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No rumo de Amyr

Redação Webventure/ Aventura brasil

Guru é o barco velejado por Gui e Felipe (foto: Arquivo Rota Austral)
Guru é o barco velejado por Gui e Felipe (foto: Arquivo Rota Austral)

Expedições marítimas marcam os grandes momentos da História. Foram o meio utilizado para a expansão do mundo, para se chegar a territórios nunca imaginados e na equação dos homens ocidentais aumentar posses, riquezas e domínios. Foi num barco que se chegou às Índias e todo o Oriente, à América, à Antártica, ao Brasil…

Hoje, com quase todos os pontos explorados, o desafio de encarar o oceano numa embarcação ainda resiste. O novo objetivo é prever qualquer obstáculo para vencê-lo com a ajuda de equipamentos incríveis e, claro, experiência. São centenas, talvez milhares de viajantes pelas águas e o Brasil destacou entre os seus o velejador Amyr Klink, primeiro a circunavegar a Antártica em solitário, numa viagem acompanhada pelo mundo via internet e rádio.

Klink recorre à modernidade, mas dispensa o espírito dos antigos, que sonhavam em romper barreiras e tinham certeza de que a natureza é indomável. Foi este perfil misto que o projetou para a mídia brasileira. Agora o navegador ganha dois discípulos fiéis: Gui e Betão, a dupla que encara 174 dias no mar pela selvagem Rota Austral, no extremo sul da América. Ou, se preferir, aqueles dois brasileiros que a gente assiste velejar em águas distantes na tela pela nossa TV aos domingos à noite.

Tecnologia para estar perto. Coragem para ir tão longe. Este é o resumo desses novos navegadores e que leva você a conhecer, neste Aventura Brasil, detalhes da empreitada enquanto a dupla ainda está no mar. É que a viagem só termina neste dia 21 de abril, com a chegada ao Rio de Janeiro após 4 mil milhas náuticas percorridas e um trunfo: ser os primeiros a cruzar o temido Cabo Horn em barcos sem cabine. Boa viagem!

Durante 19 anos, Roberto Pandianni embarcou na noite paulistana. Betão foi empresário de diversas casas noturnas de sucesso, projetando novidades no lazer de adolescentes da capital. A aventura ficava para a luz do dia, participando principalmente de regatas em hobbie-cat. Trata-se de um barco à vela, sem cabine, pesando 256kg. A paixão em comum com o mar o fez parceiro de um ex-estudante de biologia, que se tornou piloto de avião e posteriormente fotógrafo e velejador. Gui Von Schmidt idealizou com ele a expedição “Entre Trópicos”, neste mesmo tipo de barco, em 1994, quando navegaram por mares e rios entre Miami e Ilhabela.

Junta, a dupla também participou de uma regata promocional pelos 500 Anos do Brasil, entre Lisboa e o Rio, no ano passado. Mas o grande sonho só virou realidade em novembro último, data em que iniciaram a Rota Austral. O caminho passa pelos oceanos Pacífico e Atlântico, começando no Chile. Para realizar a transição é preciso passar pelo Cabo Horn, tido como o maior desafio dos navegadores no mundo.

”Eu pensei nesta expedição por muito tempo até mudar de apartamento e descobrir sem querer que o novo prédio se chamava Puerto Montt”, conta Betão, referindo-se ao ponto de partida da expedição. Mas apenas intuição não bastava. Ao contrário: com dois barcos onde estariam em total exposição ao mar, e uma rota tão crítica, era indispensável um minucioso planejamento com uma palavra-chave: logística.

Receita de sucesso – Usada antes no jargão empresarial, hoje é a expressão principal na aventura moderna. Uma boa logística é receita para correr os mínimos riscos possíveis, quase que garantir o retorno e o sucesso e também o acúmulo de recursos para a realização do objetivo o que incluiu a projeção na mídia. No caso do Rota Austral, como foi de forma pioneira com Amyr Klink, a logística só poderia estar casada com a tecnologia.

