Abrigo malhador (foto: Jurandir Lima/ TrilhasTrilhas)
Esta viagem foi realizada entre março/abril de 2004 e promovida pela Trilhas & Trilhas, operadora de ecoturismo, sediada em São Paulo. O roteiro é uma mescla de aventura, história e cultura; baseado na mais ilustre obra de Guimarães Rosa, o romance Grande Sertão: Veredas. Fiz uma diário e gostaria de contá-lo aqui.
1º dia: Partimos de São Paulo com destino a Três Marias. O percurso era de 830 km, com duração prevista para 10 horas. Porém, durante o trajeto, resolvemos parar em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna. Itaguara foi a primeira e única cidade que Guimarães Rosa atuou como médico, entre 1931 e 1932. Exaustos do primeiro dia de viagem, fomos procurar algum lugar para jantar e resolvemos pernoitar na cidade.
2º dia: Após o café da manhã, fomos conversar com a Dona Maria Geralda, grande amiga da família de Rosa. Aos 77 anos e totalmente lúcida, dona Maria contou fatos curiosos sobre a vida do escritor. Segundo a mesma, as situações reais que Guimarães vivenciou, atendendo aos pacientes do município, influenciaram suas obras, como por exemplo, o conto Sarapalha, do livro Sagarana. Durante a nossa prosa, comecei a perceber a hospitalidade mineira que iríamos encontrar durante nossa viagem, através das palavras carinhosas desta anfitriã.
Seguimos para Três Marias e durante o trajeto, pudemos ver a transição entre a Mata Atlântica e o Cerrado. Também cruzamos vários caminhões transportando sacos e sacos de carvão vegetal, resultantes da destruição do Cerrado para o plantio dos eucaliptos, que dão origem ao carvão vegetal. Próximo a Três Marias, observamos um maravilhoso pôr-do-sol. Ao chegarmos no município, fizemos uma parada para interpretar a primeira página do Grande Sertão e pude compreender: Esses gerais são sem tamanho. (Guimarães Rosa).
3º dia: Pela manhã, saímos para um passeio de barco conduzido pelo Seu Norberto, pescador do Velho Chico há 46 anos. Seu Norberto, sempre muito atencioso, nos chamava a atenção para observar as garças, as revoadas dos tucanos, as pequeninas tartarugas que tomavam sol sobre troncos das árvores caídas dentro da água; tudo numa perfeita sintonia às margens do grandioso rio Âo Rio do Chico.
O cenário estava ideal para clicar belas imagens fotográficas. Após cerca de uma hora navegando, chegamos às corredeiras do São Francisco. No retorno, fizemos uma parada na Ilha Catuaba, habitat natural de vários micos-estrela e onde vive uma família com costumes totalmente adversos das grandes cidades. O uso do forno e fogão à lenha, o plantio de alimentos e a criação de animais para subsistência fazem parte do dia-a-dia na ilha. À tarde, seguimos para a magnífica Cachoeira do Guará, com aproximadamente 14 metros de altura e um volume dágua que mais parece uma catarata.
Fizemos um cascading da cachoeira e confesso que me senti uma verdadeira formiguinha diante daquela imensidão de águas cristalinas. Os guias locais, o Rick e o Valdeci, tiveram todo o cuidado no preparo do equipamento, afinal fui a primeira mulher a fazer este cascading. Pura adrenalina! No caminho, adivinhem o que presenciamos? Infelizmente, extensas plantações de eucaliptos que abastecem as carvoarias locais são mais de 80 fornos queimando noite e dia. Coisas da sociedade moderna.
Finalizamos nossa jornada assistindo a um colorido pôr-do-sol no Mirante do Velho Chico, avistando ao fundo, o lago da Barragem de Três Marias. Foi uma sensação diferente de tudo que já vivenciei e não tenho como descrever através das palavras. Emocionante!
4º dia: Iniciamos o dia visitando a interessante Cachoeira das Virgens – o nome é esse mesmo, das Virgens situada no fundo de um vale e encoberta pela Mata Atlântica, em pleno Cerrado. À tarde, seguimos rumo à Pirapora. Percorremos quilômetros e quilômetros sem avistar uma única alma viva. Durante o trajeto, pudemos observar e fotografar várias árvores do Cerrado com suas cascas de várias espessuras – algumas chegam a ter cerca de 08 centímetros. Um cenário diferente de tudo que já vi.
Agora entendo porque Guimarães Rosa escreveu: O Sertão é sem fim; o Sertão está em toda parte; o Sertão tá dentro da gente. O trajeto até Pirapora é por terra, um belo off-road, repleto de emoção. Durante o percurso, pegamos chuva e fomos presenteados com mais um espetáculo da natureza. Dois lindos arcos-íris completos e ao mesmo tempo. Chegando na cidade, fomos recepcionados por outro belo pôr-do-sol. Desta vez, ao lado da Ponte da estrada-de-ferro Marechal Hermes.
