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O que é preciso para ser guia de montanha? (parte 2)

Cada um na sua. Assim é a formação dos guias nos principais clubes de montanhismo do Brasil. Na segunda parte deste artigo, conheça as normas no eixo Rio-SP

Fiz alguma pesquisa, acredito que suficiente para os objetivos dessa divulgação. No Rio, onde o movimento clubista é mais antigo e ativo, além dos diversos Clubes (Brasileiro, Rio de Janeiro, Carioca, Petropolitano, Teresopolitano, Light, Guanabara), associações e escolas de escalada, existe uma nova entidade com tendência a se tornar Federação estadual, que é a InterClubes, congregando todas essas entidades. Consultei a todos através da InterClubes e dou a seguir um resumo das respostas que obtive.

InterClubes – a InterClubes está trabalhando na confecção de currículos mínimos para Curso de Guia e Curso Básico visando melhorar e uniformizar a formação do pessoal, uma vez que no Rio existem diversas “escolas” (leia-se “estilos”, ou “ênfases”) na formação de guias e de montanhistas em geral. A idéia é que esse trabalho sirva de base para uma nova discussão visando a sua melhoria, o que já está previsto no calendário da InterClubes. Esse esboço preliminar de currículo enfoca:

  • Técnicas básicas de escalada: cordas e nós, sistemas de segurança, equipamentos, rapel, etc;
  • Orientação e mapas: topografia, bússola, GPS, etc;
  • Primeiros Socorros;
  • Logística: alimentação, equipamentos, meteorologia, avaliação dos participantes, transporte, etc;
  • Técnicas de Resgate: roldanas e blocantes, içamento, tirolesas, macas, etc;
  • Técnicas de escalada livre e artificial: proteções fixas e móveis, equalização, estribos, técnicas de ascensão em corda;
  • Conquistas: avaliação do impacto ambiental, avaliação da graduação, critérios de colocação de grampos, estilo, etc;
  • Ecologia básica;
  • Ética no Montanhismo;
  • Técnicas e critérios para abertura de trilhas

    O currículo prevê ainda duas categorias de Guia, o Guia de Caminhada e o Guia de Escalada, com diferentes critérios para qualificação desses tipos: o Guia de Caminhada deve realizar caminhadas e travessias de todos os graus, com e sem bivaque, guiar vias até 2º grau e participar até 3º grau; o Guia de Escalada deve poder atender a todas as exigências do Guia de Caminhada e além disso guiar vias até 4º grau.

    CEB (Centro Excursionista Brasileiro) – no mais antigo dos clubes de montanhismo do Brasil, não há normas ou currículo formalizado. Da mesma forma preconizada pela InterClubes, existem diferentes categorias de Guias, o Guia de Escalada e o Guia de Caminhada e suas diferenças básicas são: o guia de caminhada não realiza excursões de escalada, mas deve conhecer as técnicas de escalada e ser capaz de guiar até o 1o grau. Já o guia de escalada recebe o título de guia de escalada e caminhada e neste último curso, especificamente, os candidatos a guia deveriam ter condições de guiar no mínimo 3o grau.

    O candidato a guia é indicado pelo próprio Corpo de Guias do CEB. O curso foi montado tentando enfocar sempre a responsabilidade e a segurança, importando menos o grau que o guia consegue escalar do que sua capacidade para conduzir uma excursão e seus participantes com a maior segurança possível, trazendo-os de volta sãos e felizes. Nas palavras do coordenador do curso, Arthur Costa da Silva: “um guia consciente não pode se aventurar com participantes em vias mais difíceis colocando-os em risco desnecessário. Não sou contra a aventura, acho que ela deva até existir e está no sangue de todo o montanhista, mas o guia tem que saber a hora certa e com as pessoas certas. Este é um ponto crucial, de vital importância”.

    CEP (Centro Excursionista Petropolitano) – De acordo com a Lis Maria, de Petrópolis, no CEP, existem cursos de guias a cada 2 anos. Os guias formados pelo CEP são bem capazes no que se refere à escalada, porém a formação é incompleta quanto a problemas de mínimo impacto, orientação com mapas e previsões meteorológicas. Os clubes cariocas juntamente com o CEP tem tentado melhorar isso, convidando instrutores como Garrido (medico, fuzileiro, escalador e conquistador de inúmeras vias), André Ilha, Flávio Wasniewski (cartógrafo), meteorologistas, pesquisadores e outros escaladores, como o Sérgio Tartari, para aulas extras. Mesmo assim a Lis entende que ainda falta muita coisa, entre outras uma avaliação no final do curso: “Não é cobrada prova do que se aprendeu, nem é requerido estágio pratico do guia.”