Assim, os hobbie cats foram equipados com um sistema de flutuação positiva, que o impede de afundar mesmo com o casco furado ou trincado, além do GPS (global position system) instrumento de navegação -, telefonia via satélite e rádio VHS portáteis à prova d’água. Todos os tripulantes usam macacão impermeável com tecnologia dry suit e roupas de alpinismo por baixo, para suportar temperaturas mais baixas. Para comer dentro do barco são usados alimentos liofilizados (já populares entre aventureiros e que foram desenvolvidos para missões espaciais) para os dias (chegaram a ser 17 consecutivos) longe do apoio. Além da dupla foi incluídos os navegadores argentinos Santiago Iza e Felipe Tommasi.

Dois em um – O ponto de apoio é uma picape que refaz todo o percurso em terra no fim, são duas expedições numa só. A idéia é navegar durante o dia e recolher os barcos à noite (manobra muito facilitada por se tratar de embarcação de baixo calado), armando neles as barracas, com a equipe terrestre. O staff é composto por José Eduardo Amorozo, Marcelo de Paula, Edgard “Dega” Rombauer e Sandro Sanchi.

Com eles viaja o notebook onde relatos diários são escritos transmitidos via internet e, toda semana, trechos filmados vão ao encontro dos editores da TV Globo, onde são exibidos no programa de maior Ibope no domingo à noite, o Fantástico. Dois patrocinadores e quatro apoiadores viabilizam toda esta conta nada de tirar todo o dinheiro do bolso. O amadorismo fica para trás.

Todo o profissionalismo e experiência foram aplicados aos tripulantes, barcos e todo o staff da expedição Rota Austral. Em outubro, eles partiram de Ilhabela (SP), mas só em 3 de novembro iniciaram a trajetória, saindo, claro, da sonhada Pueto Montt (Chile). Investimento feito, mas haveria retorno garantido?

No mar, a natureza é capitã. E não há dúvida disso quando um roteiro inclui o famigerado Cabo Horn. Também chamado Cabo de Hornos, é um arquipélago com rochas de até 400m de altura. Francis Drake já havia passado pelo sul deste cabo em 1578, mas foi o holandês Willem Cornelis Schouten, que, em 29 de janeiro de 1616, deu-lhe o nome de sua cidade-natal, Hoorn. Misterioso, o local que separa o Pacífico do Atlântico no extremo sul do continente americano tem como característica a total imprevisibilidade. Tempestades súbitas podem levar o vento de 15 nós (27 km/h) para 50 nós (90 km/h) e as ondas de um a dois metros para mais de 15 metros.

Olho no barômetro – No dia 11 de janeiro deste ano, os tripulantes do Rota Austral estavam prestes a encarar o desafio. “Como um alpinista que parte para o ataque final ao cume de uma montanha perigosa, partimos às 6h30 da caleta Martial na ilha Herschel, a bordo do Guru (um dos dois hobbie-cats). De olho na queda violenta do barômetro, sabíamos que no máximo em 10 a 12 horas uma frente fria forte estaria transformando o calmo ar da manhã em um inferno de vento e mar. Tínhamos que navegar o melhor possível”, descreveu Gui no Diário de Bordo, que pode ser lido pelos internautas no dia seguinte.

A travessia foi, surpreendentemente, tranqüila. “Tínhamos condições perfeitas com visibilidade total da ilha e gradativamente o vento foi aumentando sua intensidade. Às 10h30 tínhamos (…) ondas longas e suaves, de três metros. Mal podíamos crer que realmente estávamos ali com simples Hobie Cats em um lugar onde grandes embarcações a vela afundaram durante tempestades ou pela total falta de vento quando eram arrastados pela correnteza até as pedras da ilha.”

Jornada concluída, veio o show que poderia ter sido um grande pesadelo. “Duas horas mais tarde o cenário era horripilante: 40 a 50 nós de vento, o mar esbranquiçado e chuva. Estávamos bem quietinhos dentro de nossas barracas, atrás de um barranco na praia, observando esse espetáculo da natureza e agradecendo por estarmos em terra protegidos depois de contornar o Cabo Horn.”

