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Parte II – É feita a escolha e se inicia a travessia


Sposito treinando em Badwater (foto: Divulgação)

No mesmo dia partimos para o Mojave National Preserve. As estradas secundárias que pegamos são um capítulo à parte. O tempo inteiro você passa por lindos cartões postais, com o deserto sendo cortado apenas por um longo tapete de asfalto.

Já bem perto da Entrada Sul passamos por Amboy, um lugarejo com uma placa que indicava “fundada em 1858 , população 20”. Mas tive a impressão que era mentira. Não vi esta gente toda na cidade… Além disto, a gasolina era descaradamente vendida pelo dobro do preço médio e o posto ainda estava fechado!

Mais adiante existia um aviso alertando que este era o último posto nos próximos 150 quilômetros. Imediatamente entendi o porquê do preço.
Já dentro do Mojave National Preserve, enquanto cruzava de sul para norte a área eu ia analisando o local que previamente havia estudado no Brasil como outra opção de trilha. A região, como todo deserto que se preze, é extremamente atraente e, diria até, mágica. Aqui notava-se um espaçamento bem maior entre uma moita e outra, tornando o solo mais visível e a paisagem com mais cor de terra. Porém, também mais repetitiva. Corri durante algum tempo, treinando e sentindo as dificuldades do solo e da vegetação local (leia-se: arbustos de espinhos). Adorei este treino. Mas meu coração continuou pendendo para o Joshua Tree…

Como faltava pouco tempo para escurecer e ninguém é de ferro, desviei o caminho para Las Vegas, que ficava a pouco mais de cem quilômetros da Entrada Norte. Quem sabe eu teria sorte e correria com um tênis cinco estrelas? Cheguei no primeiro cassino que vi e apostei meus tradicionais dez dólares nos caça-níqueis de vinte e cinco cents, sentindo que a sorte estava me observando… Fui com toda a fé!

Sahara Marroquino – Mudando de assunto, no dia seguinte rumamos para o famoso Death Valley National Park, onde existe o local mais baixo dos EUA, Badwater, chegando a 86 metros abaixo do nível do mar. Com os 52 graus centígrados que peguei no Sahara, perto do Sudão, e os 58 graus centígrados que senti enquanto corria no Sahara Marroquino, fiquei admirado com o vento quente e seco que insistia em soprar por lá. É algo realmente indescritível e, tomara, único. Sem exagero, é quase irrespirável tamanha a falta de densidade do ar.

Aqui também fiz um pequeno treino com o intuito de sentir o local em todas as sua nuances. A região lembrava um pouco algumas áreas do Deserto de Atacama no que referia-se à cor do solo. Sua vegetação era mais escassa que a dos outros dois parques, o que facilitaria a corrida em relação à possibilidade de ferimentos nos milhares de arbustos de espinhos dos outros dois locais. Mas a beleza do Joshua Tree National Park continuava vencendo. Quem sabe eu volto aqui em uma próxima oportunidade?

Virei o leme para o sul e retornamos para a primeira opção. Com a mochila recheada com quatro litros de água e isotônico, algumas barras energéticas, sachês de carboidrato em gel, batatas fritas, castanhas, casaco, lanterna, pilhas, bússola, mapa, meias sobressalentes e filtro solar, com o peso total em torno de seis quilos, comecei minha corrida pela Entrada Oeste exatamente às 8h do sábado, 15/9/2001.

Orientação – Nos primeiros minutos de corrida a ansiedade da novidade já estava controlada. Com a bússola e mapa guardados, lembrava-me da garantia que os Rangers deram sobre a ótima marcação da trilha. Depois da primeira hora de corrida cheguei a uma encruzilhada que não possuía marcação visível. Fui obrigado então a fazer o que é mais desagradável para um corredor de trilhas: parar e se orientar. Nesta hora perde-se todo o ritmo que a duras penas se consegue correndo sobre areia fofa, com uma mochila pesada, concentrado no que se está fazendo, tentando desviar-se das moitas de espinhos e dos locais em que a pisada irá afundar mais que o normal.

A visão do ambiente quando se está correndo é completamente diferente de quando andamos. Por mais rápido que possamos estar em uma caminhada, sempre é tranqüilo abrir um mapa e conferir sua posição. Quando corremos em trilhas, sejam elas na Mata Atlântica ou em um deserto, necessitamos estar constantemente olhando para onde pisamos e o que está à frente do rosto. Os obstáculos surgem muito rapidamente quando corremos em um ambiente outdoor e, se desejamos olhar um mapa e uma bússola, devemos obrigatoriamente parar. E isto eu só faço em último caso quando estou correndo. Às vezes somente após o último caso…

Continuei correndo por algum tempo, seguindo a trilha bem demarcada e bebendo, ora isotônico ora água, a cada oito minutos, avisado pelo meu fiel despertador automático que sempre uso nestas ocasiões. No outro punho carregava meu freqüencímetro cardíaco que eu constantemente monitorava para conferir se continuava dentro dos limites que defini para esta corrida, 135-150 batimentos por minuto, valores estes que, no meu caso de bradicárdico (meu coração bate lentamente em função de muitos anos de atividade aeróbia), representavam uma velocidade suficiente para não esgotar-me durante as várias horas de atividade física que havia pela frente.

Mais uma vez deparei-me com um trecho dúbio e fui obrigado a me orientar. Como já estava correndo a quase duas horas e a mochila não diminuía de peso aparente apesar de estar me hidratando regularmente, aproveitei para alongar-me e comer algumas batatas fritas, pois as barras e os gel de carboidrato já estavam começando a me enjoar, aliás, o que sempre me acontece após a quarta barra durante uma atividade extenuante como esta.

Espinhos – Após a terceira hora de corrida comecei a notar que a vegetação estava mudando. Não encontrava mais nenhuma joshua tree, mas uma prima distante dela e uns horrorosos espinhos em forma de bola que ao grudarem lembrava-me as estórias que ouvia quando criança a respeito da mordida da perereca, que só soltava durante uma noite de forte tempestade. Esta bola de espinhos só era possível de ser arrancada com auxílio de um graveto estrategicamente posicionado entre ela e a perna, funcionando como uma alavanca. E várias vezes a bola apenas pulava e mudava de lugar na perna. Esta operação era pior do que parar para me orientar…

Confira os capítulos seguintes:

  • Parte III – O rio seco e o canyon fora de lugar;
  • Parte IV – Trilhas de coiotes e desidratação.

    Perdeu a primeira parte desta aventura? – leia agora:

  • Parte I – Ataques terroristas e ônibus pirata

    Este texto foi escrito por: Carlos Sposito