5º dia: Fomos conhecer o vapor Benjamim Guimarães, construído no início do século passado e o único em condições de navegar pelo São Francisco. Na seqüência, fomos ao centro de artesanato dos carranqueiros. Lá pudemos vê-los fazendo sua arte que é passada de pai para filho, ou melhor, de geração para geração. Seguimos em direção à Barra do Guaicuí, onde existe uma igreja em ruínas. Contam os moradores locais que a igreja estava sendo construída pelos jesuítas, por volta de 1635, com a finalidade de catequizar os índios e, numa batalha com os bandeirantes, a mesma foi abandonada e hoje serve como hospedeira de uma grande gameleira árvore típica do Cerrado.
Há outras versões para a história desta igreja, mas uma coisa é certa, hoje ela está sendo visitada por pessoas vindas de todo o mundo, inclusive do oriente. Seguindo em frente, passamos pela cidade de Ponto Chique, onde conhecemos o xerife que manda na cidade e o Seu Raulino, um sertanejo típico. Ao pedirmos uma coca-cola no seu boteco, ele disse: Ocêis querem uma laitica?. Na verdade, ele quis dizer coca-cola light. Chegando em São Romão, tivemos a felicidade de presenciar outro magnífico pôr-do-sol durante a travessia da balsa. Mais uma vez rendeu fotos belíssimas!
6º dia: Na saída de São Romão, em direção à Chapada Gaúcha, avistamos uma senhora com uma trouxa de roupas na cabeça. Dona Maria, de 55 anos, mãe de 12 filhos, percorre um trajeto de 10 km, ida e volta, para lavar as roupas da família no leito de um riacho que, segundo ela, tem a melhor água da região. Uma pausa para fotos e um dedo de prosa com a lavadeira que transmitia felicidade estampada no rosto, mesmo com todo aquele sofrimento.
Alguns quilômetros a seguir, nossa primeira parada para observar e fotografar uma imponente vereda. Ficamos encantados com os cantos dos pássaros, com o som das águas correndo no riacho e dos ventos soprando. Outro cenário de intensa contemplação. Encontramos também várias espécies de borboletas. As borboletas cá crescem devido o seco do ar… (Guimarães Rosa).
Após cruzarmos mais alguns quilômetros de terra, sem topar casa de morador – somente pássaros, gado e a natureza com sua paisagem única do Cerrado – atravessamos o Rio Urucuia com suas águas tranqüilas. Durante a travessia, de balsa, uma linda borboleta pousa em meu braço, onde permanece durante toda a travessia. Surpresas do Sertão!
7º dia: Finalmente chegamos ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Passamos o dia contemplando um cenário que parece um sonho. O Cerrado ainda intocado e as maravilhosas veredas com seus buritis, além de um imenso céu azul com nuvens branquinhas como se fossem de algodão.
Este Parque é de grande importância para a preservação do ecossistema local. As veredas transbordavam água devido às chuvas que caíram na região nos últimos meses. Chegamos próximo ao Rio Carinhanha que é um divisor natural entre os estados da Bahia e Minas Gerais. Durante o dia, avistamos vários pássaros e, quase no fim da tarde, tivemos a sorte de presenciar alguns veados-campeiro cruzando à nossa frente.
Como não podia ser diferente, outro pôr-do-sol entrecortado com as belas árvores de Pequi. Lógico que não podiam faltar as fotos. Durante o jantar, decidimos seguir direto para Januária e quando caímos na estrada novamente, paramos para observar outra formação de vereda. A noite de lua cheia nos convidou a um acampamento. Claro que aceitamos e passamos a noite ali mesmo, às margens da vereda.
8º dia: Acordamos com um fascinante nascer do sol. Aproveitamos o momento para fazer algumas fotos e partimos para o povoado da Serra das Araras, onde encontramos o Seu João Lira. Este sertanejo nos levou até a casa do Seu Leôncio, de 93 anos, que foi amigo de Antônio Dó, um dos mais temidos jagunços e personagem do livro Grande Sertão. Seguimos nossa viagem, fazendo uma parada no Rio Pandeiros, considerado o berçário do São Francisco. Logo após, fomos para Januária, onde apreciamos outro impressionante pôr-do-sol às margens do Velho Chico.
9º dia: Após café da manhã, seguimos até Fabião I, povoado próximo ao Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Após uma longa conversa com o gerente da APA Cavernas do Peruaçu, conseguimos autorização para visitá-lo, pois o mesmo não está aberto à visitação pública. Neste trajeto fizemos algumas fotos de uma árvore típica, a Barriguda. Almoçamos uma deliciosa galinha caipira e seguimos para o Parque.
