Descida do cume (foto: André Chaco/ www.webventure.com.br)
O Vulcão Domuyo é uma montanha bastante atraente. Sua escalada equilibra muito bem as características de um cume patagônico, um ambiente desértico, alguma altura, longas e inclinadas rampas de gelo, e muito vento. Mas, principalmente, propicia um distanciamento das multidões de escaladores que perambulam pelas montanhas clássicas da Patagônia durante o verão austral.
Certamente não é a falta de atrativos naturais que deixa os escaladores afastados do Domuyo. Isso ele tem de sobra. Quem sabe o fato de ser a montanha mais alta da Patagônia afugente aqueles que não queiram se aclimatar? Talvez a distância dos grandes centros e a dificuldade de acesso, a falta de apoio e resgate também limitem um pouco a vontade de até lá, se aproximar, ou ainda, quem sabe, devido a alguma dificuldade técnica e logística, que ceifou a vida de dois escaladores no ano passado mortos por congelamento.
Os motivos são incertos, mas o que muito me impressionou foi a sensação de estar sozinho na montanha, fato este, que nas últimas viagens não consegui realizar.
Estar só com meus amigos, em uma montanha gigantesca, sem filas, nem tumultos, apenas pegadas, remete um pouco ao alpinismo exploratório, aquela sensação de ver o que ninguém viu, internalizado nos pensamentos, na surpresa da próxima curva, no cansaço da mochila pesada, no passo a passo, parando para descansar de vez em quando e observando toda aquela natureza selvagem ao redor, onde nos somos os intrusos e de tanto em tanto convêm pedir licença.
O desejo de estar só na montanha não é egoísmo, é contar apenas com a possibilidade de sentir com a menor artificialidade possível o desafio que a montanha impõe a cada um quando se coloca o pé nela.
Tem razão quem diz que a Patagônia ainda é uma região cheia de explorações, grandes e pequenos desafios, locais praticamente isolados, não necessariamente virgens.
Quem quiser se dedicar a escalar e caminhar para sempre na Patagônia argentina e chilena será capaz de evitar os acampamentos superlotados e sua falta de higiene, pouco se incomodará com o incessante vai e vem de pessoas e animais de carga e não terá barulho de vizinhos.
Soube do Domuyo, procurando as opções acima, através de um colega em um curso de Busca e Resgate da UPAME – União Panamericana das Associações de Montanhismo e Escalada.
Antes de decidir pesquisei sites e livros. As poucas informações que encontrei foram suficientes para tomar a decisão de deixar a segunda ida para o Gelo Patagônico Sul para outra oportunidade e direcionar esta viagem para a província de Neuquén.
Este estratovulcão* foi escalado pela primeira vez em novembro de 1903, poucos registros chegaram, e não consegui achar nenhuma foto da época da expedição. A expedição tinha pelo menos quatro pessoas: o sacerdote Salesiano Lino del Valle, seu irmão Gumersindo del Valle, Santiago Forgerini e José Roza.
Imagino a dificuldade de aproximação naquela época se hoje, mais de 100 anos depois, as estradas são de terra e fora pequenas vilas a região permanece isolada…
Aparentemente o Domuyo é um vulcão extinto, não se tem registro de atividade moderna, no entanto águas termais existem por toda parte, próximas ao vulcão, e o cheiro de enxofre é constante na água e às vezes no ar.
* vulcão composto de camadas alternadas de derrames de lava e cinzas, às vezes cônicos como o Vulcão Villa Rica, no Chile. Podem assumir formatos variados em funçao do tipo de magmatismo que apresentam.
Bariloche foi a cidade base para nós, pois para desenferrujar programamos algumas caminhadas pelo refúgios de montanha. Em uma caminhada curta até o Cerro Otto é possível ver a casa do Otto Meiling, e visitar a tumba deste expoente do montanhismo, além de ter uma magnífica vista do lago Nahuel Huapi.
Um pouco mais distante agora uma atividade de dia inteiro e mais de 600m de desnível alcançamos o Refúgio Lopez, onde encontramos nosso conhecido de longa data, o antigo refugiero do Otto Meiling no Tronador, Sergio Barbagallo.
A vista do Lopez é lindíssima os lagos do circuito Chico, a Ilha Vitória e todo o anfiteatro nevado que cerca o Lopez.
Por último, da base do Cerro Catedral até o refúgio Emílio Frey, um dia inteiro de subida e decida entre bosques e riachos. O Frey como é conhecido é uma meca para os escaladores de rocha, com paredes de todos os tipos, gostos e dificuldades, além de ter uma paisagem deslumbrante das agulhas de rocha sobre a Laguna Tomchek.
