Sposito fez questão desta foto exibindo o misto de satisfação e cansaço ao fim da travessia (foto: Divulgação)
Confira o último capitulo da aventura de Sposito no deserto de Mojave.
Alguns minutos, um gel de carboidrato e outros goles de água depois, iniciei uma corrida voltando o rio, na tentativa de encontrar o ponto em que iniciei para usá-lo como referência. E esta volta agora parecia bem mais longa e trabalhosa do que a ida. No mínimo devido ao leve aclive que possuía no sentido em que eu agora seguia. Talvez também as posições das pedras que eu era obrigado a pular favorecessem mais as subidas e descidas em uma direção do que na outra.
Seja qual for a explicação, se houver uma, o que me preocupava naquele momento era a atenção que eu deveria ter para lembrar o ponto em que havia entrado no rio. Bingo!, consegui.
O próximo passo seria achar a trilha original. Naquele momento, olhando o cronômetro que indicava oito horas e trinta e seis minutos de corrida contínua, entrecortada por pequenas paradas para orientar-me ou comer uma batata frita, considerei como tendo cumprido minha meta: ser o primeiro brasileiro a correr no Deserto de Mojave.
Pelo sanduíche – Decidi, então, parar a corrida, visando poupar uma energia que seria importantíssima a partir de agora. Restavam-me pouco mais de duas horas de claridade solar e minha mochila estava mais leve do que devia. Eu não carregava naquele instante mais do que meio litro de isotônico e uma ou duas barras energéticas. Afinal, eu já deveria ter encontrado meu apoio há muito, se não fosse este pequeno contratempo. E eu começava a imaginar-me comendo um delicioso sanduíche de queijo que estaria me aguardando no ponto de encontro.
Comecei a procurar a trilha. Em poucos minutos de caminhada encontrei uma toda remexida, com muitas pegadas na areia fofa. Porém, não eram pegadas humanas, mas de coiotes, que existem aos montes na região. Tentei seguí-la mas, poucas dezenas de metros depois, ela terminava abruptamente.
Cruzei então pela trilha e continuei à procura de outra, paralela a esta, que seria na direção correta. Rapidamente deparei-me com a próxima. Parecia-me com mais pegadas de coiote do que a primeira. Mesmo assim, trilhei-a por algum tempo. Novamente ela terminava em um encontro de arbustos de espinhos, que nesta área eram abundantes. Mais até do que deveria. A quantidade de arranhões que eu estava nas pernas seria motivo suficiente para desclassificar qualquer pessoa em um concurso de beleza…
Lugar nenhum – Alguns dissabores e muitos arranhões depois, na tentativa de seguir as trilhas de coiotes, a inclinação do sol começou a avisar-me que eu tinha pouco tempo de claridade. Mais precisamente uma hora e meia. E eu continuava sem muitas opções de trilhas. Aliás, nenhuma. Todas que apareceram pelo caminho não levavam a lugar nenhum.
Baseado nesta perspectiva não muito animadora, decidi partir para a estratégia mais radical em termos de orientação. Sim, exatamente o que você está pensando: orientação de força bruta. Pelo mapa, eu vi que existia uma estrada de terra que cortava um trecho da região na direção norte-sul. Do ponto que eu estava, se eu marcasse o azimute leste e seguisse, chegaria até ela. Mais cedo ou mais tarde.
Comecei sabendo que haveria algumas subidas e descidas não íngremes, porém a noite me pegaria em atividade. Isto não seria problema pois, apesar do plano de encontrar meu apoio no início da tarde, eu havia trazido em minha mochila um casaco, lanterna e pilhas sobressalentes.
A primeira subida começou mais íngreme do que eu esperava. E sempre cruzando por trilhas com incontáveis pegadas de coiote. Claro que, apesar de curioso, não tinha vontade nenhuma de encontrar os donos delas.
Cãimbras – Depois de uma descida e mais uma subida bem íngreme, na tentativa de tomar um atalho, a noite teimou em aparecer. Nesta hora, parei para sentar e colocar o casaco a fim de proteger-me do forte vento frio que começava a ficar insistente. Como que por um impulso mais forte que minha vontade, deitei-me com a cabeça sobre a mochila pensando em descansar alguns minutos. As pernas só podiam ficar esticadas, pois, ao mudar de posição, as câimbras insistiam em lembrar-me que eu possuía pernas. E, desta maneira, de pernas esticadas, short e casaco, adormeci ao vento.
Quando acordei havia se passado quase duas horas. Meu cronômetro marcava perto de nove e meia da noite e meu freqüencímetro cardíaco indicava o gasto de oito mil e quatrocentos quilocalorias até aquele momento. Desconectei-o de meu peito, já que estava me incomodando e a informação que eu desejava limitava-se ao período de corrida.
