As corredeiras do Rio Novo garantem muita adrenalina (foto: Victor Andrade)
O Jalapão, localizado no mais novo Estado do Brasil, ainda é selvagem e pouco explorado. Árvores de galhos retorcidos se misturam com rios de águas cristalinas, numa paisagem única de 34 mil km² formada por dunas, chapadões, cachoeiras e trilhas perfeitas para quem curte o off-road. Há várias opções de esportes de aventura como canoagem, rali, rapel, escalada, surfe de areia, trekking e bóia-cross. Mas a melhor maneira de conhecer o local é praticando rafting nas águas do Rio Novo, um imenso rio de água potável e temperatura agradável. A infra-estrutura é precária: são poucos os lugares para comer, dormir e abastecer. Uma dica é viajar acompanhado de guias especializados. Somente carros com tração nas quatro rodas conseguem percorrer as extensas estradas de areia e terra. Ideal para quem tem espírito de aventura.
A região, conhecida como o Deserto do Jalapão, compreende os municípios de Ponte Alta do Tocantins, Novo Acordo, São Félix do Tocantins, Rio do Sono, Lizarda, Lagoa do Tocantins, Santa Tereza do Tocantins e Mateiros. A denominação deserto não se deve à geografia do lugar mas a sua pequena densidade demográfica: apenas 1,3 habitante por km². A população vive da agricultura de subsistência, do extrativismo e da pecuária. O clima é quente e seco com duas estações bem definidas: o inverno (chuvoso) de outubro a abril e o verão (seco) de maio a setembro, a melhor época para a visitação, quando a ausência de chuvas facilita o acesso às trilhas arenosas.
A temperatura anual média fica em torno de 30º centígrados. Acredita-se que há milhões de anos o Jalapão era o fundo de um oceano. Essa crença se deve à existência de dunas formada pela erosão de rochas de arenito. O relevo é formado por chapadas e canyons de origem sedimentar e, ao contrário de um deserto, há água em abundância.
No caminho – A viagem tem início na capital. Palmas está a direita das margens do rio Tocantins e possui 220 mil habitantes. Suas quadras planejadas e as largas avenidas sem cruzamento lembram um enorme condomínio. São cerca de 340 km até a Serra do Gorgulho, sendo 120 km em estradas de asfalto e o restante em estradas de terra. A bordo de um caminhão Magirus Deutz quatro por quatro, adaptado com poltronas reclináveis, os aventureiros passam por cenários exóticos até chegar na Fazenda Rosalina, de seu Camilo, local do primeiro acampamento. Os celulares já não funcionam mais. Depois do jantar o programa é olhar o céu e esperar as estrelas cadentes, que são muitas.
A próxima escala é em São Felix do Jalapão. A paisagem fica por conta do Morro da Catedral e do Rio Sono. Da terra seca e avermelhada brotam espécies vistas apenas na região, como a vassourinha, a bailarina e a jalapa-do-brasil, planta que dá nome à região. A Cachoeira do Formiga é a principal atração do dia. A queda dágua é de cor azul turquesa e apesar da força é possível ficar debaixo dela. Há também uma piscina natural, onde se vê o fundo de areia branca forrado de plantas e pedras. O difícil mesmo é deixar o local: não dá vontade de sair. Indispensável o uso de snorkel ou óculos de piscina.
A repórter Lígia Leme viajou para o Jalapão a convite da Venturas e Aventuras
Um lugar obrigatório é o Fervedouro. A princípio o que se vê é uma pequena piscina de águas cristalinas cercada pelo verde das bananeiras. Mas são após alguns passos que o visitante pode entender o porquê do nome. Lá é impossível afundar. A sensação é tão diferente que não há como não virar criança e cair na risada.
A areia é branquíssima e borbulha, levando a todos de volta à superfície. O fenômeno, chamado ressurgência, é causado pela pressão do lençol freático situado abaixo do Fervedouro. A água não encontra vazão pela rocha, que é impermeável, e então jorra com muita força.
Quem sai dali tem a impressão de ter saído do mar: biquínis e calções ficam cheios de areia. A solução está a poucos metros dali, nas águas do rio Carrapato, um dos afluentes do Rio Sono.
Mumbuca – Quando os visitantes chegam na comunidade de Mumbuca, no município de Mateiros, as crianças correm para recebê-los. Uma certa timidez logo se transforma em sorrisos e cantoria. As casas são simples, feitas de adobe e pau-a-pique. Seu povo, humilde e hospitaleiro. Essa pequena comunidade quilombola ficou conhecida pelo artesanato do capim dourado, planta típica da região.
As bolsas, brincos, pulseiras e colares, entre tantos outros artefatos, parecem ser de ouro e são costurados com a seda do buriti, árvore que cresce nas veredas e é semelhante à palmeira. Uma bolsa custa em torno de 50 reais e demora quatro dias para ser feita. Sofre demais para fazer, a gente fura o dedo toda hora, reclama Maureni da Silva Tavares.
A técnica descende dos índios e foi aprendida por Guilhermina Ribeiro da Silva, a Dona Miúda, que junto de dona Laurentina, uma parteira de 84 anos, lidera a região. O que elas dizem por aqui é lei, diz Noêmia Ribeiro da Silva, a Dotora, apelidada assim por fazer garrafadas com ervas medicinais.
A repórter Lígia Leme viajou para o Jalapão a convite da Venturas e Aventuras
Há seis anos, por iniciativa do governo do Estado do Tocantins, através da Secretaria da Cultura, foi criada a Associação dos Artesãos e Extrativistas do Povoado de Mumbuca. Antes cada artesã trabalhava em sua casa, com muita dificuldade. Quais os benefícios disso? Pão na mesa. Agora tem até verdura além dos básicos arroz com feijão, diz Sirlene Matos da Silva. Foi um presente que melhorou muita coisa por aqui, completa Edílson Alves. Dez por cento do preço de cada peça fica para a Associação e o restante com as artesãs.
