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Minha Aventura: De São Paulo ao Alaska de moto

Redação Webventure/ Offroad

Finalmente  o destino após dias de aventura (foto: Arquivo/ Erik Carnevalli)
Finalmente o destino após dias de aventura (foto: Arquivo/ Erik Carnevalli)

Foi com uma inocência incrível que tudo começou. Com o mapa do continente americano aberto, fiquei lá fuçando pelas extremidades, o mesmo péssimo hábito que já havia me levado a despender quantidades enormes de tempo e energia para chegar ao Everest, refazer a rota da seda ao Atacama por 3 vezes, 11 vezes à Patagônia, à África, 3 vezes ao Ártico, entre outras pequenas proezas menos fantásticas. Sempre que possível, para os mais loucos confins do planeta.

Lá em “cima”, no estado do Alaska, vi uma estrada que segue ao norte cruzar o Círculo Polar Ártico e segue até o mar Ártico onde acaba o continente. Eu ainda não sabia como, mas uma coisa era certa: um dia eu iria trafegar naquela estrada.

Alguns anos se passaram e enfim chegou a hora de parar de sonhar. Eu tinha que realizar essa façanha, tinha que percorrer cada metro de chão que leva até aquela estrada. Provocar isso para mim era subir numa moto sozinho e me aventurar pelas Américas do Sul, Central e do Norte pra ver como as coisas realmente são. E talvez entender porque aquela estrada estava lá. Eu queria conhecer nosso quintal e nossos vizinhos da forma mais honesta e crua possível, sem intermediários: eu queria tirar minhas próprias conclusões.

O equipamento e os planos – O momento era exato, a moto uma KTM 990 Adventure. Era recém saída de uma caixa parda e sem graça, bem diferente do conteúdo laranja e repleto de potencial para divertir o condutor. Eu tinha o tempo e o dinheiro necessários para a empreitada, graças à empresa em que sou um dos sócios (ALIVE Eco Hut) e, claro, meus sócios: dois viajantes sedentos que entendem bem minhas necessidades. O primeiro obstáculo estava superado.

O plano que tinha que ser infalível. Logo iniciei o planejamento, os principais tópicos são relacionados a questões de documentação, de mecânica e financeira. O resto é fichinha: hospedagem, alimentação, comunicação, segurança, legislação, orientação, turismo, etc.

Problemas simples, como onde recarregar uma pilha de uma câmera digital, torna-se um desafio, tudo é analisado sempre com a trilogia: necessidade, peso e volume, afinal de contas isso é mais do que restringido numa moto, devo dizer que sobraram duas camisetas e uma cueca. Talvez eu tenha usado demasiadamente as outras camisetas e cuecas antes de trocá-las, definitivamente os banhos não foram o ponto alto da viagem.

Imagine você planejar a rota de uma viagem de 40.000 quilômetros e saber que deveria abastecer a Kate (como a minha moto foi carinhosamente apelidada) a cada 200 quilômetros. Além de saber aonde ir, eu teria que ter essa informação à mão, não poderia parar e abrir um mapa para procurar um posto ao redor. Decidi por um método que eu já estou bem acostumado: uma planilha de papel enrolada, colocada num leitor elétrico que passa as informações ao toque de um botão, como os pilotos de rali fazem.

O GPS também estava a postos, com todas as estradas e todas as cidades das Américas na memória, ele foi um grande aliado. E o conjunto de três caixas para bagagem que somam 100l de volume, um pouco apertado porém suficiente. Tudo pronto é hora de partir e tudo que aconteceu nesse sonho segue detalhadamente a seguir.

Cheguei a Puerto Maldonado, Peru, e descobri que meu roteiro de 650 quilômetros por dia é um pouco lento, então resolvi aumentar para 850 quilômetros. O que veio bem a calhar, pois consigo terminar o percurso durante o dia e tudo vai tranqüilo, dá até pra enrolar depois do almoço na pracinha de alguma cidade do interior. Fiz alguns amigos, mas nada se supera ao sucesso que a Kate faz.

