imensos paredões de rochas avermelhadas, que variavam em centenas de semitons, num colorido magnífico. Chegamos a Confluência em cerca de duas horas, sob uma temperatura agradável, e levantamos acampamento por entre dezenas de barracas coloridas, que recriavam uma cidade aos pés da cordilheira a 3.400 metros de altitude. Agitado, o acampamento fervilhava ao som dos mais distintos idiomas.
A lendária Face Sul – Levantamos cedo e seguimos à Plaza Francia, nosso primeiro objetivo para aclimatação. A brisa aprazível, do dia anterior começava a se modificar, e os Anoraks (casaco corta vento), tornaram-se indispensáveis no caminho, que se apresentava em uma infindável rampa espremida por um grande corredor rochoso, num desnível considerável até nosso destino.
Em pouco mais de duas horas chegamos ao mirante da lendária Parede Sul do Aconcagua, a 4.300 metros de altitude. A montanha projetava-se aos céus subitamente, expondo-se como uma imensa muralha de gelo branca, com cerca de três quilômetros de altura, que nos dava a exata dimensão da nossa pequenez diante do mundo e da natureza a nossa volta.
Plaza Francia é o local de acampamento dos poucos andinistas que se arriscam pela Parede Sul, uma escalada técnica de extrema dificuldade, com passagens em gelo e rocha. Já vitimou dezenas de escaladores de renome, entre eles os brasileiros Mozart Catão, Othon Leonard e Alexandre de Oliveira, em 1998, quando foram surpreendidos por uma avalanche.
Vitor Negrete e Rodrigo Raineri, deixaram seus nomes na história da montanha, ao escalarem essa rota, em 2002, vivendo sete dias intensos na parede, para vencer o obstáculo. Ficaram conhecidos, entre os melhores escaladores do mundo. Para nós, simples mortais, resignados, sobrou-nos a contemplação.
Começamos o dia caminhando, sob uma temperatura agradável, para vencer um longo e cansativo trecho de 30 quilômetros, até Plaza de Mulas, acampamento aos pés da montanha. O Trekking a Plaza de Mulas pode ser uma boa opção para conhecer a montanha, àqueles que ainda não estão preparados para subi-la.
Seguidos por algumas expedições, atravessamos uma ponte pênsil, sustentada por cabos de aço, que dava passagem sobre as corredeiras barrentas e traiçoeiras do rio Horcones. Subimos uma pequena colina de onde se avistava o grande corredor cercado por cumes pontiagudos que atingiam facilmente os cinco mil metros. Abria-se então em uma passagem ampla, de espaços largos, conhecida por Playa Ancha. O caminho seria tedioso, não fosse à diversidade de plantas ralas e flores amarelas, que quebrava a insistente aridez do terreno.
O verde se estendia por dezenas de quilômetros expostos em gramíneas multicoloridas, salpicadas pelo solo estéril, em uma formidável alquimia da natureza. Após o longo trecho desgastante, o caminho nos levou a uma exaustiva ladeira, conhecida como Costa Brava. Chegamos à Plaza de Mulas no meio da tarde, cansados, nos acomodamos no refúgio, fechando a primeira etapa da viagem.
Travessias – Para quem pretende conhecer o Aconcagua, sem ascendê-lo, uma excelente opção são os trekkings disponíveis na Reserva, que pode ser de um dia, para conhecer as lagunas na entrada do parque, ou arriscar uma caminhada até Confluência.
Com três dias pode-se conhecer Plaza Francia e a lendária Face Sul, podendo estendê-lo até Plaza de Mulas para sentir um pouco mais o ambiente das expedições. É possível ainda, fazer uma travessia de vários dias, subindo pelo Vale do Rio Horcones, contornando a montanha pelo flanco norte, e descendo pela Quebrada de Vacas, podendo contemplá-la de todos os ângulos, percorrendo uma grande extensão do parque, que com centenas de picos nevados, é a própria síntese da beleza.
Já no sopé da montanha, começamos a seguir sistematicamente nosso plano de aclimatação, subindo cada dia mais alto e dormindo em altitudes mais baixas, alternadamente, para adaptação progressiva ao ar rarefeito.
Escolhemos o Cerro Bonete, com quase cinco mil metros de altitude, como a primeira montanha a ser superada. A ascensão tecnicamente tranquila é uma boa opção no processo de aclimatação.
Em cerca de três horas, vencemos o desnível de 700 metros, e com o clima aprazível, pudemos ficar mais de uma hora no cume, descansando a uma altitude considerável, diante de uma vista magnífica. A leste, vislumbrávamos a grande massa branca de gelo, que cobria a cordilheira em território chileno. A oeste tínhamos, imponente e convidativa, a grande parede rochosa do Aconcagua.
Após um dia de descanso partimos para o Cerro Catedral. Chegamos a cinco mil metros de altitude, mas não passamos pelas rampas de natureza friável, que levavam ao cume, com rochas decompostas, que esfarelavam-se em nossas mãos. Descobrimos mais tarde, que tínhamos seguido o lado oposto da trilha principal, através de informações erradas que tivemos com alguns guias no refúgio. De qualquer maneira, o esforço nessa altitude fez com que acelerasse ainda mais nossa adaptação a altitude.