Chos Malal foi a última parada para as necessidades de última hora, dali pra frente, só estrada de terra, muita poeira e alguns vilarejos. Em Varvarco, o derradeiro povoado 70 km antes do Domuyo, tivemos farta e boa informação.
Aqui cabe uma nota: em todas as vilas e vilarejos existia uma oficina de turismo funcionando, equipada com mapas, textos e toda sorte de informações que o viajante sozinho pode precisar para aproveitar bem e ao máximo sua visita à região.
Nos postos policiais tem representantes do turismo oficial oferecendo ajuda para encontrar hospedagem e bons lugares para comer. Todos as hospedagens, serviços e restaurantes estão sinalizados, a sinalização viária mostra mapas e distâncias e os guias que encontramos e conversamos nunca insinuaram que sua presença era necessária, muito menos obrigatória. Sem intimidação, sem pressão e com muita educação.
Vale a pena contar que quando chegamos ao local de inicio da caminhada de aproximação encontramos um pequeno grupo deixando a montanha acompanhados de um conhecido guia regional, este emprestou seu conhecimento e habilidade para aqueles que não tinham experiência, juntos, todos os integrantes alcançaram o cume.
O fim da estrada de terra chega em uma poeirenta plataforma chamada El Playon, por coincidência encontramos um arriero voltando e que estava disposto a despachar um cavalo até o acampamento base naquele mesmo dia.
Dividimos assim as mochilas, embarcamos uma parte no cavalo e levamos a menor parte conosco. O Domuyo não é visível desde o Playon, apenas 3 horas depois, subindo pela beira de um riacho de degelo, é possível ver a face sul, toda nevada depois da última tempestade.
O cume ainda não é visível, a única vista do cume por esta face da montanha só é possível pouco antes de atingi-lo, no final de uma imensa rampa de gelo e neve.
O acampamento base foi instalado a 2.900m, onde existem algumas proteções de pedra para poucas barracas e um pequeno refúgio de metal, utilizado normalmente para emergências ou para comer em dias de muito vento. Convêm lembrar que o Domuyo não está localizado na Cordilheira dos Andes e sim em uma cordilheira mais a leste chamada Cordilheira do Vento, da qual o Domuyo é seu cume mais alto.
O campo base é confortável, tem água de degelo, está protegido do forte vento sul e tem até uma pequena poça de água morna, muito útil e reconfortante.
O segundo dia foi um pouco mais pesado, pois precisávamos levar todo o material para 3.800 metros, um desnível de 900m, que deveria nos levar até o acampamento avançado.
A subida é lenta pois o terreno não ajuda, embora a trilha esteja bem marcada, um traço que se perde nas curvas da montanha, o piso é constituído de rochas soltas e cinza vulcânica, ambos muito instáveis que escorregam e não ajudam muito no ascenso.
Após algumas horas, começam a aparecer neveiros e penitentes, vencidos com facilidade, pois desde o base, em função do frio e do peso calçávamos as botas duplas. O acampamento alto foi alcançado depois de 6 horas de caminhada contínua, porém em ritmo lento.
Um pequeno glaciar a poucos metros forneceu água potável e um par de muros de pedras protegeu nossas barracas do feroz vento do sul. Nesta noite tivemos luz até depois das 22 horas, o vento sul foi aumentando de intensidade, e o firmamento noturno era um espetáculo de estrelas, tracejado aqui e ali por estrelas cadentes e o fraco brilho da lua minguante.
A Cordilheira do Vento fez valer seu nome. No fim do dia, o vento sul aumentou de intensidade e assim se manteve durante toda a noite. Rajadas mais fortes sacudiam as barracas, que mesmo protegidas, balançavam bastante. A sensação se é que isto é possível era a de estar dentro de uma batedeira.
Dormimos pouco e mal, o que mais afligia era saber que com este vento talvez não fosse possível tentar o cume naquela manhã e dependendo da paciência teríamos que ficar sentados lá mais um dia.
Amanheceu e o vento continuava, por volta das 7 horas as rajadas diminuíram de intensidade e ficaram mais espaçadas e o barômetro subia, prenuncio de uma calmaria. Em uma hora estávamos a caminho.
Direto do acampamento avançado começa uma rampa sobre sedimentos que atravessa uma zona de fósseis. Concentrado, no caminho que subia por uma cresta, ainda com bastante vento sul, deixei os fósseis para uma olhada na volta.
A trilha progredia ora pela sombra ora pelo sol, após duas horas, atravessando terreno solto e nevoeiros, alcançamos uma língua de glaciar que devia ser remontada pela face leste da montanha. Sem cerimônia a rampa começava com uns 40° de inclinação e possivelmente alcançou em alguns trechos 60°.