Estou pensando em fazer uma placa bem grande com as respostas escritas que eu tenho que dar todo segundo em que não estou trafegando por alguma estrada deserta:
– É uma KTM, sim isso é a marca.
– Sim, é a do rali.
– Ela tem 1.000cc.
– Sim, ela tem dois tanques.
– Chega até 220 km/h aproximadamente.

Destinos – Quanto ao meu destino descobri que a resposta Alaska não responde as expectativas das pessoas, ou eles me olham com cara de não sei onde é isso, ou com cara de que eu estou de sacanagem. Bom, resumindo, decidi tomar um banho e para isso eu teria que chegar até Rio Branco, capital do Acre, para achar um hotel e o preço foi rodar 2 horas durante a noite e inteirar um dia de 1.206 quilômereos em cima da moto laranja.

Acordei com vontade de fazer uma coisa diferente e, portanto, resolvi andar de moto! Cheguei às grandes estradas de terra do Peru e até um bom pedaço foi um terrível pesadelo, pois estão fazendo a terraplanagem para um futuro asfalto e a terra lisa está sendo molhada. No segundo trecho, já com terra seca e mista, resolvi brincar de rali e travei bem o guidão, fiquei de pé e mantive os 110 km/h, foi uma delícia.

Saí de Porto Maldonado destinado a tentar terminar o trecho de 700 quilômetros de terra em um dia, mas não foi bem assim porque a estrada está em obra do início ao fim. Gastei dois dias para percorrer os sofridos quilômetros e, finalmente, consegui chegar a Cuzco e de cara descobri que o pneu que eu pretendia rodar de 10 a 13 mil quilômetros já havia acabado com 5.000 rodados. Cheguei com a Kate ao topo da Cordilheira no passo Hualla Hualla, que tem exatos 4.616 metros de altitude e faz do caminho um dos lugares mais lindos que eu já vi.

Meu relacionamento com a Kate está excelente, nos entendemos bem e tenho a sensação de que em breve ela vai falar algo. E por alguma razão acho que a primeira frase vai ser: “Você não tem dó de mim mesmo”.

Cheguei a Chiclayo, mas até aqui muita coisa aconteceu. Saí de Cuzco bem cedo com o compromisso de conseguir fazer os 516 quilômetros que o separam de Nazca em um dia. Tarefa nada fácil já que não existe um metro de reta nessa estrada é uma única, longa e extenuante descida que segue toda a Cordilheira, desde os 4.850 metros de altitude até o mar. Um dia eu volto aqui de bicicleta.

Problemas – Tive um problema com meu cartão de crédito que foi bloqueado porque a VISA percebeu que havia muitas compras de gasolina saindo do Brasil, supuseram que ele havia sido roubado e estava sendo usado para fugir do país. Enquanto isso eu, num segundo de descuido, tive minhas luvas roubada e não foi nada agradável pilotar sem luvas a 4.600 metros de altitude com neve caindo! Mas fiz uma focalização mental e acredito que o novo dono da luva não esteja tão feliz se 1% do que desejei a ele aconteceu de fato. A descida foi maravilhosa tenho vídeos arrepiantes.

Fiquei quase todo o dia sem o que fazer primeiro esperando pneus e coisas assim, depois foi hora de almoço dos mecânicos e minha. Achei um restaurante em que estava acontecendo a largada promocional de um rali de carros e junto com eles estavam umas 40 modelos em trajes ínfimos de lycra. Não gostei! Isso não se faz com um cara que está a tanto tempo na estrada só vendo lhamas! Acreditem se quiserem, mas achei melhor nem almoçar lá.

Saí de algum lugar do norte do Peru com destino ao Equador, foram longos e secos quilômetros de deserto. Cheguei finalmente na fronteira do Peru e Equador, nada animador, o local parece o pandemônio, milhares de pessoas pela rua com sacolas, cargas, bicicletas e animais.
Depois veio Cuenca e então, segui em direção a Quito. Foi legal, sem grandes novidades, uma cidade histórica que para mim seria um marco importante: a passagem de hemisfério.