    CAP (Clube Alpino Paulista) – de acordo com o atual presidente do Clube, Marcelo Krings, “o Clube Alpino Paulista foi fundado em 1959 com a finalidade de conferir a montanhistas o título de Guia de Montanha. Nestes 40 anos o CAP formou 36 guias, dos quais 16 estão em atividade, e 25 aspirantes a guias, dos quais metade ainda ativos aguardando serem promovidos a guias. Mesmo sem uma regulamentação brasileira, seguindo normas européias e outras adaptadas à nossa realidade, é muito difícil tornar-se um Guia de Montanha em um clube como o CAP.

    Os guias do CAP são reconhecidos como guias na Argentina, tanto que os cursos de gelo que são oferecidos pelo CAP em Bariloche têm a concordância dos clubes e da Intendência de Parques Nacionais.”

    Comentários do autor

    Analisando os diversos currículos percebe-se que cada entidade impõe seu estilo ao Guia formado sob suas hostes. E esse estilo tem a ver com a localização geográfica e com a visão que a entidade tem do montanhismo. No Rio, com a abundância de rochas para se escalar, os Clubes tendem a se concentrar na escalada de rocha como “eixo” da formação. Já na Europa e nos EUA existe maior preocupação em dar uma formação abrangente, envolvendo rocha, neve, gelo, escalada alpina, resgate e primeiros socorros.

    Diante disso, acredito que deveríamos procurar estabelecer pelo menos dois níveis de currículo para Guias de Montanha no Brasil: Nacional e Internacional. O primeiro, naturalmente, seria o Guia apto a enfrentar todas as condições previstas em montanhas dentro do Brasil. E o segundo acrescentaria a essa formação o expertise técnico e a experiência para enfrentar montanhas nevadas em geral mais os problemas da altitude, o que o habilitaria a ser reconhecido por organismos internacionais, como a UIAGM (União Internacional das Associações de Guias de Montanha).

    Observei também que nos cursos brasileiros geralmente se dá muita ênfase aos aspectos técnicos da escalada – sem dúvida importantíssimos – em detrimento de matérias não menos importantes, como liderança, saber lidar com situações de emergência, relacionamento interpessoal, enfim, aspectos mais subjetivos mas que fazem muita diferença no resultado final de uma expedição/excursão à montanha. Os Guias franco-suíços, só para citar um exemplo conhecido, são famosos por sua lealdade ao cliente. Segundo versão divulgada por pesquisa histórica recente, na conquista do Annapurna, a primeira de uma montanha acima de 8.000m, Lachenal (Guia de Chamonix companheiro de Lionel Terray) só não abandonou Maurice Herzog durante o ataque final ao cume devido a esse sólido preceito.

    É bom lembrar que esse trabalho se restringiu a “Guias de Montanha” e, de propósito, não entrei na discussão mais ampla da profissão de guia em geral, que englobaria o Guia turístico, o Guia ecológico e outros profissionais não exatamente especializados no ambiente “montanha”.

    Para dar continuidade a essa discussão, que considero aberta, convido os interessados a refletir sobre o assunto, tendo em mente que:

    1. Devemos enxergar a profissão de Guia de Montanha como uma atividade extremamente especializada que depende de uma formação técnica e prática extensa, treinamento e reavaliações freqüentes, tão – ou mais – exigente quanto as demais profissões de responsabilidade direta sobre a vida humana, como medicina, engenharia, etc;

    2. A comunidade dos Montanhistas do Brasil deve se unir em torno de suas entidades e instituições para gerar um processo formal de treinamento, formação e avaliação de Guias visando futuro reconhecimento nacional e internacional do Guia Brasileiro como profissional sério, competente e com profissão regulamentada, da mesma forma que médicos, dentistas, engenheiros, etc.

    Silvério Nery é escalador de rocha e gelo com longa experiência em trekking e montanhismo. Junto com sua esposa, Jussara Nery, que trabalha com segurança em altura, há
    sete anos organiza cursos de escalada em gelo na Cordilheira Real, Bolívia.

    Este texto foi escrito por: Silvério Nery