Julio (d) com sua equipe em 1999 (foto: Arquivo Webventure)
No começo a questão era entender o desconhecido. Quando Alexandre Freitas trouxe a corrida de aventura para o Brasil, poucos sabiam do que se tratava aquela loucura de cruzar centenas de quilômetros natureza adentro, revezando esportes como canoagem, trekking e mountain bike. Poucos sabiam o que deveriam levar, quantos litros de água precisariam beber, o que deveriam comer para ter energia e terminar a prova. E a contestação disso tudo levou o organizador da primeira prova da modalidade no país, o EMA – Expedição Mata Atlântica, em 1998, assinar que tudo o que ele estava promovendo era seguro e garantido por ele. Loucura?
Há dez anos atrás poderia soar como uma loucura, mas hoje a corrida de aventura se consolidou não só no Brasil, mas como em diversos países. Porém, em terras tupiniquins, ainda é tida como esporte amador, com atletas que dividem seu tempo de treinos com as atividades profissionais. A mãe do esporte é a Nova Zelândia, mas mesmo assim ele ainda é um jovem participante do cenário esportivo mundial, com 20 anos de existência.
E foi justamente na terra mãe que o pai da corrida de aventura no Brasil conheceu o esporte. Em 1997, Freitas correu a Southern Traverse com mais quatro pessoas e as dificuldades foram imediatas. Fui correr lá e me ferrei! Era muito frio. Tivemos que queimar as nossas roupas pra nos esquentar. E foi aí que pensei que aquilo tinha a cara do Brasil, disse Alexandre Freitas, em entrevista exclusiva dada ao Webventure. Ele recebeu a nossa reportagem em sua casa, no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, e com a ajuda de seu enfermeiro, Edgar Fuquina, contou tudo sobre o esporte.
O incidente – Alexandre ficou cinco anos envolvido com as corridas de aventura. Em outubro de 2002, quando disputava o Eco-Challenge, nas Ilhas Fiji, ele foi contaminado por uma bactéria comum nas regiões do sul da Ásia e baixo pacífico, chamada Angiostrongylus cantonensis, que causou nele uma meningite bacteriana, chamada de eosinofílica. Os primeiros sintomas da doença são os já conhecidos da meningite, como rigidez do pescoço, sensibilidade à luz, vômito, fortes dores de cabeça e falta de sensibilidade na pele. Mas no caso de Alexandre, a bactéria ficou alojada no tronco da medula, causando danos ao sistema nervoso (leia a matéria publicada na época do acidente).
O então atleta e organizador ficou dois meses e meio em coma na UTI de um hospital na Austrália, e depois voltou para o Brasil. Quando acordou de seu estado inconsciente, ele percebeu que só podia mexer os olhos, porém estava consciente de tudo o que estava acontecendo.
Nesses seis anos, Freitas fez e ainda faz diversos tratamentos, mexe todas as partes do corpo, usa uma cadeira de rodas para locomoção e, com auxílio, fica em pé, porém tem uma traqueostomia que o permite falar e respirar, já que ela é ligada a oxigênio suplementar. Além de todas as dificuldades que a doença impôs em sua vida, ele perdeu grande parte da visão e enxerga somente sombras e vultos. Se eu enxergasse, com certeza, estaria organizando corridas de aventura, confessou.
Sobre o primeiro EMA, Alexandre Freitas relembra as dificuldades de realização da prova. Saindo de Paraibuna (SP) e chegando em Ilhabela (SP), a prova teve 230 quilômetros. Ao todo, 33 trios, formando um desafio com 99 atletas, participaram da primeira corrida de aventura do Brasil. A prova foi reeditada em 2008 por Sérgio Zolino, organizador do Adventure Camp (leia mais). O mesmo percurso, as mesmas cidades e o mesmo número de atletas compuseram a comemoração dos dez anos da corrida no país. Foi terrível fazer essa prova. Eu tive que explicar para todo mundo o que era a corrida de aventura. Ninguém sabia o que era. E tive que assinar para poder garantir que daria tudo certo, contou Freitas, completando que não teve problemas durante a prova e que se sentiu muito realizado com a conquista.
