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Jaque Mourão: do medo de pedalar às Olimpíadas


Delegação de mountain bike em Pequim (foto: Arquivo)

Desde pequena envolvida no mundo esportivo, a mineira Jaqueline Mourão só tem o que comemorar em todos os anos dedicados à bicicleta. Mas antes de encarar subidas e trilhas, Jaque passou por todos os esportes, desde natação, vôlei, até ficar seis anos na ginástica artística. “Foi a melhor iniciação esportiva e a vivência motora da ginástica artística é enorme”, contou.

A iniciação com a bicicleta foi aos seis anos de idade, junto com as amigas do bairro onde mora até hoje. “Como eu tinha medo, nunca pensei que com 15 anos eu iria pedalar, iria para uma Olimpíada. Gostava de andar no plano. Aqui em casa são quatro meninas e tinham mais quatro meninas das casas ao lado. O pai delas gostava de criar uns circuitos com sinais, curvas. E eu lembro que adorava isso, só que no plano”, declarou Jaque, que assumiu o medo da ladeira em frente a sua casa, que não é tão íngreme assim.

A mineira sempre foi dedicada ao esporte e aos estudos e quando deixou a ginástica, aos 12 anos, preocupou-se com a forma física. Jaque começou a academia e logo parou em um lugar que hoje, não tem a ver com o seu ‘habitat’: as passarelas. Mas neste momento, um ex-namorado apresentou a um esporte que ela não largaria mais.

Conhecendo o esporte – “Em 1991 assisti a uma prova de MTB em Barão de Cocais (MG). Era uma prova de downhill e achei fantástica a conexão com a natureza, sempre gostei de acampar com o meu pai na Serra do Cipó. O engraçado é que, na hora, eu falei que ia começar no esporte. E eu era toda patricinha e modelinho. Então olhavam pra minha cara e falavam ‘tá bom, toma aqui uma Cecizinha com cestinha para você’, tipo assim: coitada”, contou Jaque. E esses mesmos amigos viram onde a atleta foi parar.

A vida de glamour de modelo terminou logo na primeira trilha que ela encarou. Com tudo sob controle, Jaque pedavala tranqüilamente quando perdeu o controle do guidão e abriu uma ferida enorme no joelho. A partir daí, ela sabia que seus dias de modelo estavam contados. “A mosquinha do mountain bike me picou!”.

Em sua primeira competição, conquistou a quarta colocação, em uma prova com nomes de peso no cenário brasileiro, como Laura Furtado (campeão mineira na época). “Eu comecei bem, só que não passei por outras categorias, como a Júnior. No Brasil não havia divisão de categoria e a minha dedicação não era 100%. Claro que eu buscava resultado, mas nada muito sério e sem muita dedicação como eu gostaria”.

A divisão da dedicação era com os estudos. Mesmo com a vida atribulada desde pequena, terminou o ensino médio e partiu para um curso preparatório para o vestibular. A carreira escolhida? Medicina, uma das mais difíceis e concorridas. “Passei na faculdade em Petrópolis e na época, a campeã brasileira era a Ana Cecília Guglielmi. E por coincidência, ela morava lá”. Nisso, Jaque iniciou um conflito interno: enquanto ela passava o dia na faculdade, Ana Cecília treinava. E foi nesta época que a opção foi feita, o mountain bike.

Jaque cursou sete meses de medicina, mas não desistiu de estudar, por insistência da mãe. “Eu voltei para casa e contei para minha mãe, ela aceitou, mas queria um diploma. E ela estava certa, não dá para ser só atleta. Acredito que é difícil, mas não impossível conciliar”. Optou então pela Educação Física em 97, curso que hoje ela é mestre e trabalha com pesquisas. Mas ainda sente um pouco de saudades da época do jaleco. “Se eu tivesse duas vidas, eu dedicava uma para a medicina e outra para o mountain bike”.

Logo que a opção foi feita, Jaque assinou seu primeiro contrato com uma empresa em um período de dois anos, 96 e 97. No último ano do contrato, ela participou de um campeonato de downhill em Ilhabela (SP) e fraturou a tíbia e a fíbula. Na época, liderava o Campeonato Brasileiro ao lado de Patrícia Loureiro, que ficou com o título.

“Fui transferida com o pé quebrado, com uma imobilização fraca. Descemos as montanhas em Ilhabela, pegamos balsa. Voltamos para São Paulo de carro e eu estava com uma tala que não segurava nada, sentia meu pé dando estalos e doendo muito. De lá, peguei um avião até Confins (MG) e depois fui pra Belo Horizonte. Tudo isso com o pé praticamente solto na tala. Era uma situação que só caía lágrimas”. Jaque precisou ser operada e colocou nove parafusos e placas nos dois ossos.