Segui apreensivo para a fronteira da Colômbia e por mais que as pessoas diziam que estava tranqüilo, eu me sentia indo para o apocalipse. O local me surpreendeu, tudo bem organizado com pessoas sorridentes, a saída do Peru foi plácida e tranqüila. Segui, a vista das estradas na Colômbia são ainda mais espetaculares do que as do Equador ou de qualquer outra que eu tenha percorrido, talvez comparável aos Alpes franceses. O exército estava em toda parte e houve um pronunciamento do presidente que declarava o fim das Farc e a ordem de captura de seus comandantes.

América Central – Ontem Kate saiu de Bogotá, depois de ter sido revirada e fuçada por todas as autoridades e curiosos na região, até cão farejador. A gincana para a moto sair não foi fácil, demorou umas 6 horas e custou exatamente 800 dólares em dinheiro! Aliás, a Colômbia é linda eu poderia voltar quantas vezes fossem necessárias.

A cidade de Panamá parece o primeiro mundo mesmo, o lugar é muito pra frente e gostei do astral. Realizar esta maluquice parece muito mais provável agora, pois atravessei o pior, imagino. Às vezes quando o corpo todo está doendo, vendo a chuva batendo, me pergunto por que estou fazendo isso? Mas a resposta é simples: porque senão eu vou passar a vida dizendo que gostaria de fazer.

Saí do Panamá por uma estrada meio complicada. A Costa Rica segue o mesmo comportamento, porém um pouco pior, pois a tal estrada não tem acostamento nem de terra. Depois veio a Nicarágua que segue a mesma coisa só que mais pobre. Aí tive meu primeiro pneu furado. Alguns quilômetros depois, em Honduras, tudo de novo, mas desta vez em frente a uma borracharia. Eu não podia crer, dois pneus em um dia. Cruzar a fronteira de El Salvador foi uma tortura. Terceiro pneu furado! Rodei uns 15 quilômetros até uma borracharia.

No dia seguinte me arrastei até a Guatemala, onde há uma concessionária, conheci um bando de ricaços que andam de BMW e um deles me hospedou, nunca vi gente mais hospitaleira. Hoje pela manhã fomos até Antigua, uma cidade histórica. A Guatemala tem uma cultura fortíssima de moto e parece que o engenheiro que construiu as estradas também era envolvido, o lugar é perfeito para motos, parece um parque de diversão.

E claro, sem contar com a vista, agora sim eu passei pelas estradas mais bonitas, vulcões, lagos, florestas de pinheiros, florestas tropicais, curvas e mais curvas. Minhas noites na cidade foram agitadas ao lado de meu irmão mais velho, sim descobri que tenho um aqui, o Frank. Despedir-me dele e de seus filhos foi difícil.

A continuação da viagem foi tranqüila, parecia que estava há um ano fora de casa e tudo que eu queria era ligar para todos que eu conhecia. Fui dormir a 600 quilômetros da casa de Frank em Tikal, o melhor, maior e mais bem preservado conjunto de monumentos Mayas existente. Na manhã seguinte saí de Tikal com destino a Belize.

Tempestade – Muitos quilômetros se passaram, segui rumo a Mérida e tudo foi tranqüilo, porém depois de 200 quilômetros, a coisa ficou séria. Uma tempestade que não tinha fim, eu tentava manter a moto na estrada, mas o vento me jogava pra onde queria. Fiquei ensopado e a água gelada venceu todas as barreiras do conforto, isso significa que chegou até minha cueca. Vocês sabem, depois da cueca…

Seguia pela estrada em direção à Cidade do México, quando fui cautelosamente mudar de faixa e não tinha visto, mas existia um degrau de mais de 15 centímetros entre as faixas, pura quina de concreto. O pneu dianteiro pegou e perdi o controle, tornei-me um passageiro desajeitado em cima do monstro laranja. Eu pagaria cada centavo em dobro pelo que salvou minha viagem: o amortecedor de direção.

Foi triste. Eu estava numa estrada perfeita até então e lá estava um defeito que teria feito o sonho ficar bem mais distante. Percebi como minha viagem é frágil e o sentimento não me agradou. Pilotei uns 400 quilômetros, cheguei ao meio do nada e montei a barraca. No dia seguinte pilotei no total 1.540 quilômetros, simplesmente em umas 18 horas eu atravessara o norte do México, parte do Texas, todo o sul do “New” México e parte do Arizona. Foi uma boa tocada!