Preparados para a ascensão, enfim, prosseguimos montanha acima. Estávamos aclimatados, confiantes, porém o otimismo escondia a evidência dos fatos. A montanha nessa temporada exibia toda sua ira e expunha os viajantes a temperaturas que atingiam 30 graus negativos nos acampamentos avançados, e até -40ºC acima dos seis mil metros, com ventos que chegavam facilmente a 120 km/h. Não por acaso, a porcentagem de sucesso ao cume girava em torno de 20%, porém, como nem todos sucumbiam, estávamos seguros, e pedíamos passagem ao majestoso pico.
Rumamos ao acampamento avançado, num infindável aclive, rochoso, exposto em todo seu vigor, projetando-se ao colo norte da montanha. Passamos por Plaza Canadá, onde algumas barracas se espremiam, protegidas por uma grande rocha em formato piramidal, e seguimos subindo num zig-zag contínuo, atravessando largos trechos de gelos pontiagudos, em forma de lanças paralelas, conhecidos como Penitentes.
Levamos 4h30 para vencer o desnível de 1.000 metros, até nosso acampamento a 5.400m, conhecido como Nido de Condores. Um grande terreno desprotegido e assolado por ventos constantes, que serve de base para as expedições em busca do cume. Em Nido, as dificuldades aumentam consideravelmente. Acredito que a partir desse ponto a montanha separa naturalmente quem está ou não preparado para subi-la. Problemas maiores como o Mal Agudo da Montanha (MAM), se tornam mais regulares nessa altitude, fazendo com que muitas expedições voltem a partir dali.
A patrulha de resgate trabalhava muito nessa temporada, e já havia resgatado mais de 100 pessoas, segundo Antonio Ibaceta, chefe da Polícia de Resgate de Alta Montanha, sendo que 22 corriam riscos de amputação, por congelamento e necrose, e algumas ainda corriam risco de morte. Como toda conquista tem sua cota de sacrifício, nos mantivemos firmes e a caminho. Penso que as dificuldades encontradas na montanha nos fazem crescer e aprender a enfrentar nossos problemas diários com mais serenidade, e isso só compreendemos quando estamos diante de alguma circunstância crítica.
Partimos para Berlim, último acampamento antes do ataque final. Nos sentíamos fortes e preparados para a ascensão ao cume e a sensação de estar àquela altura, prontos para atingir o destino almejado tinha um gosto especial. Porém, quando estávamos perto de tentar a subida, fomos surpreendidos por uma nevasca que durou três dias, nos colocando em uma longa espera, solitária e exaustiva. Juntaram-se a nós dois outros brasileiros que conhecemos dias antes, Rubens Antunes e Carla, que nos acompanhariam até o final.
Enfim, o cume – Na madrugada do dia 17 de janeiro, e depois de 13 dias vivendo intensamente a montanha, o tempo deu uma trégua. Acordamos sob uma agradável temperatura de 14°C abaixo de zero, e a noite sem luar ocultava as trilhas encobertas pela nevasca dos dias anteriores, dificultando ainda mais nossa estratégia.
Começamos a caminhar um pouco mais de 5h da manhã, seguindo os passos de outros dois andinistas, membros da Brigada de Montanha do Exército Argentino, que conhecemos um dia antes, e que também tentariam o cume.
As lanternas frontais (de cabeça) iluminavam a rota e o silêncio era rompido pelo som continuo das passadas sulcando o gelo, que marcava o ritmo do grupo numa repetição cadenciada e hipnótica. Todos se afastaram, e cada um foi ganhando altura a seu tempo. Chegamos a Independência, um antigo refúgio abandonado, usado para emergências, com os primeiros raios de sol. Colocamos os Crampons (equipamento indispensável para ascensão em gelo) e seguimos para a chamada Travessia, longo trecho sinuoso, na crista da montanha, exposto e varrido por ventos impetuosos que atiram com frequência os montanhistas ao chão.
Chegamos a Canaleta, uma rampa empinada e cansativa, com um desnível de 400 metros a uma altitude de 6.500 metros, talvez o maior desafio do Aconcagua, onde a cada passo a altitude se impõe.
Pouco a pouco fomos vencendo o obstáculo enfadonho. Enquanto admirávamos os escarpados rochosos coberto de neve, eu sentia uma estreita relação entre nós, a montanha e a liberdade que essa busca nos remete, e por alguns segundos sentia a vida como um presente.
Por volta das 14h chegamos ao cume, eu e o Rubens, meu novo amigo, e um pouco mais tarde chegaram os outros companheiros. Abaixo dos nossos pés, víamos a grande cadeia rochosa e centenas de picos nevados, se estendendo pela imensidão da Cordilheira dos Andes. A cruz de metal, ornamentada por bandeirolas coloridas, fincada respeitosamente no alto, anunciava a conquista. O cume sul diante dos olhos evidenciava os fatos. Estávamos no topo da América!
Este texto foi escrito por: André Dib