Neste momento, além do medo de não voltar a andar normalmente, a mineira disse que “uma força interna” apareceu do nada e que após a recuperação, o foco seriam os Jogos Olímpicos, mesmo sem ter competido nenhuma prova internacional. De gesso, ela não parou seu treinamento, para se manter em forma e logo que tirou a imobilização, entrou de cabeça na fisioterapia.

Em 1999, já treinando e na faculdade, retornou às competições brasileiras e novamente passou pela sala de cirurgia. “No fim deste ano procurei esse médico e mandei ele tirar tudo o que tinha na perna. Falava ‘Eu não quero mais esses pinos e placas, quero ir para a Olimpíada e não quero correr risco de rejeição”. Até taxada de maluca, o médico atendeu o pedido.

Com o acidente, a empresa que Jaque era patrocinada pediu sua bike de volta. “Fiquei frustrada, o ano estava acabando e eu falei para eles ‘vem pegar’. Foi uma situação muito chata, foi duro para mim, acabei perdendo tudo o que conquistei e apesar de não reconhecerem, era meu ganha-pão”.

Mais uma fase – Ainda em 1999, após o retorno às trilhas, mais uma situação que poderia colocar em risco a carreira de Jaque. “Estava eu e todos os atletas de Minas Gerais indo para um Interestadual, quando o motorista da nossa van dormiu ao volante e o carro capotou. O Pedro Autran se machucou e foi muito difícil. Você se recupera de um acidente e em um certo momento pensa: ‘tem alguma coisa errada, não devo competir, Deus não quer mais isso para mim’”.

Jaque entrou em depressão e decidiu que não queria mais pedalar. Então, Breno Lajes, amigo da atleta, entrou em cena e deu o apoio necessário para a mineira. Durante as conversas, Breno cooperou com a volta do foco de Jaque, e no mesmo ano ela conquistou o segundo lugar no Iron Biker. A trajetória não estava no fim.

No ano de 2000, o planejamento estava traçado: estar no topo das competições nacionais e ir para a Olimpíada. O trabalho até então era buscar todo o conhecimento e se aprofundar na modalidade. Regras, calendários, planejamento de treinos e busca por patrocínio. “Em uma reunião, um diretor de marketing da Fiat me perguntou tudo, o que eu faria daquela data em três anos. E eu sabia tudo, tinha tudo organizado e as coisas que eu fiz foram em longo prazo. Nisso eu fechei o contrato até 2004, ano das Olimpíadas na Grécia”.

Com toda a estrutura necessária, Jaque foi à busca dos objetivos: foi campeã no Iron Biker, vice-brasileira. Participou de seu primeiro mundial da modalidade na Espanha. Tudo começou a tomar uma maior dimensão com mais um contrato, com a Red Bull, que encerra neste ano de 2008. “Eu tinha que ir para fora do país, ter experiência para saber onde eu ia chegar”.

Para assegurar vaga na Olimpíada, Jaque precisava estar entre as 30 melhores atletas do mundo, mas, na época, ela nem tinha posições no ranking. O que acabou mudando ainda em 2001, quando fez contato com o Centro Mundial de Ciclismo, na Suíça, para tentar uma bolsa no programa Solidariedade Olímpica. “Eu não tinha como entrar nesse esquema de atletas. Entrei em contato com a técnica do Centro e falei da minha formação profissional. Na hora consegui uma vaga para ser treinadora”. Para a mineira, era a oportunidade de chegar ao seu sonho, mesmo sabendo que, para isso, teria que trabalhar muito mais.

Entre as aulas, Jaque aproveitava para treinar e competir na Europa. Formou-se treinadora da União Ciclística Internacional (UCI) e logo entrou para as trinta melhores atletas do ranking.

Melhor temporada – Com todas as conquistas, em 2003 a mineira conseguiu o destaque que precisava fora do país um dos melhores resultados foi o 8º lugar no Mundial de Maratona. No início, a atleta sentiu uma certa pressão. “Não tava preparada mentalmente para encarar as melhores do mundo, eu era fã delas! Enquanto elas me atacavam, eu ficava admirando”.

A solidão também acompanhou a atleta durante sua estadia na Europa. Uma de suas lembranças da solidão foi quando venceu uma prova na França e, sozinha, comemorou cantando o hino nacional em alto e bom som. “Tive essa fase de solidão e acabei abrindo mão de muitas coisas pessoais. Foram decisões que não voltam mais e que devem ser tomadas na hora certa”.

