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O triatleta brasileiro Alexandre Manzan explica como planejou sua aclimatação para subir a Chopicalqui, no Peru


Manzan no cume (foto: Arquivo pessoal)

Eu já tinha ouvido falar dos efeitos da alta altitude no corpo humano quando subi minha primeira montanha, em 2001. Com quase 3 mil metros de altitude, a ascensão da Pedra da Mina, na Serra da Mantiqueira (MG), não gera nenhum tipo de desconforto ou consequência grave na maioria das pessoas. Na ocasião, vigiava curiosamente cada metro conquistado a espera de algum sintoma da altitude. É claro que saí de lá sem notar nenhuma alteração em meu corpo.

Além da beleza inexplicável das montanhas, creio que a curiosidade em saber como meu corpo se comportaria em altitudes elevadas me direcionou a Cordilheira dos Andes. Eu já havia subido a maioria das montanhas brasileiras, e o Aconcágua, com seus 6.962 metros (a montanha mais alta das Américas), me chamou a atenção.

Imaturo no montanhismo de altitude, me joguei em uma expedição ao Aconcágua, em 2008. Para não chegar tão perdido, li antes vários artigos a respeito da aclimatação ideal. Existem inúmeras teorias e, principalmente, diferentes ritmos de adaptação. Para piorar a situação, em decorrência dos meus míseros 20 dias de férias, tive de me encaixar em uma expedição cujo prazo para atingir o cume seria de 10 a 14 dias. Até então, achava que seria um prazo satisfatório.

Mas, lá percebi que “paciência e humildade” são dois itens fundamentais na montanha. Apesar de termos subido e descido regularmente a metragem padrão para a aclimatação naquela montanha, senti bastante a minha (não) adaptação. Entre mortos e feridos, após12 dias de perrengue no Parque Aconcágua, pisei no cume.

Após esta expedição, realizada no verão do Hemisfério Sul (a subida foi caminhando), fiquei com vontade de escalar uma montanha com gelo. Já tinha ouvido falar da Cordilheira Branca, no Peru, de suas belas montanhas e preços convidativos. Então, planejei, durante seis meses, um trekking naquela região (o de Santa Cruz, de 40 quilômetros) e uma montanha de 5.700 metros (a Pisco) como parte de minha aclimatação para o objetivo principal: subir a Chopicalqui, de 6.350 metros.

O homem não foi concebido fisiologicamente para viver confortavelmente acima dos 4 mil metros de altitude. Diante disso, quando se tem a vontade de dar uma olhadinha acima de nossos limites, é necessário que o corpo humano faça uma série de adaptações fisiológicas para que possa suprir a demanda energética da subida e também de seu metabolismo básico.

Ao nível do mar, há uma pressão atmosférica (de aproximadamente 1.000 milésimos de bar), cuja influência em nossos corpos dita a quantidade de oxigênio absorvido pelo organismo. À medida que subimos para as altas altitudes, o organismo se adapta à diminuição da pressão atmosférica aumentando a quantidade de glóbulos vermelhos, que são os responsáveis pela captação e transporte de oxigênio para os tecidos. Desta maneira, é possível ir a grandes altitudes com esta adaptação fisiológica. Mas, o aumento da taxa de glóbulos vermelhos no sangue requer aproximadamente seis semanas para que possa alcançar um máximo de 90% de adaptação.

Segundo Enric Subirats Bayego no livro Socorrismo y Medicina de Urgencias em Montaña, é recomendado para uma aclimatação conservadora passar ao menos duas noites a 2.500 ou 3.000 metros antes de partir para altitudes superiores; a partir de 2.500, não tentar superar os 600 metros de desnível para cada noite dormida; a cada 1.000 metros de desnível conquistado, passar uma segunda noite na mesma altitude que a noite anterior; sempre subir lentamente; e, acima dos 3.500 metros, não superar os 300 ou 400 metros de desnível diário, descansando um dia para cada dois dias de ascensão.

Contudo, analisando a logística de uma expedição para uma grande montanha, nota-se a inviabilidade de executar a risca um cronograma como este. Assim, o que irá realmente medir sua aclimatação na montanha será sua percepção de conforto e o bom senso. É claro que será quase impossível não se sentir desconfortável na montanha, mas os sintomas de uma má aclimatação são claros: náusea, dor de cabeça, inapetência, insônia, etc.

O mal da montanha, consequência de uma má adaptação, pode afetar 75% dos que sobem acima dos 4.500 metros, podendo evoluir para um edema cerebral ou pulmonar se o montanhista não descer. O mal da montanha pode apresentar como sintoma dor de cabeça associada à fadiga e debilidade, vertigem, inapetência, náusea e vômitos, e insônia. (No final deste artigo, há uma tabela de valoração clínica do mal da montanha e os procedimentos recomendados para cada situação. Vale destacar que é uma tabela de referência).