Deslize – Talvez a benevolência da natureza tenha sido um dos motivos para que os aventureiros cometessem um erro grave dias depois: acreditar que os ventos permaneceriam fracos em Rio Grande (Argentina) e deixar os barcos no pátio da Guarda Costeira, sem estaqueamento. De 75km/h, o vento mudou para 115km/h e capotou Guru, quebrando-lhe o mastro. Antes já haviam sido destacadas as experiências também críticas no Cabo San Diego, no Estreito de Lê Maire, com mar agitado ‘duas horas em uma centrífruga’ e vento contra rumo a Rio Grande, quando o La Samba teve o rompimento de um cabo que sustentava a vela da frente.

Até a fisiologia mudou os rumos da expedição. Em dezembro, antes do contorno do Hornos, Felipe sofreu um dia inteiro com uma súbita e forte dor de dente fácil de se resolver numa cidade. E no mar? “Pegamos o telefone via satélite para tentar encontrar ajuda. Conseguimos contato com uma amiga dentista no Brasil e ela receitou os medicamentos, de acordo com o que tínhamos na caixa de primeiros-socorros”, conta Betão. “Para ligar, Gui foi obrigado a contornar a pequena ilha pelas pedras e subir uma encosta buscando uma posição sem obstáculos entre o aparelho e o satélite.”

A expedição foi dividida em três fases. Na Pacífico (1.400 milhas, entre Puerto Montt e Ushuaia), Cabo Horn (200 milhas, entre Ushuaia e Cabo San Diego) e Atlântico (Cabo San Diego ao Rio), que é a etapa a ser concluída neste 21 de abril. Na primeira, as altas montanhas e glaciares foram cenário. Depois do desafio do Horn, encontraram a Patagônia argentina, com a Península de Valdez, santuário de elefantes-marinhos, baleias e pingüins.

Quem acompanhou a expedição pela TV, internet e pelo rádio, praticamente viajou junto. Foram escritos até agora cerca de 90 boletins por Gui e Betão, mais 16 pelo pessoal de terra. “Montar as duas barracas sobre os barcos, cozinhar, ligar o sistema de telefone, conectar o laptop, selecionar fotos do dia e fazer o texto do diário de Bordo é parte do nosso dia-dia”, descreveu Gui. Selecionei abaixo alguns momentos que quebraram esta rotina.

Cenas de filme– (15/11/01)
“Como na Patagônia ‘tudo pode acontecer’, a sensação é que sempre existe um monstro atrás da próxima montanha nos aguardando para dar o bote. Lembra as cenas de Apocalipse Now, do Copolla, onde uma lancha PT da marinha americana navega pelos canais vietnamitas infestados de vietcongs invisíveis nas matas.”

Intuição na chuva – (16/11/01)
“Às três da manhã, Felipe acordou cismado com vento Norte que soprava, saiu na chuva para verificar as condições do acampamento. Foi o que nos salvou de uma situação trágica: ‘La Samba’, naquele momento, já se encontrava com a popa dentro d’água e, em mais 30 minutos, o ‘Guru’ estaria flutuando por aí. Depois seriam as duas barracas montadas na grama que seriam inundadas com tudo dentro (…) Para nossa tristeza e desespero, descobrimos que a água da chuva estava entrando nas barracas pelas costuras, o fundo dela estava todo molhado, assim como os colchões isolantes.”

Com o príncipe – (30/11/01)
“Em Tortel, conhecemos Joaquim, um argentino que fazia parte do grupo e soubemos que se tratava de uma equipe do Raleigh international, que reúne jovens ingleses em um projeto que mistura trabalho comunitário em áreas distantes e a prática de esportes de aventura. A grande surpresa foi quando ele disse que um dos garotos do grupo era nada mais, nada menos, que o príncipe William da Inglaterra, filho do príncipe Charles e de Diana. Lá estava ele, junto com todos os outros mortais, a bater pregos, serrar madeira e inclusive preparando a bóia da tropa.”

‘Navegando’ no pântano – (24/11/01)
“Começamos a fazer as contas de quanto cada um carrega e quantas viagens são necessárias para chegar ao próximo acampamento: cada um transporta por viagem 30 kg, aproximadamente em uma distância de 600 metros durante dez vezes ao longo do dia, em um terreno lodoso, onde muitas vezes afundamos até os joelhos. Outras vezes, o percurso é feito com água até o pescoço.”