Adivinhem onde me hospedei em Los Angeles? Na barraca, claro. De Los Angeles para São Francisco. Depois de tanta cidade foi hora de visitar os parques nacionais, comprei um passe válido para 1 ano em qualquer parque nacional do país. Isso me tornou o verdadeiro maníaco do parque! Fui a todos que estão ao redor, segue a lista: Yosemite; Kings Canyon; Arches; Canyonlands; Grand Canyon; Mojave; Monument Valley; Zion.

Bom, quem pegar o mapa vai ver que está fora de ordem, mas foi assim que lembrei. Primeiro me deparei com um urso. Sim, um urso de verdade, grande, tirei até foto! Na última noite, pilotei por uma estradinha de terra dentro de um dos parques e dormi no meio do nada.

Aliás, dormi não, passei metade da noite olhando pra fora, tentando descobrir se a alcatéia de coiotes se aproximava ou afastava, que medo infernal. Cheguei ao Colorado, cidade de Aspen, fiquei vendo os gringos gastarem dinheiro. Estou exatamente 14 dias adiantado no meu cronograma, portanto minha chegada está mais perto do que imaginava.

Chegando lá – Nos últimos dias estive muito ocupado fazendo uma coisa diferente, andando de moto. Aliás, todo dia eu acordo com vontade de fazer uns 1.000 quilômetros de moto… Incrível!
Quando vi a fronteira do Alaska no GPS foi extremamente difícil me conter, o coração disparava, os olhos umedeciam e o capacete embaçava. Quando a fronteira realmente chegou foi fantástico, foi um alívio impressionante. O final, se é que se pode chamar de final, foram 1.400 quilômetros de estrada de terra entre ida e volta cruzando a tundra um deserto congelado. Dormi preocupado com os agressivos ursos grissly e polares, sim, lá já tem urso polar, e voltei no dia seguinte.

O dia estava lindo, aliás, lá tem sol quase o tempo todo, até a meia noite. A estrada estava perfeita e lá consegui o que eu não imaginava, alcançar os 175km/h na terra, foi lindo ver o poeirão subindo lá atrás. Tomei minha multa de velocidade no Alaska que eu vou enquadrar. A volta até NY foi monótona, fiz tudo a 110 km/h e quase enlouqueci. Foi difícil acreditar que eu havia terminado.

Agora já estou de volta na civilização, de banho tomado e engolido pela impessoalidade da metrópole. E com sensação de dever cumprido, de que eu posso enfrentar qualquer desafio sobre uma moto e a mais incrível sensação de saber que eu concluí uma coisa ao mesmo tempo extremamente importante como ser humano e totalmente desprezível para o mundo, um vazio estranho.

E agora? Que viagem de moto terá graça? Mais tarde, ao receber e-mails me dizendo que eu era uma inspiração para a vida deles, tive uma nova dimensão da minha viagem. Estava ajudando pessoas a acreditarem em sonhos e a realizarem feitos, construindo coragem para se desligar do mundo rotineiro e aprisionado em que vivemos. Eu estava mudando pessoas e isso não tem preço, me senti imerso no marasmo, me perguntando qual a importância do que eu tinha feito.

  • Quilometragem: 39.528,36
  • Dias: 71
  • Países: 14
  • Pneus: 6 (dois dianteiros, 4 traseiros)
  • Litros de gasolina: aproximadamente 2500L
  • Pneus furados: 3 no mesmo dia
  • Problemas mecânicos: Zero
  • Problemas de saúde: Zero
  • Ursos: 14
  • Temperatura mais alta: 44 graus
  • Temperatura mais baixa: – 4 graus
  • Maior altitude: 5000m – Cordilheira dos Andes
  • Menor altitude: 113 abaixo do nível do mar – Death Valley
  • Tombos: 2
  • Trocas de óleo: 8

    Este texto foi escrito por: Erik Carnevalli

    Last modified: setembro 1, 2008

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