Um detalhe de extrema importância na aclimatação é a ingestão constante de líquidos. Uma hidratação bem feita irá auxiliar, e muito, no processo de adaptação. Um recurso para se orientar quanto à hidratação é notar a coloração do xixi: quanto mais claro ele estiver, mais hidratado você está. A desidratação é a primeira causa de dor de cabeça em altitude. Se depois de beber um litro de água e tomar um comprimido de analgésico a dor não passar (e não há nenhum outro sintoma de mal da montanha), essa dor pode ser atribuída à desidratação.

E eu acredito que o ritmo ideal de aclimatação de cada um é concebido por meio de tentativas e erros e, por isso mesmo, é um processo muito individual.

Para a minha expedição à Cordilheira Branca, fiz o seguinte cronograma a partir da minha experiência no Aconcágua e embasado no ritmo de ascensão de Bayego:

Como Huaraz, cidade-base para a cordilheira, se situa a 3.090 metros acima do nível do mar (e oferecendo uma estrutura bem melhor que a de um acampamento), optei por ser um bom ponto de descanso entre as investidas mais altas. Desta maneira, após dois dias de minha chegada a Huaraz, saí para o trekking Santa Cruz, o qual cruza dois grandes vales oscilando entre 3.700 metros e 4.800 metros. Dormi a primeira noite a 4.200 metros, passando o dia seguinte a 4.800 metros e, depois, pernoitando a segunda noite a 3.900 metros.

Retornei a Huaraz para desfrutar de mais dois dias de descanso. Na sequência, subi a minha primeira montanha na temporada: a Pisco, com 5.700 metros. No primeiro dia de ascensão dela, se alcança o acampamento-base, a 4.680 metros, onde dormi a primeira noite. No dia seguinte, já é possível realizar o ataque ao cume, a 5.700 metros, retornando para pernoitar mais uma noite no acampamento base, a 4.680 metros. Até aqui foram contabilizados sete dias na região da cordilheira. No dia do ataque à Pisco, me senti bem fisicamente e sem nenhum sintoma de má aclimatação.

Depois, a ideia inicial era, após a Pisco, seguir direto para o acampamento-base do Chopicalqui. Mas, como a Pisco se mostrou bem mais difícil que eu imaginava, achei que mais dois dias em Huaraz me fariam retornar à montanha com o moral mais elevado e mais descansado. Assim, após mais dois dias a 3.090, subi direto para o acampamento Moraina do Chopicalqui, a 5.000 metros. No dia seguinte, subimos para pernoitar uma noite a 5.420 metros no campo 1, onde senti uma leve dor de cabeça devido à rápida ascensão que nos obrigamos a fazer durante um trecho de 400 metros, por conta das pedras soltas caindo.

Dois dias depois, eu e o peruano Juan fizemos o ataque ao cume da Chopicalqui, a 6.400 metros. Na volta, descemos direto para o acampamento Moraina (5.000). Apesar da difícil escalada ao cume, finalizei o dia sem sentir nenhum dos efeitos da altitude (sem considerar o desgaste físico, claro). Credito tal fato principalmente por ter dormido a 5.000 metros neste dia. Retornei à Huaraz no dia seguinte, finalizando minha temporada na Cordilheira Branca.

A parte mais interessante da altitude, tirando o visual e a experiência, é, sem dúvida, o legado cardiorrespiratório que permanece por alguns meses. Logo após a minha temporada na região do Aconcágua e na Cordilheira Branca, me senti bem mais forte nos treinos e nas competições que participei. (Tomara que a concorrência não descubra!).

Tendo me sentido tão bem nesta temporada de montanha, tentei apontar alguns fatores determinantes para o sucesso de minha aclimatação. O que ouvi de alguns escaladores com quem conversei foi que o corpo, após algumas experiências em altitude, de certa forma acaba por obter uma memória fisiológica, fazendo com que uma adaptação posterior ocorra de forma mais rápida e de maneira mais confortável.

Outro fator determinante foi minha condição física, sem dúvida. Não em relação à aclimatação especificamente, mas por me permitir andar e subir vários metros por dia sem que isso se tornasse mais um doloroso processo.

E, por fim, a lição que fica desta experiência, mais uma vez, é a marcante soberania da montanha, pois não importa o quão forte e preparado alguém seja, a montanha é que decide quem sobe e quem volta.

Some um ponto por sintoma: dor de cabeça, náuseas, falta de apetite, insônia, vertigem.
Some dois pontos por sintoma: dor de cabeça que não passe com aspirina, vômitos.
Some três pontos por sintoma: respiração rápida, fadiga intensa, diminuição da quantidade de urina.

RESULTADO

>> Mal da montanha leve (de 1 a 4 pontos):pode melhorar com repouso, hidratação e doses de ibuprofeno (400 a 600 miligramas, de 6 a 8 horas) ou paracetamol (1 grama a cada 6 horas).

>> Mal da montanha moderado (de 4 a 6 pontos): obriga a pessoa a parar de subir até sentir a melhora completa dos sintomas, o que pode ocorrer de 24 a 48 horas.

>>Mal da montanha grave (acima de 6 pontos): obriga a pessoa a descer até uma altitude na qual não sinta mais os sintomas.

Este texto foi escrito por: Alexandre Manzan, especial para o Webventure