Para a segunda prova, o organizador ousou mais ainda. Depois de trazer para o Brasil um esporte inovador, ele duplicou o percurso do EMA-1999. Foram 400 quilômetros percorridos na região do PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira), divisa dos estados de São Paulo e Paraná. Mas de acordo com declarações de Alexandre na época, a prova não havia duplicado e sim quintuplicado, porque as dificuldades impostas pelos caminhos eram imensamente maiores que as da primeira edição.
Lembranças – Uma das lembranças mais fortes que Alexandre Freitas diz ter daqueles anos foi o EMA da Amazônia, em 2001 (veja mais). Para ter certeza da logística e organização, ele correu o circuito da prova, que na disputa entre os atletas, durou sete dias. O que de mais bonito eu me lembro é a floresta amazônica, confessou.
Em tratamento constante em sua casa, Freitas mantém-se informado sobre tudo o que acontece no mundo da aventura. Além de dizer que o mais profissional organizador de corridas em atividade hoje é Sérgio Zolino, do Adventure Camp, ele afirma que um de seus grandes amigos daquela época continua o acompanhando, que é o capitão da equipe SOS Mata Atlântica, Zé Pupo, que correu e venceu provas ao lado dele. Corremos juntos o Eco-Challenge, o Raid Gauloises, e ele é minha aposta para o mundial deste ano, no Ecomotion/ Pro. Eu destaco a cabeça dele como seu ponto mais forte. Eu ensinei muito para ele, contou.
Muitos atletas que estão em atividade na corrida de aventura atualmente, estiveram no EMA de 1998, mas outros nomes do esporte também deixaram a sua marca há dez anos atrás, em Paraibuna (SP) e Ilhabela (SP).
Dentre os presentes estavam, Sílvia Guimarães, a Shubi, e Cris Carvalho, ambas da equipe SOS Mata Atlântica; Adriana Nascimento, que atualmente se dedica ao mountain bike; o montanhista e fotógrafo Tom Papp, o empresário e sócio do Webventure, André Chaco, o médico Dr. Aventura, Clemar Corrêa, os organizadores Sérgio Zolino e Julio Pieroni (Brasil Wild). Além deles, muitos outros profissionais de diversas áreas começaram seus trabalhos naquela época e os mantém até hoje, como a videorrepórter da ESPN Brasil, Renata Falzoni.
Quem se encontrou nesse meio foi a Shubi. Convidada por um amigo, aos 21 anos, ela foi correr a prova sem nem saber do que se tratava. Eu cai de pára-quedas na corrida. Sempre fui muito aventureira, gostava de trilhas, era escoteira, mas não tinha nem bicicleta. Fiz o primeiro EMA com uma bike emprestada, e aí me apaixonei e me encontrei, disse a atleta, sobre o convite do amigo Demian, que já conhecia o esporte. Fiz um curso rápido de canoagem, de orientação, mas nunca tinha remado. Me preparei um mês e meio para a prova, contou Shubi, que retornando da prova, comprou sua primeira bicicleta.
Outro responsável pela iniciação de Shubi foi Sérgio Zolino, diretor geral do Adventure Camp. Ele que me ensinou a pedalar, a correr, foi meu treinador por dois anos, relembra.
Força feminina – E foi o EMA 99 que impulsionou Shubi a começar a correr em equipe feminina. Ela conta que naquele ano fez a prova com algumas amigas e, no fim da corrida, houve o anúncio que no ano seguinte o Brasil receberia o ELF Autenthique Aventura, uma prova francesa com etapa brasileira, no nordeste.
O organizador veio divulgar a prova na chegada do EMA e eu estava lá com as minhas amigas, e todas reclamando que os homens sempre quebravam. Aliás, isso era uma coisa típica no começo da corrida de aventura, talvez por eles serem muito durões e não admitirem os cuidados necessários. E pensando que os homens não agüentariam, e com o incentivo do organizador, montamos uma equipe feminina. Daí nasceu a Atenah. Fomos a primeira equipe feminina do mundo, disse Shubi.
O sucesso das garotas foi imediato. Em abril de 2000, elas fizeram sua primeira corrida de aventura, com outras 31 equipes num percurso de 800 quilômetros. Somente nove equipes completaram a prova, e a Atenah foi a oitava. Devagar e sempre, conseguimos concluir a prova. Isso gerou muita mídia em cima da equipe e aí fomos crescendo, relembra a atleta.