Progredindo lentamente o fim da rampa mostrava um promontório de rocha, flanqueado pela direita, um pequeno vale e uma segunda subida, tão inclinada como a primeira, mas muito mais longa. De longe era possível divisar um contínuo zig zag, uma tênue trilha de pegadas no glaciar, acompanhando a crista.
Uma estimativa do tamanho desta rampa ficou entre razoáveis 300m e respeitáveis 400m vencidos em pouco mais de duas horas e meia. No final dela procurávamos pelo cume, a direita um promontório, a esquerda outro, parecia mais alto, com mais neve, será aqui ou lá?
Mais um passo na ladeira… um pequeno colo rochoso… mas o cume ainda não era ali, agora era possível ter uma vista dele, uns 500 metros adiante, beirando a cratera do vulcão, coberta de gelo azulado e neve. Um pequeno desnível e alguns nevoeiros depois lá estávamos.
Em seis horas cravadas do avançado ao cume, quatro amigos, satisfeitos com a atividade e felizes por ter planejado adequadamente os movimentos desde São Paulo até o cume do Domuyo.
Planejamos bem, mas as montanhas merecem todo o crédito, não foi nossa insistência que nos levou até lá e sim as condições locais que permitiram que nossas habilidades e vontades se encaixassem nas características da montanha. Se fosse um pouco mais duro, mais alto, mais frio, mais longe ou mais inclinado talvez ainda desse para completar, mas isto é outra história e provavelmente outra montanha.
O cume foi rápido, de lá nenhum ponto era visivelmente mais alto, o que oferece uma perspectiva interessante do terreno em volta. Para leste algumas elevações e outros vulcões menores, já sem seus cumes nevados. Para oeste a Cordilheira dos Andes e o Llaima, Copahue, Chillan e Antuco, outros vulcões, à distância.
Muitas fotos, uma Coca-Cola devidamente guardada e uma barra de Mantecol (pasta de amendoim com chocolate) se fizeram presentes para a comemoração.
Nenhuma escalada está completa no cume; ainda faltava chegar no avançado e depois, se desse tempo, no mesmo dia até o base. Duas e meia da tarde era o limite para iniciar a descida, pontualmente, as últimas fotos uma última olhada do cume e agora tudo era para baixo.
Por isso, ao planejar e medir energias convêm lembrar do detalhe da volta, o gás não pode acabar lá em cima, ele tem que durar toda a descida e ainda sobrar um pouco quando tudo acabar.
Assim dá para sentir que a atividade que se fez, embora longa e cansativa, valeu a pena e de certa forma foi prazerosa fisicamente e não um desastre que impeça de andar no dia seguinte, cheio de dores musculares, bolhas, ferimentos causados pelo frio e sol e coisas deste tipo.
Em pouco mais de cinco horas, incluindo uma parada para um chá no avançado seguida de uma desmontagem rápida do acampamento alcançamos o local do base. A descida, embora rápida não foi fácil: o Verglass na geleira era visível, mas bastante traiçoeiro (muito cuidado com a técnica para não enganchar um pé no outro, um tombo ali seria bem arriscado).
Depois as pendentes de pedras soltas com uma mochila pesada e botas duplas são um inferno para as coxas e os joelhos, bastão firme a cada passo, cuidados com as pedrinhas redondas, mesmo assim alguns tombos são inevitáveis.
No campo de fósseis, apesar do vento, uma parada revelou uma enorme quantidade de caracóis, bivalves e outros animais com a impressão de sua estrutura esquelética extremamente clara na rocha sedimentar. Por toda a ladeira, por volta da cota 4.000 era possível observar fragmentos de fósseis de poucos milímetros até 20 ou 30 cm de diâmetro. Um espetáculo da natureza!
No base, mais uma vez, montamos acampamento e em pouco tempo estávamos recuperados do dia, pouco mais de 13 horas de atividade. Hidratação à base de chá e sucos, e uma boa comida liofilizada embalaram o sono. Mais uma noite estrelada, fria, curiosamente sem vento.
O último trecho até o Playon, tão fácil no primeiro dia, com 30 quilos nas costas não pareceu assim fácil… Ainda bem que não tentamos a descida final no dia anterior como tínhamos pensado ser possível.
Agora, alguns dias de passeio e descanso, sem compromisso nem horário e uma volta tranqüila para casa, é claro, pensando quando e onde será a próxima montanha e como se preparar para lá chegar.
Este texto foi escrito por: Marcelo Krings