Homem ao mar (San Jullian, 02/02/01)
“Aceleramos muito, o vento empurrou mais ainda o Guru para frente e para baixo. A água espirrou para todos os lados e de repente o Guru freou bruscamente enterrando as duas proas na água. A popa se levantou e, com o efeito de catapulta, o Felipe foi jogado para perto do mastro e eu fui arremessado para fora.

Em uma fração de segundos, (…) abri os meus olhos ainda dentro da água e vi as letras vermelhas do casco borradas, um monte de bolhas de ar e comecei a dizer para mim mesmo, não, não, não! (…) Este é um dois maiores terrores de quem navega, cair no mar e assistir seu barco se afastar para sempre. Apesar de pensar assim o pavor de ficar ali abandonado me ocorria, era uma sensação horrorosa, um medo enorme de morrer.

Logo que tentei nadar percebi que estava quase imobilizado pelo excesso de roupas e do ar que havia dentro do dry suit. Ao mesmo tempo comecei a gritar para o Felipe virar o barco contra o vento e assim tentar pará-lo. O leme estava preso mas rapidamente ele conseguiu. As ondas e o vento empurravam lentamente o “Guru” para longe de mim, o desespero era insuportável. Comecei a dar braçadas com força e depois a bater os pés como um motor, apesar das botas. A imagem do “Guru” começou a crescer. (…) Finalmente me lembro da mão do Felipe avançando em minha direção. Parecia uma eternidade. Duas braçadas a mais e senti o couro da luva me agarrando e, logo em seguida, subi no barco com toda a vontade do mundo.”

Enfim, terra Brasilis – (29/03/01)
“Acordamos às 6h30 e ainda podíamos ver o facho de luz do farol do Cabo Polônio passando por cima de nossas barracas, um cenário estonteante. Logo mais estávamos na água para nossa última velejada em águas uruguaias. 45 milhas a frente estava o farol do Chuí, marcando um ponto muito desejado por todos nós, a chegada ao Brasil! O vento era Sudoeste firme e o mar com ondas grande e encorpadas. Os barquinhos se moviam rapidamente e o cenário passava como sempre muito bonito. Betão, no La Samba, nos mostrava uma garrafa de champanhe para chegada.”

É difícil prever o horizonte de novos desafios e desafiantes brasileiros em expedições marítimas e que tipo de tecnologia será inventada para impulsioná-los ainda mais longe. Gui e Betão concluem no Rio a empreitada e devem passar os próximos meses no trabalho de edição de todo o material coletado. A Rota Austral vai virar vídeo e livro.

Enquanto isso, o precursor Amyr Klink já testa o Paratii 2 (96 pés), barco que ele mesmo idealizou para a próxima empreitada: a volta ao mundo passando por todos os oceanos e pelos pólos. Desta vez, não mais em solitário. Outra vez, a exemplo da circunavegação da Antártica, que virou o livro “Mar Sem Fim”, o mastro foi especialmente desenvolvido para ele. Os detalhes do projeto já podem ser vistos na internet: www.amyrklink.com.br

Ainda para poucos, no Brasil, a aventura moderna, que começou pelas águas, seguirá seu rumo. A tecnologia segue sempre em paralelo. E o espírito desbravador, torcemos nós, também. Encerramos com duas frases desses apaixonados navegantes sobre a tecnologia:

“O que o público vê pronto e editado é algo extremamente belo e emocionante. Mas o processo de preparação e realização de uma aventura é muito mais complexo do que se imagina.”
Gui Schmidt e Betão Pandiani, Rota Austral

“As facilidades tecnológicas não tiram o risco, o perigo, não resolvem problema de solidão e saudade da família. Mas essa é uma revolução fantástica e inteligente. Antes, nossa comunicação (no mar) era meio burra.”
Amyr Klink, após retornar da Antártica.

A expedição Rota Austral tem patrocínio de Tam e Semp Toshiba e apoio de Red Bull, Nutrimental, Regatta, Revista Nautica, Hobie Cat, Anni Futuri e Oakley, e com o apoio do Portal Terra, Visa, Mitsubish Motors e Net Virtua. Saiba mais sobre a expedição no site www.rotaaustral.com.br

Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira

Last modified: abril 20, 2001

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