Completamente sem disposição para voltar a caminhar, tomei mais um gole de isotônico, que, àquela altura, já havia entrado em ritmo de racionamento, e continuei sentado por um bom tempo tentando encontrar disposição para voltar à atividade. Depois de quase trinta minutos, decidi agir da maneira mais lógica de sobreviver-se em um deserto: caminhar durante a noite e abrigar-se durante o dia. Neste caso, meu otimismo fazia-me crer que não seria necessário me esconder do sol no dia seguinte, já que eu sairia desta roubada em poucas horas.
Astral – Parti então na direção leste, subindo o que imaginei ser o último aclive antes do vale no qual eu supunha que avistaria a estrada de terra. Quarenta e cinco minutos depois, quando cheguei ao alto da elevação e vi mais um vale com outra elevação a seguir, fui obrigado a fazer uso do meu experimentado preparo psicológico para este tipo de furada. Ainda com o moral mais ou menos alto, certo de que estava no rumo, parei novamente para hidratar-me com mais meio gole de isotônico e descansar um pouco sobre uma pedra.
Cansado pelo excesso de desgaste físico durante o dia, novamente dormi. Entre um cochilo e outro, olhando para um estrelado céu que só costumo presenciar em desertos, onde o ar é extremamente limpo, vi uma estrela-cadente que, pelo tamanho, havia entrado na atmosfera em um ponto muito perto de mim.
Sede recorde – Levantei, tonto, sentindo cada vez mais forte os efeitos da desidratação. Veio-me então a lembrança de um trekking em solitário, de oitenta e cinco quilômetros em apenas um dia, que havia feito no sequíssimo Deserto de Atacama, ao tentar chegar ao Vulcão Licancabur. Naquela noite eu havia sentido a pior sede de toda a minha vida. Marcas do passado. Esta sede agora estava superando qualquer recorde anterior…
Lentamente cruzei mais um planalto em que os obstáculos desviavam-me constantemente de meu azimute leste, por culpa dos imensos blocos de pedra cercados por moitas de espinhos e depressões no solo. De repente, exatamente à uma hora e cinqüenta e um minutos da madrugada, vi ao longe uma pequena luz branca em movimento. Em seguida, em um pequeno intervalo entre as folhagens que encobriam esta visão, pude perceber uma luz vermelha. É claro que deveria ser um carro. Finalmente havia achado a estrada!
O prazer foi tão grande, e o relaxamento maior ainda, que decidi deitar um pouco e admirar novamente este brilhante céu que me cobria. Depois de dez minutos, levantei e parti com disposição, apesar de continuar desidratado e muito longe da estrada.
Entre as duas opções possíveis, esperar amanhecer para continuar a caminhar ou seguir naquela hora, escolhi continuar me arranhando no escuro e encontrar água mais rapidamente. Esta caminhada final aconteceu dentro de um grande rio seco, com muitas pedras imensas e vegetação espinhosa, com jeito de ser uma região selvagem e virgem.
A partir daquele ponto, com o rio me dando a impressão de estar seguindo na direção que eu precisava, associei meu azimute leste com uma formação de estrelas que, se não me falha a memória, usei em uma situação muito semelhante a esta, no Deserto do Sahara, quando corri a Marathon des Sables. E, exatamente como antes, as subidas e descidas do rio seco davam a impressão permanente de estar chegando ao ponto final. Mas nunca chegava.
Exatamente quando meu relógio marcou três horas e trinta e sete minutos da madrugada, pisei na estrada de terra. Fiquei tão aliviado por ter me safado de mais esta que deixei a sede de lado e não segui para nenhum dos dois lados da estrada. Deitei no acostamento e dormi tranqüilamente.
“Água!!!” – Quando eram cinco horas da manhã, um carro parou ao meu lado e um fotógrafo de natureza, que pretendia fotografar antes do nascer do sol, perguntou-me se eu precisava de algo. Água!!!!!, respondi. Inconformado por ter esquecido sua água ele deu-me um café com leite quente sem açúcar, único líquido que ele tinha no momento, e que eu tentei saciar a sede. Em seguida, deixou-me em frente ao carro, no ponto de encontro onde Odette, preocupada, me esperava, tentando dormir um pouco.
Enquanto contava as minhas histórias e ouvia a dela, passada com um coiote que a cercou por mais de duas horas enquanto montava guarda à minha espera, bebi alguns litros de água, isotônico, Coca-Cola e tudo o mais que apareceu líquido pela frente. Depois disto, só um banho inesquecível e algumas horas de sono para voltar à realidade, já pensando no próximo deserto…
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Este texto foi escrito por: Carlos Sposito
Last modified: outubro 26, 2001