Mesmo com uma alergia a pólen na Europa, Jaque conseguiu seus melhores resultados. Conseguiu a vaga para o Brasil na Olimpíada, conquistou várias competições no país e atingiu o 9º lugar no ranking mundial. “Se eu continuasse no Brasil, com o nível de competitividade da época, que eu estava numa fase de largar e ficar sozinha na frente a prova inteira, não estaria onde cheguei. Tive que sair e buscar a competitividade, de estar no limite e ter gente te buscando”.

Com tantos treinos e competições, a brasileira estava em seu pico de performance e alcançou o ‘over-training’. “Estava cansada fisicamente, mas não parava de treinar. Tive que terminar meu mestrado e em 2003 defendi meu projeto. Então, imagina a correria que era”.

Uma notícia acabou desvirtuando o foco de Jaque. O Centro Mundial da Suíça fechou e, logo em seguida, conseguiu uma vaga no Centro da Áustria, que tinha uma filosofia completamente diferente: aumentar o condicionamento físico dos atletas em treinos indoor. Exatamente o que ela não queria.

“Não me adaptei, não falava a língua e não tinha o que fazer. Era um treinamento muito louco para mim e eu fiquei deprimida a ponto de ganhar peso. Nas competições, eu não conseguia seguir as primeiras nem na largada”. Com os fracos resultados, o que segurava Jaque entre as melhores era o ranking.

Durante essa fase de treinamentos que não lhe renderiam nada para o seu objetivo, Jaque entrou em contato com um treinador canadense, Michel, que indicou uma pessoa que poderia ajudá-la com estadia durante uma prova no Canadá. “Pedi ajuda para ficar em um lugar próximo a pista e ele me indicou a casa do Guido (Visser)! E para reconhecê-lo no aeroporto, ele deu a seguinte descrição: ‘tenho cabelo amarelo, sou master e com cara de palhaço’”.

Logo ao chegar no desembarque, a brasileira sentiu que algumas coisas poderiam mudar em sua vida pessoal. “O primeiro pensamento quando vi o Guido foi “vou ter problemas”. Foi amor a primeira vista”. A conexão foi tão forte que no mesmo ano ficaram juntos e seis meses depois, a dupla estava noiva.

Sonho realizado – ‘Resgatada’ da Áustria, Jaque foi para o Canadá retomar sua rotina de treinos outdoor para as últimas preparações para os Jogos Olímpicos de Atenas. Com a ajuda de amigos e do Guido, a atleta chegou em sua melhor condição física para representar o Brasil na maior competição do mundo.

Mesmo com a melhor performance, o pneu furado durante a prova na Grécia acabou com a vontade de vencer de Jaque. “Foi frustrante, mas não dava pra desistir assim”. Com o 18º lugar na competição, todos já sabiam que o projeto para 2008 seria remontado pela biker.

Após o incidente na Olimpíada, Jaque não parou. Em 2005, já morando com Guido no Canadá, a brasileira participou de etapas do campeonato norte-americano, o Norman. As provas seguiram de março a abril e após o fim, retornaram para casa e uma surpresa desesperadora tomou conta de Jaque: uma nevasca inesperada atingiu a cidade e impossibilitou a biker de treinar.

“Estava tudo branco e eu pensava o que estou fazendo aqui? Preciso treinar!’. O Guido falou que não teria muito que fazer e que iria ficar três dias com tudo coberto de neve”. Vendo a companheira inquieta, sem poder pedalar, Guido resolveu levá-la para esquiar, mas a última experiência de Jaque com esquis não foi das melhores na Suíça. “Eu detestei! Você cai toda hora, fica com frio, molhada. Nem sabia onde tinha freio. O Guido soube preparar tudo e me ensinar, foi diferente”.

Logo, a paixão pelo esqui tomou conta da mineira. Morando em Quebec, ela já sabia que durante seis meses a neve atrapalharia suas pedaladas, e acabou investindo no esqui cross-country. A temporada de mountain bike seguia e os resultados, mesmo sem treinos, continuaram chegando.

Assim como a busca por competições no mountain bike para montar seu projeto olímpico de 2004, Jaque mergulhou de cabeça na neve. “Descobri a Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN) e o pessoal foi super atencioso, receptivo. Disse que queria ganhar um pouco de experiência na modalidade e me filiei. Em setembro, quando acabou a temporada de MTB, voltei o contato com eles e quis saber sobre regras e como funcionava”.

Olimpíada de Inverno – Junto das regras do esporte veio as regras para a Olimpíada. “Coçou a mão, lógico!”. A CBDN ajudou a biker a participar de alguma prova da Federação Internacional de Esqui (FIS) para entrar no ranking da modalidade. Para os Jogos Olímpicos de Turim, na Itália, o Brasil já teria uma vaga garantida para participar e o critério para a escolha dos atletas seria o melhor ponto FIS, uma espécie de ranking da modalidade.