Um dos pontos ressaltados por Shubi sobre as provas daquela época era a inexperiência das atletas. Por não conhecerem bem o esporte nas primeiras provas, cometiam pequenos erros, tais como os equipamentos a serem levados, roupas, alimentação. Levávamos até rede para dormir. Era muito mais uma viagem do que a performance que temos hoje na corrida de aventura, afirma.
Outra atitude da Atenah, que se separou em 2007, foi a introdução de corridas nos trechos de trekking. Ninguém corria naquela época, e no Litoral 2000, logo depois do ELF, eu corri com a Cris Carvalho e ela insistiu para a gente correr em vez de fazer caminhada. Chegamos a abrir quatro horas de vantagem para a segunda equipe, a Lontra, relembra Shubi, que afirma que a equipe ainda pode voltar a ter atividades.
Elas se separaram, mas não acabaram com a união e podem fazer a Atenah reaparecer no cenário esportivo.
Mesmo sendo um esporte ainda novo, com dez anos no Brasil, a corrida de aventura já tem alguns ícones que representam ou representaram as cores do país em muitas disputas nacionais e internacionais, tornando-se referência na modalidade.
E falar de corrida de aventura sem lembrar da equipe Atenah é deixar um pedaço importantíssimo do esporte esquecido. Além de Sílvia Guimarães, a Shubi, a equipe feminina contava com Eleonora Audrá, a Nora.
Atualmente morando na Nova Zelândia, Nora ainda é ativa no mundo da aventura, e participa de diversas provas locais e fora do seu país, como o Wulong Mountain Race, que acontece no fim de agosto, na China, e terá a presença da atleta.
Marco – Para Nora, a Atenah foi um divisor de águas na corrida de aventura, causando uma mudança na filosofia e na cabeça daqueles que praticavam o esporte. Provamos em diversas oportunidades que a estratégia muitas vezes vale mais que a força física. Um grande exemplo disto foi o resultado atingido pela equipe em 2006, no Ecomotion/ Pro, quando fomos a melhor equipe brasileira, relembrou em entrevista ao Webventure.
E o passado da equipe, que deixou de correr junta no fim de 2007, ainda se faz presente até hoje. Nora ressalta os melhores momentos da equipe no esporte nas seguintes competições: as provas do Eco Challenge na Nova Zelândia e Ilhas Fiji, a Terra Incógnita, na Croácia, o Mundial na Escócia, o Raid Galouise, em 2002, quando ela correu com Shubi, Alexandre Freitas e Zé Pupo, o Brasil Wild Party, em 2005, as etapas do Circuito Brasileiro de Corrida de Aventura, em suas etapas de Santa Rita do Passa Quatro e Campos do Jordão (SP), em 2001, além do Ecomotion/ Pro 2006, quando a Atenah terminou em quarto lugar e garantiu a melhor colocação de uma equipe brasileira na competição.
A Atenah foi muito importante para o esporte e ainda é. Eu ainda recebo e-mails de pessoas que se inspiram na filosofia da equipe e admiram nossas conquistas. A nossa equipe serviu de motivação para as mulheres entrarem no esporte. Provamos que fazer uma prova inteligente, ter uma boa psicologia, uma boa estratégia é muitas vezes mais importante que o preparo físico, ponderou Nora.
Quem esperava ansioso para uma corrida de aventura no Brasil era Sérgio Zolino, diretor geral do Adventure Camp. Eu acompanhava o Eco-Challenge desde 1995, e sempre namorava o esporte. Quando o Alexandre Freitas trouxe o esporte, eu já fiz o primeiro EMA, contou ele, que correu em 1998 e terminou em sétimo lugar, ao lado de Patrícia Bertolucci e seu irmão, Eduardo Negão.
Após o início como atleta, Zolino passou a se envolver sempre mais com o esporte e passou a enxergar um mercado crescente dentro da modalidade. Quando eu vi e gostei do esporte, comecei a trabalhar com isso.
Sobre o começo, com toda a logística de desenvolvimento das provas, o organizador afirma que ele tem muito trabalho na criação dos circuitos, mas que isso se torna um desafio a cada prova. Dá muito trabalho organizar, mas tem seus ganhos, é muito interessante, finalizou.
E para comemorar os dez anos da corrida de aventura, Zolino organizou nos dias 1 e 2 de agosto de 2008, o EMA Remake, e reeditou a prova de 1998, com o mesmo percurso, de Paraibuna (SP) a Ilhabela (SP) e que teve vitória da equipe Quasar Lontra, de Rafael Campos (veja como foi).
