Os montanhistas Nelson Barretta e Rosita Belinsky (foto: Marcelo Krings/ www.webventure.com.br)
O montanhista e consultor do Webventure Marcelo Krings faz uma reflexão sobre o documentário Extremo Sul, que teve pré-estréia em meados de abril, no Cinesesc, em São Paulo. Krings conta a sua torcida pessoal para que a escalada tivesse sido realizada e comenta as dificuldades de rodar um filme de difícil produção em um ambiente hostil como a Patagônia.
Vocês lembram de um filme que passou varias vezes na sessão da tarde? aquele da patinadora? Não? Era mais ou menos assim: uma grande patinadora artística, no auge de sua forma física e técnica sofre uma queda em uma competição, as conseqüências são graves, teve que ser operada e passaria um longo e penoso tempo de reclusão e recuperação dos seus ferimentos, talvez nunca voltasse a competir, lá pelas tantas, seu amado dirige-se de avião até o seu retiro nas montanhas e durante uma tempestade o avião que ele estava cai em um terreno muito acidentado, não há sobreviventes, enquanto o resgate se desenrola, o pai da patinadora, pelo telefone, avisa que tem um câncer extremamente agressivo e que tem pouco tempo de vida.
Se ninguém lembra não faz mal, não tenho certeza se o filme é exatamente assim, lembrança de criança, ou se estou misturando filmes, serve apenas para ilustrar, o importante era imaginar e se identificar com o sentimento da pobre patinadora.
Quando as luzes do Extremo Sul se acenderam no Cine SESC, na noite da pré-estréia em São Paulo, este era meu sentimento e que depois descobri era compartilhado com outros espectadores.
Vou separar as coisas: não sou crítico de cinema, mas como muitos sou um espectador atento e aficionado. O documentário Extremo Sul, deveria ter sido um filme sobre a escalada do Monte Sarmiento, no extremo sul da Terra do Fogo, em território chileno. Deveria, mas não foi.
A técnica pareceu impecável. As imagens são lindíssimas, a Patagônia é linda, desolada e agressiva, capturá-la em filme de modo fidedigno não é uma tarefa fácil, a tela do cinema causou saudades em quem a conhece e desejo naqueles que nunca a viram.
A produção foi esmerada, a preparação levou anos, partindo do diário de uma expedição de 1998 do montanhista Nelson Barretta, até a forma final, acabada, lapidada e organizada pela equipe de produção, direção e montagem do Extremo Sul.
Não tenho notícia de uma expedição tão bem equipada que tenha andado naquela região. Uma equipe de filmagem completa, equipe de alpinistas de apoio, todos os apetrechos de comunicação necessários, helicóptero de resgate à disposição, barco para transporte e linha de suprimentos, comida, equipamento, gerentes de acampamento, médico, entre tantas outras coisas.
Poderia ter sido uma tentativa fantástica de escalar o Monte Sarmiento e deixar estas imagens para a posteridade, mas não foi assim que ocorreu. O filme, montado de modo impecável, divertido no inicio, triste no fim, retrata uma trajetória inimaginável. Confesso que ao entrar no cinema, no meio de toda aquela gente, ainda tinha a sensação de ter sido enganado nos últimos dois anos.
Lá no fundo ainda acreditava que a montanha tinha sido escalada, pelo menos tentada. Eu ansiava ver os alpinistas nas paredes de gelo do Monte Sarmiento. Mas não! Era tudo verdade, o filme é um retrato psicológico que desconstrói pouco a pouco os personagens escaladores de uma não escalada dentro de uma não expedição. Torci até o fim por uma reviravolta alpinística que não houve.
Como documentário, fica claro que a desconstrução, na verdade, é uma auto-descontrução, as palavras não são inventadas na boca dos escaladores, elas estão gravadas no celulóide e, a partir daquele ponto, são inegáveis. Através das lentes dos diretores, pertencerão ao domínio público, como sua versão gravada dos fatos.
O filme retrata as linhas gerais, impactantes, mas mesmo assim gerais. As câmeras não rodaram 24 horas por dia, vendo tudo e todos, não era um reality show, certamente muito escapou delas e, com certeza, muito do que foi filmado nunca será visto.
Talvez o filme não fosse tão interessante se o objetivo tivesse sido alcançado, mas isto, é claro, pertence ao reino das suposições.
Os personagens, ao longo do período de filmagem denotam traços esquizofrênicos, típico daqueles que falam além de suas possibilidades e depois buscam refúgio no impensável para justificar sua arrogância e o desconhecimento de suas limitações frente aos obstáculos da natureza.
Considero correto não julgar os fatos que acontecem em um ambiente não controlado, as situações no campo são irreprodutíveis. Exíge-se, no entanto, alguma preparação e muita coerência interna antes de cutucar a natureza com uma vara curta. A opção de não ir é sempre uma opção, apenas para não ser mais uma vítima da natureza ou de si mesmo.
Não deixe de assistir: Extremo Sul estréia dia 10 de junho nos cinemas, em circuito nacional.
Este texto foi escrito por: Marcelo Krings