“O Guido até falou para eu desistir, mas tocou no meu ponto forte, era mais um desafio. E começamos a treinar intensivamente, até durante jantar e dançando ficava aprendendo técnicas de esqui. Ganhei muito preparo, aprendi rápido e me ajudou demais. Acabei conseguindo o ponto FIS e dois meses depois estava competindo esqui cross-country”. As dificuldades de Jaque no esporte eram, ao contrário de muitas atletas, as descidas. “Em uma prova, cheguei a alcançar uma atleta na subia, mas na descida eu caia e ela passava”.

Com a vaga assegurada, Jaqueline Mourão escreveu mais um capítulo no esporte: ser a primeira atleta brasileira a participar das duas versões dos Jogos Olímpicos (verão e inverno). “Em Serra Nevada eu fiz minha última preparação para as Olimpíadas de Turim e parei para pensar em tudo que eu já tinha passado. E consegui realizar tudo. Só que descobri o esqui cross-contry tarde, mas apesar disso, o exemplo é enorme e vale a pena”.

Dentre 70 atletas da prova de esqui cross-country 10 quilômetros, a brasileira conquistou a 67ª colocação, com o tempo de 35m59s7. A vencedora da prova, a atleta da Estônia Kristina Smigun, fez em 27m51s4.

Mais uma busca por um objetivo: Olimpíada de Pequim. A disputa pela vaga olímpica foi até a última competição. Três provas foram escolhidas para definir os atletas do mountain bike na China: as duas primeiras etapas da Copa Internacional de MTB e o Campeonato Brasileiro de Mountain Bike. Jaque e Rubens Donizete foram os representantes brasileiros na competição.

O ano de 2008, para Jaque, foi uma temporada fantástica, com a quinta colocação no Pan do Rio e muitos outros pódios. Tudo encaminhado para realizar um sonho olímpico. Mas, novamente, um pneu furado acabou com este desejo. A brasileira ficou com a 19ª colocação.

“Quando a menina da Nova Zelândia caiu na minha frente, eu desviei, peguei um novo traçado e o pneu pegou uma quina de uma pedra, e acabou saindo do aro. Ela terminou na nona colocação. Fiquei triste foi minha despedida e queria um bom resultado, mas parei e pensei: Estava na Olimpíada e não parei, segui firme, só parei quando me tiraram da competição. Não desisti e isso foi bom demais”.

Mesmo antes de entrar na pista, Jaque havia anunciado que Pequim seria sua última competição oficial. A mineira de 33 anos definiu que se aposentaria. “Preciso de um tempo das competição para voltar a focar na minha profissão e outros objetivos. Cada atleta tem seu clique. E eu sou realizada, tenho meus resultados relevantes. Eu não vou parar de pedalar, talvez correr uma maratona daqui uns três anos. Quem sabe”.

Jaque, que deixou um legado importante nas provas de mountain bike e também no esqui cross-country, acredita que a força de vontade a fez chegar onde chegou. “Eu nunca fui um talento, mas tive muita perseverança na vida. Ter a vontade de conquistar o objetivo é o que funciona. Sempre fui movida à superação, isso é um espelho da minha carreira, tentar o inédito, buscar algo sempre diferente. Meu prêmio principal é toda essa vivência e isso não tem preço! Hoje estou aposentada e feliz.”

Under My Wings – A inquieta Jaqueline, mesmo com a aposentadoria, não parou de pensar no mountain bike. Fora das pistas, o projeto Under My Wings sai do papel e ganha vida. O projeto visa selecionar dois meninos e duas meninas, iniciantes na modalidade, a aprender tudo o que a biker aprendeu com o passar dos anos e detectar novos talentos.

O projeto será lançado no fim de 2008 e passará por nove cidades brasileiras fazendo uma seleção de vinte atletas com potencial. As seletivas vão até junho e somente adolescentes entre 15 e 20 anos (nascidos de 1988 a 93) podem participar.

“A detecção dos talentos será feita nas provas e também por meio de questionários psicológicos, partes técnicas e físicas. Após a final, passarão uma semana comigo em Belo Horizone tendo palestras desde como fazer um currículo até nutrição e fisiologia. Os quatro melhores irão para o Canadá em julho em uma escola que tem um programa de educação física com MTB”, explicou Jaque.

O objetivo final do Under My Wings é a participação dos quatro bikers no Mundial de Mountain Bike em 2010 no Canadá. “O projeto tem continuidade e em 2010 eles serão da categoria Júnior ou Sub-23”.

Este texto foi escrito por: Bruna Didario