Fechando o ciclo – O campeão do EMA Remake não participou do primeiro EMA, porém, com essa prova de agosto de 2008, fechou o ciclo do circuito. Eu corri a partir de 99 e faltava só essa prova para eu completar o circuito, disse Rafael Campos.
A equipe terminou os 230 quilômetros em 24h25, cerca de 15h35 a menos que os vencedores de 98. Eu comecei a correr em 99, mas dá para ver que mesmo em 1998, o Alexandre (Freitas) fez um percurso excelente, muito exigente fisicamente e tecnicamente, disse ele na chegada, em Ilhabela (SP).
E o interesse de Rafael pelas corridas começou junto com o esporte, há dez anos. Atualmente ele é oficial reserva do Exército, e na época, ainda no quartel, ele recebeu uma proposta de um amigo para correrem o EMA 98, mas ele não teve tempo hábil para entender o esporte e se preparar para a corrida. Então eu acompanhei esta prova e comecei a me preparar para a do ano seguinte, explicou.
Não havia novidade nenhuma para ele em passar o dia em meio ao mato. Mas era uma boa idéia unir o esporte, competição, natureza e trabalho em equipe, avaliou. Quem se aventurava nas provas foi gostando e tocando as provas, relembrou Rafael.
Hoje ele é um dos organizadores de corrida de aventura mais bem sucedidos do Brasil, e sua história no esporte começou com uma marca muito importante: o primeiro homem brasileiro a fazer uma prova, fora do país ainda, já que o feito deu-se em 1997.
Na época, morando nos Estados Unidos, Julio Pieroni, diretor geral do Brasil Wild, participou da escola do Eco-Challenge, há 11 anos, e a partir daquele momento decidiu levar o esporte para dentro da sua vida.
As equipes se formavam lá na escola mesmo e a minha equipe acabou ganhando a corrida. Eu voltei muito motivado para o Brasil, em 1998, e naquele mesmo ano, o Alexandre Freitas montou o EMA no país, e eu já me inscrevi com a equipe Pousada das Cavernas, que é a pousada que tenho no PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto do Ribeira), relembra Pieroni.
O envolvimento a partir daquele primeiro contato com a corrida no país foi total, de acordo com Julio. Em 1999, junto com Freitas, ele organizou a segunda Expedição Mata Atlântica, na região do PETAR. Ficamos amigos, competimos juntos na Nova Zelândia e, em 2000, organizei novamente o EMA, naquele ano em Paraty (RJ), comenta Julio, sobre seu relacionamento com o pai da corrida de aventura no Brasil.
Com cada vez mais idéias para o crescimento do esporte, os organizadores juntaram suas forças em 2000 e montaram o Circuito Brasileiro de Corrida de Aventura, que contava com quatro mandatários no comando de quatro etapas diferentes. Julio ficou com as provas do PETAR 2000 e 2001. Depois disso já comecei a trabalhar com o Ecomotion. Montamos o Short Adventure, que teve três etapas por ano e durou dois anos. Fizemos o Ecomotion/ Pro, na Chapada Diamantina (BA), e fui levando a organização e a competição até 2004, quando comecei a me dedicar somente à organização, diz ele, que correu ao lado de atletas como Shubi, e Sérgio Zolino.
Aventurar-se também não era novidade para a atleta de mountain bike Adriana Nascimento, em 1999. Nesse ano eu corri muita prova de aventura porque estava desmotivada com a bike, explica a atleta, que tem nove títulos brasileiros no MTB.
A maior dificuldade para Adriana eram as etapas com água, principalmente canoagem e natação. Sempre sofri muito com água, mas na bike era a mais forte. Já no trekking eu me virava bem, relembra.
Mas ela não ficou muito tempo nas corridas de aventura. Foram cerca de três anos no esporte, e a dificuldade de conseguir uma equipe bem preparada e treinar para a modalidade complicaram sua permanência.
Fui levando o mountain bike e as corridas por todos aqueles anos, e acabei ficando só com a bike a partir de 2003. Senti muita falta daquela agitação, movimentação das competições e surgiram muitos convites para eu voltar a fazer provas, mas é complicado retornar, explica.
Este texto foi escrito por: Lilian El Maerrawi