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Memórias do Rally dos Sertões – 1996

Redação Webventure/ Offroad

Detlef navegou em um Land Rover no Sertões 96  ao lado de Robert Branden. (foto: Arquivo pessoal)
Detlef navegou em um Land Rover no Sertões 96 ao lado de Robert Branden. (foto: Arquivo pessoal)

Dizem que este foi o melhor ano do Rally dos Sertões. Eu já acho que foi o último ano “romântico” da prova, em que a aventura e o espírito de amizade eram maiores que a competição em si.

A largada deste ano foi no Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo, em uma fria e chuvosa noite de inverno paulista. Apenas os pilotos, navegadores, pessoal da organização e alguns familiares dividiam a praça com um vento gélido e molhado. O Rally ainda não tinha o glamour atual e praticamente não havia público.

Era o segundo ano em que os carros participavam da prova,que inicialmente só aceitava inscrições de motos. Em 1995, apenas 8 aventureiros participaram de uma categoria experimental de carros e um ano depois já eram 23 carros prontos para largar. Esquema profissional, nem pensar! Uma equipe de apoio com uma picape e um mecânico era um luxo que poucos carros tinham. A maioria ia na raça mesmo!

Os inscritos – Entre as curiosidades inscritas havia uma picape VW Saveiro 4×2 equipada com um guincho elétrico que logo caiu porque o suporte não agüentou as trepidações do piso; um Lada Niva, que desapareceu da prova no primeiro dia e nunca mais foi visto; um Land Rover 51 pilotado por uma dupla muito animada, Marcelo Zebra e Bigo, que parava em todas as oficinas mecânicas do percurso para montar as peças que iam caindo pelo caminho; e alguns jipes Engesa que teimavam em quebrar sempre.

Neste ano a dupla Edu Piano e Tamie Yonashiro fez seu pós-doutorado em mecânica de Suzuki adaptado, pois para encontrá-los no fim do dia bastava apenas procurar na oficina mecânica mais próxima do acampamento onde o casal passava a noite embaixo do carro tentando remendar tudo que quebrava durante o dia. O motor teimava em cair do carro e já não havia arame suficiente para segurá-lo, nada como um quebra-galho para continuar na prova.

Um carro cearense – Apareceu também em 1996 um carro diferente, todo de fibra, muito parecido com o Jeep Wrangler, fabricado no Ceará que tinha o nome de Troller. Era pilotado por uma figura inusitada, um tal de Beto, que queria descobrir se o tal jipe conseguia voar também, e num desses saltos a coisa voou alto demais, e na hora de pousar a suspensão não agüentou e saiu capotando.

Minutos depois estava lá o Beto sorridente e feliz dando uma entrevista para a TV dizendo que não estava muito rápido! Beto, que nos deixou tragicamente no Rally dos Sertões de 2000, se tornaria uma das figuras mais carismáticas da prova e uma lenda em termos de off-road no Nordeste.

Cacá Clauset e Norton Lopes a bordo de uma picape L-200 travaram um disputado duelo com Luciano Cunha e Rui, que pilotavam uma picape Land Rover completamente original. Enquanto Luciano tentava provar que o Land Rover era indestrutível (e provou mesmo!), Cacá aproveitava a maior potência de sua L-200 para administrar o resultado e vencer a prova.

Sem combustível no sertão – Porém a etapa mais interessante e também mais longa da edição foi no coração da Bahia. Tinha 170 km, o que para a época era algo absurdo de longo, e fez com que muitos competidores tivessem que dormir no sertão sem combustível, pois como o piso era muito arenoso, as motos e carros consumiram muito mais combustível do que previsto.

Passei por vários pilotos que já estavam preparando uma fogueira para enfrentar a madrugada. Foi uma etapa muito dura que exigiu muita atenção na navegação. Teve piloto de moto que rodou mais de 60 km totalmente perdido.

Corina Neumann e sua navegadora tiveram a experiência de ver o mundo de cabeça pra baixo logo no começo do Rally e seu Suzuki, completamente amassado e desalinhado, chegou em Fortaleza parecendo que ia desmontar a qualquer minuto. As garotas fizeram milagre para levar o carro até o final. Marco Moraes, que também corria de Suzuki, se desesperava quando seu navegador, o pai da Corina, resolvia tirar um cochilo durante as provas especiais.

José Hélio nos Carros – Naquele ano, José Hélio e seu irmão Anderson, pilotos de moto, resolveram fazer a prova com uma picape Toyota Hilux original. Se deram tão bem que, apesar de não fazerem nenhuma manutenção no carro durante toda a prova, ficaram em terceiro lugar geral, apenas atrás do Cacá e do Luciano.

Anderson, infelizmente, veio a falecer em 2000 durante uma operação, deixando um grande vazio na família do Rally dos Sertões, pois era um dos poucos competidores que havia participado de todos os anos da prova.

“Vai a pé!” – Houve também um piloto de carro que brigou com seu navegador durante uma das etapas e simplesmente abriu a porta do carro, pôs o navegador pra fora, jogou a passagem de avião para ele e se mandou, abandonando-o a mais de 20 km de qualquer sinal de civilização. Dizem que ele foi resgatado pela organização e ambos unca mais se falaram, conseqüência imprevisível do estresse que pode rolar dentro do cockpit de um carro de rali!

Eu participei com um grande amigo meu, Robert Branden, a bordo de um Land Rover 90, e no dia de descanso em vez de fazer a manutenção do carro, como é usual atualmente, nós resolvemos “fazer uma trilha” na Chapada Diamantina para “descansar”. No dia anterior havíamos resgatado dois pilotos espanhóis de moto que ficaram totalmente sem luz, perdidos no deslocamento até a cidade de Lençóis. Quando ambos viram os faróis de nosso carro, suas caras de terror se transformaram em alívio e não se cansaram de nos agradecer durante o resto do rali.

Na base da marretada – Também no dia de descanso me lembro do João de Piracicaba, navegador-mecânico de uma F-1000, tentando alinhar a frente do veículo com uma marreta de 5 kg. Foram algumas horas de barulho ensurdecedor que deixaram a picape novinha em folha A dupla até ganhou uma das provas especiais depois disso!

Foram muitas aventuras e alguns sustos. Conhecemos um Brasil novo, passamos por lugares que meu piloto teimava em chamar de “fim do mundo” (era a o sul do estado do Maranhão onde há uma miséria muito grande), foram muitos amigos feitos e uma certeza, no próximo ano eu estaria novamente lá! O vírus dos Sertões havia me contaminado… E agora, em 2003, estou participando pela oitava vez consecutiva, desta vez como chefe de equipe da Fiat, um time estreante no Rally dos Sertões, que promete muitas surpresas.

Este texto foi escrito por: Detlef Altwig

Last modified: julho 27, 2003

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