O aumento do lucro incentiva a produção, porém pode desequilibrar o meio-ambiente. Além do capim dourado ser cortado pela raiz, é preciso abater um buriti inteiro para fazer os fios utilizados como linha no artesanato. A colheita é feita nos meses de setembro e outubro e de dois em dois anos os moradores queimam as veredas para inovar a terra. Eles argumentam que isso ajuda o capim a crescer mais forte, mas não há estudos sobre o assunto. Entretanto, um dos intuitos da Associação é desenvolver o artesanato de maneira sustentável. O sustento dos moradores, descendentes de escravos baianos, provém do artesanato e da agricultura, atividade desempenhada pelos homens.
Bater papo com os moradores é um dos atrativos da comunidade. Aqui a gente canta, assa carne, faz moda de viola. Só não pode dançar porque a religião não permite, diz Dotora, sentada na varanda de sua casa. Curiosamente, em Mumbuca, todos são evangélicos. Ela diz que sua mãe e sua avó já dançaram muito, mas disso ela não sente falta. Ao falar do lugar onde mora, fica claro o imenso carinho e respeito pelo cerrado. A nossa preocupação são os mais novos terem esse sabor pelo cerrado. Fico dez dias longe daqui e já não me sinto bem. Quando um dos guias chega perto ela logo agradece, ô Beto, e não é que aconteceu até uma estradinha aqui para gente? Muito obrigada a todos vocês, de todo o coração.
O almoço é servido numa grande mesa de Buriti, com direito a comidas típicas como a mandioca assada e abóbora, além de um delicioso suco de laranja. Algumas crianças presenteiam os visitantes com flores de capim dourado, demonstrando mais uma vez a hospitalidade fora do comum.
Dunas – Acredita-se que há milhões de anos o jalapão foi o fundo de um oceano. Essa crença se deve a existência de dunas na região, formada pela erosão de rochas de arenito. Tanto tempo de estrada vale a pena: são 40 metros de dunas circundadas por riachos, lagoas e veredas. Haja fôlego.
A areia, de tom alaranjado, fica ainda mais brilhante com a luz do pôr do sol. O contraste do visual é incrível: dunas, cerrado e córregos de água, juntos, num só lugar. O melhor é sair correndo e se jogar areia abaixo. Divertidíssimo.
A repórter Lígia Leme viajou para o Jalapão a convite da Venturas e Aventuras
O primeiro dia de rafting é bem leve, com poucas corredeiras. Os botes, com capacidade para sete pessoas mais um guia de rafting. A correnteza faz o bote andar naturalmente e as pessoas podem banhar-se nas límpidas águas do rio. A primeira parada é para um almoço rápido, com direito a sucos, frutas e lanches naturais. Depois de descansar e pegar um sol, os turistas, devidamente equipadas com coletes e capacetes, voltam a remar.
A forma da letra s do rio aparece ao longo do trajeto. O silêncio traz à tona o barulho da natureza. Araras azuis voam livremente pelo céu, enquanto capivaras correm pelas matas. Depois de um dia desse, só mesmo acampando na praia das Cariocas, inacessível para quem não faz o rafting. Com o acampamento montado, é hora de conversar ao redor da fogueira e observar mais uma vez a imensidão do céu e as inúmeras estrelas.
No segundo dia começam as corredeiras, classe II e III, que garantem a adrenalina. O mais interessante é que as pessoas nunca sabem o que vão encontrar pela frente. Quando as descidas chegam é preciso pensar rápido. A concentração e a integração do grupo é imprescindível para que tudo corra bem. Apesar das corredeiras há também vários trechos onde se pode nadar e apreciar a beleza do cenário.
Nas matas repletas de buritis vivem tucanos, seriemas, onças-pintadas, sucuris, entre outros, muitos até em extinção. A infra-estrutura é enorme: os jantares feitos pelos guias são fartos e apetitosos e até o banheiro químico, a chamada caixa bomba, é fácil de encarar. A carioca Tatiana Huhun, de 30 anos, pensou que fosse passar um certo desconforto, mas se enganou. Eu imaginei uma coisa muito mais rústica, não esperava tudo isso. Aqui eu não sinto falta da cidade, eu como e durmo muito bem. O gostoso de se acampar, além da paz que o lugar promove, é a integração entre as pessoas.
O terceiro dia de rafting é o mais puxado. Deve-se ficar atento com as instruções do guia. As corredeiras são maiores e enchem de água a todos no bote. É preciso força nas remadas. Finalmente, chega-se à Cachoeira da Velha, de 100 metros de largura que forma duas grandes ferraduras. É impressionante a força da queda´ água. Os aventureiros remam até chegar muito perto da cachoeira. A sensação é indescritível.
É possível subir nas pedras por dentro e olhá-la de outro ângulo: a impressão é de estar dentro de um tubo de onda gigante. É de arrepiar. Algumas pessoas até choram de emoção. Há ainda mais um quilometro a ser percorrido, agora com corredeiras de classe III e IV. O bote passa por refluxos e é jogado para todos os lados, o que torna o passeio ainda mais emocionante. Dessa vez é necessário seguir a orientação de “piso”, em que os integrantes se jogam para o interior do bote, e logo em seguida remar mais, até ultrapassar toda a corredeira. Encharcados, todos soltam a voz no grito de guerra, orgulhosos de terem superado corredeiras enormes. Chega-se então, com a energia renovada, ao fim da aventura no Jalapão.
Quem Leva
Este texto foi escrito por: Lígia Leme