Inicialmente, paramos no Abrigo do Malhador – quer dizer lugar onde os animais se ajuntavam – onde há um sítio arqueológico com inscrições rupestres e um enorme paredão de rocha calcária. Um visual bem interessante! Aqui pudemos conhecer a árvore Pau-preto, cuja madeira no passado era utilizada para confecção de rodas para carros-de-boi. Após uma pequena trilha leve, chegamos ao Buraco dos Macacos, onde infelizmente não pudemos fazer fotos, devido à luz não estar adequada, apesar do cenário bárbaro! A seguir, chegamos à antiga sede da fazenda que foi desativada.
Fizemos algumas fotos e fomos para a Gruta do Janelão, quando o sol já estava se pondo. A trilha até a entrada da gruta leva aproximadamente 40 minutos. Essa gruta é gigantesca e num dos salões existe uma clarabóia que, vista de baixo, tem a forma de um coração. Quando chegamos a este salão já era noite e ficamos deitados nas pedras vendo a intensidade da lua entrando pela clarabóia. Com o movimento da lua, as paredes da gruta ficavam iluminadas e mostravam seus imensos detalhes. Este foi mais um momento inesquecível, de total integração com o ambiente. Fantástico!
10º dia: Acordamos cedo para ver o sol nascer e produzir mais algumas fotos do carste nome da grande extensão calcária existente no local (nota do editor: carste ou carst deriva do vocábulo “kras”, que significa “campo de pedras calcárias”, designando a região noroeste da Iugoslávia e nordeste da Itália. O carste é formado por rochas solúveis como dolomitos, evaporitos, quartzitos, etc.). Tomamos nosso café da manhã e retornamos para a Gruta do Janelão, a mais cobiçada do Parque. Durante o dia pudemos conferir o quanto a trilha é bonita e também ouvimos os canto de vários pássaros como: quem-quem, maritacas e lindas espécies de borboletas.
Fomos até o primeiro salão e não prosseguimos, pois tínhamos que atravessar o Rio Peruaçu que estava com o leito bem cheio. O rio nasce fora do Parque e atravessa a gruta em toda sua extensão, inclusive, existe uma parte do mesmo que não pertence a nenhuma área de preservação. Voltamos para a nossa base, almoçamos e seguimos para a Gruta Bonita, que faz jus ao nome.
A trilha de acesso à gruta estava totalmente fechada e tivemos que ir abrindo caminho no meio do capim. Que aventura! Lá existem diversos salões ornamentados por uma variedade de espeleotemas, como estalactites, estalagmites, cortinas, helictes, colunas e outras formações. Ao fim da tarde retornamos para Januária com nossos corações repletos de felicidade e renovados pela oportunidade única de presenciar cenários exuberantes como aqueles. A natureza é mágica!
11º dia: Pela manhã, fomos à Gruta do Tatu. Para meu alívio, esta possui uma trilha bem mais fácil. Visitamos vários salões dessa gruta, que possui imensos travertinos, alguns tão grandes que chegam a comportar um homem em pé. Um dos nossos guias, o Fanta que é um verdadeiro mateiro, foi explicando os nomes das várias espécies de vegetais do Cerrado que encontramos ao longo do caminho. Por lá é comum ouvir nomes como: tinguizeiro, caraibeira, pequizeiro, pitombeira, etc.
Neste dia, conhecemos outra sertaneja. Ela estava em sua casa, varrendo o quintal e quando paramos para fotografá-la, se mostrava inquieta diante das câmaras. Também pudera, no seu cotidiano não existem estas coisas mecanizadas, automatizadas e outras …izadas. Lá o dia-a-dia é bem mais natural, onde o sabor da comida leva o cheiro do fogão à lenha, onde o transporte é feito através do carro-de-boi, onde a vida caminha a passos lentos, sem o stress da vida urbana.
12º dia: Como os momentos de prazer não são eternos, chegou a hora de retornar. Nossa aventura chegou ao fim. Tivemos que voltar ao asfalto, ou melhor, retornar à rodovia BR-135 que um dia já foi asfaltada e hoje só restam buracos. Depois de 3.315 quilômetros percorridos, incluindo os 780 por estradas de terra e areias, chegamos em Sampa.
A viagem foi uma experiência maravilhosa, encantadora, apaixonante e inesquecível! Tive a oportunidade de entrar num cenário que parece inóspito; estando muitas vezes isolada do mundo, sem comunicação através de telefone celular, internet e até mesmo telefone fixo. Na verdade, foi um encontro com pessoas simples, cordiais e cheias de histórias de vida. Enfim, uma lição de vida em todos os sentidos!
Este texto foi escrito por: Andréa Tamura